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Apostas em jogos online: a ilusão de "investimento" e o perigo do vício
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Apostas em jogos online: a ilusão de "investimento" e o perigo do vício

| APLICATIVOS | Especialistas e ex-jogadores alertam para os prejuízos financeiros, pessoais e psicológicos em torno dos jogos de apostas online
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Reportagem mostra como o vício em jogos de apostas online tem crescido e impactado negativamente o brasileiro (Foto: AURÉLIO ALVES)
Foto: AURÉLIO ALVES Reportagem mostra como o vício em jogos de apostas online tem crescido e impactado negativamente o brasileiro

A promessa de ganhar dinheiro fácil pode atrair qualquer pessoa, especialmente com o constante bombardeio de propagandas e influenciadores nas redes sociais. É assim que o cenário dos jogos de apostas online tem se expandido no Brasil, como uma promessa ilusória de “investimento”, mas com uma realidade, muitas vezes, viciante e prejudicial.

O economista e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), Érico Veras Marques, ressalta que esses jogos não podem ser vistos como investimentos, já que são apostas, isto é, dependem de sorte ou azar e não possuem retorno garantido. Ao contrário, frequentemente resultam em perdas para os jogadores, especialmente para as pessoas de baixa renda.

Isso porque as pessoas com recursos financeiros limitados, em particular, acabam comprometendo áreas essenciais, como o pagamento do aluguel, das contas e da própria alimentação, ao destinar parte do orçamento para apostas. Esse contexto pode aumentar a inadimplência e diminuir o consumo das famílias em diferentes setores.

Além disso, pelo fato de os jogos criarem uma expectativa de ganhar dinheiro, quando há algum ganho, mesmo que seja uma vez a cada 30 tentativas, ocorre liberação intensa do neurotransmissor dopamina, associado ao prazer. “Isso, do ponto de vista biológico, pode causar uma certa dependência”, segundo o psicólogo e professor da UFC, João Ilo Barbosa.

“Os jogos são projetados para que você não pare tão cedo. Muitas vezes, há uma programação que faz com que você ganhe ocasionalmente, criando uma sensação de que, quanto mais você joga, mais perto está de ganhar novamente. Essa aleatoriedade faz com que você sinta a necessidade de continuar jogando para obter um ganho”, detalha João.

Foi assim para o cearense Miguel (nome fictício), 32 anos. O acesso a jogos de apostas esportivas – Bets – começou após indicações de amigos em 2019. Por conhecer e gostar de futebol, o homem viu uma oportunidade sem saber o vício que estava à espreita e o levou a duas internações em clínica de reabilitação.

“No início, foi um dinheiro fácil, e o sucesso inicial me atraiu a continuar. Comecei a acreditar que poderia viver de apostas e esqueci minha profissão e minha vida pessoal. Quando comecei a ter prejuízos, percebi que minha compulsão me fazia insistir em tentar recuperar o que havia perdido, o que apenas me afundava mais”, acumulando perdas de R$ 200 mil até 2022.

João apostava valores entre R$ 10 e R$ 100 no começo, mas, gradativamente, passou a aportes maiores, chegando a colocar R$ 10 mil em uma única partida. “Quando surgiram os primeiros grandes prejuízos, o jogo me fez esconder esse problema. Ali foi quando começaram a vir depressão, ansiedade, vontade de ficar sozinho e vergonha de sair”, conta.

A situação foi parecida com o ex-jogador Arthur (nome fictício), 27, o qual não tinha problemas financeiros antes de começar a jogar os Bets em 2017, mas foi acumulando uma dívida de R$ 500 mil ao longo dos anos até parar em 2024. “O jogo veio como uma possibilidade de renda, de ganhar um dinheiro extra para sair no final de semana ou viajar.”

Arthur se perguntava se seus prejuízos com o jogo eram resultado de algum erro de sua parte, especialmente ao ver supostos ganhos de outras pessoas. Essas pessoas promoviam métodos variados e faziam promessas de lucros fáceis. “Esses influenciadores vendem uma ilusão”, afirma o ex-jogador. “Eles lucram com a publicidade, não com o jogo em si.”

“As propagandas mostram pessoas ficando ricas, mas não mostram os danos que os jogos podem causar”, acrescenta o gerente de acolhimento da clínica de reabilitação cearense Casa Despertar, Marcelo Palácio. Hoje, cerca de 3% a 5% do total de 55 internações mensais no local, em média, correspondem ao vício em jogos.

