No futuro da Praia do Futuro, uma obra de grande porte já deixa legados para a cidade de Fortaleza pelos seus custos sociais, ambientais e econômicos. Cheia de enredos, a história da usina Dessal, maior planta de dessalinização da América Latina, ganha um novo capítulo: o possível destino das 250 famílias impactadas pela construção.
Em junho, reportagem do O POVO mostrou que a decisão da mudança de local para não afetar os cabos submarinos que garantem a transmissão de dados no Brasil passou a ter um novo imbróglio: as comunidades Vista para o Mar, Vila Norte Sul, da Benção e Deus é Fiel, construídas no exato trecho da faixa de praia escolhido para a instalação.
Por se tratar de um terreno de marinha, a Superintendência do Patrimônio da União no Ceará (SPU/CE) avaliou que o reassentamento dessas pessoas "é imprescindível para a pauta".
Com início das obras previsto para o primeiro semestre de 2025, a usina deve beneficiar em torno de 720 mil cearenses "A construção da planta de dessalinização de Fortaleza beneficiará cerca de 720 mil pessoas em Fortaleza e Região Metropolitana. O projeto é uma Parceria Público-Privada firmada entre a Cagece e a empresa Águas de Fortaleza. A planta de dessalinização de água marinha terá capacidade para produzir 1 m³ (mil litros) de água por segundo, vazão que será destinada ao macrossistema de água de Fortaleza." e foi projetada para mitigar os efeitos da escassez hídrica no Ceará.
Preocupadas com uma possível expulsão, essas comunidades buscaram apoio de escritórios de direitos humanos e da Defensoria Pública do Estado, além de iniciativas sociais que já atuavam na região.
O resultado foi um mapeamento dos moradores e a organização de um grupo de trabalho com todas as partes envolvidas — que, agora, veem no horizonte uma perspectiva de solução: a possível construção de um condomínio do Minha Casa, Minha Vida (MCMV) que possa ser a moradia digna que há tanto esperam.
A construção da planta de dessalinização de Fortaleza beneficiará cerca de 720 mil pessoas em Fortaleza e Região Metropolitana. O projeto é uma Parceria Público-Privada firmada entre a Cagece e a empresa Águas de Fortaleza. A planta de dessalinização de água marinha terá capacidade para produzir 1 m³ (mil litros) de água por segundo, vazão que será destinada ao macrossistema de água de Fortaleza.
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Com duração de 30 anos, o contrato de PPP com a empresa Águas de Fortaleza terá um valor total de R$ 3,1 bilhões que serão aplicados em investimentos, operação e manutenção e fornecimento de água potável nos reservatórios do Mucuripe e Praça da Imprensa. Desse total, mais de R$ 500 milhões devem ser investidos na construção da planta de dessalinização e instalação das tubulações.
Em conjunto, a Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cagece) e a SPE Águas de Fortaleza, consórcio responsável pela Parceria Público-Privada (PPP), asseguram que "as tratativas referentes aos moradores das comunidades estão sendo feitas pelo Governo do Ceará, por meio da Secretaria das Cidades (SCidades) e da Procuradoria-Geral do Estado (PGE)".
"Outras instâncias, como Defensoria Pública e alguns vereadores, também estão acompanhando a pauta e um plano de ação está sendo elaborado para as famílias", afirmam, em nota.
O mandato da vereadora Adriana Gerônimo (Psol) foi responsável por identificar e apresentar 15 terrenos vazios na área da Praia do Futuro como sugestão para a estruturação das unidades habitacionais.
De acordo com Adriana, "o Governo do Estado argumentou que não havia locais para reassentamento nessa região, que inclusive está situada em uma Zona Especial de Interesse Social 3 (Zeis 3), prevista pelo Plano Diretor de Fortaleza".
"O zoneamento também inclui Zeis 1, que são de ocupação, onde tem gente morando, mas também há dezenas de Zeis de vazio, que deveriam ser destinadas justamente para habitação de interesse social ou obras que atendessem à população, como postos de saúde, escolas, Centro de Referência em Assistência Social (Cras), por exemplo", coloca.
"O que a gente fez foi levantar as Zeis de vazio, que tem suas poligonais delimitadas pelo Plano Diretor, e o argumento caiu por terra, porque tem terreno. E isso mostra que a questão vai muito além da Dessal, porque essas pessoas convivem com o problema de moradia há muito tempo. Independente da obra da usina, a gente acredita que deveria haver uma política habitacional porque aquelas pessoas não deveriam estar esquecidas naquela condição", finaliza a vereadora.