No entanto, o número é subnotificado, pois parte das pessoas que buscam informação não conseguem se internar, tendo em vista que já acumulam despesas com apostas e não conseguem arcar com mais custos. O grupo Jogadores Anônimos, em Fortaleza, é outro foco de apoio para a recuperação, com reuniões semanais gratuitas.

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Dívidas e Empréstimos: os custos da compulsão em apostas online

A situação do vício e do descontrole financeiro em torno dos jogos de apostas online ocasionam uma busca por recursos que inclui, frequentemente, pedidos de dinheiro a amigos e familiares, adiantamentos de salário ou décimo terceiro no trabalho, empréstimos bancários e, até mesmo, dívidas com agiotas. A Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e o Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), em parceria com a Offerwise Pesquisas, realizaram um estudo no Brasil, em junho, que indicou que 25% dos entrevistados gastam mais do que podem com jogos e apostas na internet e 18% já foram negativados.

A cearense Jéssica Lobo perdeu a irmã Ângela, de 39 anos, por conta de circunstâncias relacionadas às apostas. Ela explica que a irmã era uma pessoa extremamente responsável antes de se envolver com os jogos e que não imaginava que o cenário financeiro estava fora de controle até o seu falecimento, em 2023. Jéssica explica que Ângela passou a não se comunicar mais com ela, inventando desculpas quando ela ligava. Além disso, situações que pareceriam estranhas a priori, como o corte de água e luz na casa em que Ângela morava com a mãe e os filhos, no município de Missão Velha - a 500 quilômetros de Fortaleza -, eram minimizadas pela ex-jogadora.

"Ela estava comprando só o básico, e isso todo mundo relata a mesma coisa, que o jogo acaba dando uma desculpa convincente para você mentir, esconder o que está se passando", explica Jéssica, detalhando que Ângela fez vários empréstimos no próprio nome e no nome de outras pessoas, chegando a negociar a venda de imóveis da família com agiotas.

A situação de Ângela não é diferente da de outros jogadores, pois há uma perda de autocontrole decorrente do vício, diz o psicólogo e professor da Universidade Federal do Ceará (UFC), João Ilo Barbosa. Todavia, a recuperação é possível com tratamentos que envolvem terapia, medicação, participação em grupos de apoio e, em alguns casos, internações.

"O tempo que a pessoa passou nessa situação influencia a dificuldade de mudar o padrão de comportamento, especialmente se o tempo de exposição foi longo. Mas uma abordagem inicial é evitar contextos e situações onde o jogo está presente. A ideia é evitar o primeiro impulso, pois depois da primeira aposta, é difícil parar", explica João Ilo.

Mercado de apostas impacta varejo e pode gerar aumento da inadimplência

Os jogos de apostas online foram responsáveis por gastos de R$ 68,2 bilhões em 12 meses no Brasil, correspondentes a junho de 2023 a igual mês de 2024, de acordo com o estudo Macro Visão do Banco Itaú. O valor inclui as taxas pagas e o apostado pelos jogadores, sem considerar os ganhos. O setor do varejo já vê impactos no consumo e na inadimplência. Um levantamento da Confederação Nacional de Dirigentes Lojistas (CNDL) e do Serviço de Proteção ao Crédito (SPC Brasil), em parceria com a Offerwise Pesquisas, em junho de 2024, indica que 46% das pessoas abriram mão de algum consumo para fazer jogos de apostas no Brasil, e mais de 40 milhões de pessoas apostaram no último ano. O presidente da Câmara de Dirigentes Lojistas (CDL) de Fortaleza, Assis Cavalcante, explica que o contexto desafiador também ocorre em Fortaleza, com perdas de 12,5% no faturamento do varejo neste ano. "De dezembro (de 2023) para cá, isso se acentuou severamente, e nós estamos muito preocupados", diz. Assis cita ter ficado sabendo de diálogos recorrentes dentro das lojas da Capital, em que os consumidores dizem que não vão comprar determinado produto, pois estão colocando o seu dinheiro em jogos de apostas.

A expansão do mercado, que já gerou 113 pedidos de autorização para funcionamento de empresas junto ao Ministério da Fazenda a partir de 2025, por meio de regulação e controle da Secretaria de Prêmios e Apostas (SPA), traz preocupações para os especialistas da Recovery, empresa do Grupo Itaú. A Recovery cita que os brasileiros já perderam, aproximadamente, R$ 24 bilhões em jogos no período de um ano. "Fazer apostas carrega um risco altíssimo de perda de dinheiro", segundo o diretor da empresa, Bruno Russo Franco. "Pode acontecer dos apostadores se deixarem levar pela emoção de uma possível vitória, mas vale sempre lembrar que, para cada grande vencedor, há milhares de pessoas que perdem quantias significativas. Essa realidade pode levar os brasileiros ao endividamento", acrescenta Bruno. A Strategy&, consultoria da PwC, projeta que a indústria de apostas esportivas movimente de R$ 89,9 bilhões a R$ 129,7 bilhões em 2024, mas "entender como as apostas esportivas impactam o comportamento do consumidor é um desafio, uma vez que o cenário é volátil", para o sócio e líder da Strategy&, Gerson Charchat.

Falta de educação financeira eleva risco de vício em jogos

Pessoas sem conhecimentos adequados sobre educação financeira podem não perceber os riscos associados a atividades de jogos de apostas online e subestimar a probabilidade de perdas, de acordo com o educador financeiro e presidente da Associação Brasileira de Profissionais de Educação Financeira (Abefin), Reinaldo Domingos. A situação pode ser ainda mais grave entre o público de baixa renda, já que a escassez de recursos pode intensificar o desejo de ganhar dinheiro de forma rápida, explica Reinaldo. "Não existe um nível seguro quando se fala em apostas, pois mesmo pequenas quantias podem levar a grandes perdas ao longo do tempo", pontua.

"Sem um plano financeiro estruturado e um diagnóstico preciso da sua situação econômica, essas dívidas (de jogos) podem crescer exponencialmente devido aos juros e ao aumento da falta de controle", indica Reinaldo. "Ao focar em objetivos financeiros estruturados, as pessoas são menos propensas a recorrer a comportamentos prejudiciais como as apostas."

Reinaldo cita alguns passos de educação financeira para pessoas endividadas com os jogos, como o "diagnóstico" - avaliação de renda e dívidas detalhadamente -, o "sonho" - definição de objetivos financeiros claros e realistas para a mudança de comportamento - e o "orçamento" - seguir um plano financeiro para pagar dívidas e economizar, evitando apostas. Por fim, o último passo seria iniciar o processo de "poupar" parte do dinheiro que a pessoa recebe como renda. "Com isso, a pessoa muda o jogo e passa a fazer com que o dinheiro trabalhe a favor dela e não o contrário", segundo Reinaldo. "Essa metodologia DSOP pode ajudar a corrigir esses erros ao fornecer uma abordagem estruturada".

Por outro lado, instituições e governo podem atuar juntos na educação financeira, na visão do especialista, pontuando que programas educacionais deveriam ser mais incentivados em escolas e comunidades, bem como um olhar atento sobre a publicidade em torno dos jogos de apostas e o apoio à reabilitação de pessoas com o vício. A divulgação dos jogos por influenciadores tem tido um impacto profundo e negativo, segundo o educador. Neste mês, a influenciadora Deolane Bezerra foi presa por um suposto envolvimento em esquema de lavagem de dinheiro em empresas de apostas. Neste ínterim, a Justiça de São Paulo bloqueou 15 sites de jogos de apostas.

Onde encontrar ajuda?

Grupo Jogadores Anônimos

Reuniões gratuitas às segundas-feiras

Horário: 19h30min às 21h30min

Endereço: Rua São Paulo, 32, Sala 316, Centro, Fortaleza

Reuniões às
quintas-feiras

Horário: 19h30min às 21h30min

Endereço: Av. Almirante Barroso, 949, Praia de Iracema, Fortaleza

Reuniões aos sábados

Horário: 10h às 12h

Endereço: Também na Av. Almirante Barroso, 949

Contato

Número (WhatsApp): 85 98929-5589

Site: www.jogadoresanonimos.com.br

CASA DESPERTAR (Clínica de Reabilitação)

Comunidade Terapêutica

Endereço: Rua Ângelo Rodrigues Monteiro, 40, Telha, Aquiraz, Ceará

Clínica Especializada

Endereço: Rua Manoel Feliciano de Lima, 11, Aquiraz, Ceará

Contato

Número (WhatsApp): 85 98865-2500

Site: www.casadespertar.com.br

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