Conforme explicita Waldemar Pereira, coordenador da Coordenadoria de Desenvolvimento da Habitação de Interesse Social (CDHIS), da Secretaria de Cidades (SCidades), dos 15 terrenos sugeridos pelo mandato de Adriana Gerônimo foi escolhido um distante cerca de 700 metros de onde as famílias encontram-se atualmente.
O local está situado entre as avenidas Cesar Cals e Pintor Antonio Bandeira, na intersecção com a rua Hermínia Bonavides.
"Nós estamos propondo para o Ministério das Cidades que as famílias sejam tratadas como acontece com as obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), que dão prioridade de atendimento a elas, então o residencial seria construído especificamente para elas, além do que o governo dispensa delas o pagamento mensal", aponta.
De acordo com Pereira, embora a obra seja uma PPP, está em um terreno da União, o que justificaria a autorização do Ministério para o prosseguimento.
"Caso não seja autorizado, a gente poderia construir o MCMV do mesmo jeito, mas teria de esperar a seleção da Caixa Econômica Federal e o atendimento às famílias não seria prioritário, seria junto com todas as famílias cadastradas naquela área", diz.
Na avaliação do coordenador, "esse tende a ser um processo bem longo": "A PGE vai avaliar a área e dizer quanto vale para fazermos a proposta de desapropriação. Os proprietários podem ou não concordar com o valor pago pelo Estado. Nós estamos aí no fim do ano e prestes a entrar em período recessivo, tem as questões orçamentárias. Mas as soluções já estão colocadas".
Mapa indica onde se localizam os terrenos envolvidos
"As pessoas estão reativas em fazer a remoção, em receber o aluguel social, então o que estão esperando mesmo é que a gente diga 'olha, o terreno é viável e nós vamos desapropriar'. Isso já daria um alívio neles, ter essa garantia", afirma.
E sublinha: "Nossa preocupação é que tem aparecido gente que viu o movimento e correu para lá para ocupar, então o nosso compromisso é com as 250 famílias que estavam quando a Defensoria chegou e levantou. Porque às vezes acontece isso, as pessoas veem o movimento e começa a chegar mais gente. A luta por moradia aqui em Fortaleza é muito complexa".
Apesar do conhecido número de 250 famílias, a quantidade exata de integrantes dos núcleos familiares afetados pela Dessal do Ceará ainda diverge: enquanto a Defensoria aponta cerca de 700 pessoas, fontes ouvidas pelo O POVO indicam que há "em torno de mil, menos que isso não é".
Fato é que são mulheres, crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, gestantes, puérperas, lactantes, doentes crônicos — todos em ocupações precárias e situação de vulnerabilidade extrema.
"A comunidade é grande e tem muita gente precisando de moradia, precisando de ajuda. Há muito tempo que a gente precisa. Quem está acompanhando vê nosso sofrimento aqui sem banheiro, energia, água. Agora vai começar o mês chuvoso, o mês da ventania, do inverno, aí complica ainda mais a situação da gente. Porque madeira com água não dá certo, né?", desabafa a líder comunitária Marcelânia Oliveira.
E continua: "A gente está participando de uma reunião uma vez por mês com o povo da Cagece, o povo dos direitos humanos, da cidadania, a Dra. Elizabeth, que é a defensora, vai um bocado de gente. O pessoal da Defensoria (Pública) nunca abandonou a gente. Só que a gente não sabe se eles estão ajudando a gente ou se estão tentando facilitar alguma forma de remover a gente daqui, sabe?".
"Estamos aqui aguardando o parecer deles, né? Porque a gente já disponibilizamos o terreno para eles avaliar se era compatível ou não, mas até agora a gente não tem nenhuma resposta concreta. Estamos na luta ainda", narra.
A supervisora do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), Elizabeth Chagas, garante que tem atuado "para facilitar o funcionamento do grupo de trabalho (GT), assumindo as providências e responsabilidades designadas em cada encontro".
Para a defensora pública, o GT "tem sido uma experiência fundamental para o avanço das demandas das comunidades, com as questões discutidas de forma horizontal e colaborativamente, com a participação dos moradores".
"Essa é a primeira vez que um processo como esse é implementado, e acredito que, se bem sucedido, poderá servir de modelo para a resolução de outros casos. Por enquanto, podemos dizer que as demandas estão avançando e que só se concluirá os trabalhos quando as soluções habitacionais para essas pessoas estiverem efetivamente implementadas. Esse é o papel da Defensoria nesse diálogo e construção", sinaliza.
O levantamento do Nuham também abrangeu o número de inscrições no Cadastro Único (CadÚnico), no Minha Casa, Minha Vida, empregos, tipos de trabalhos exercidos, quem tem dívidas, quais os tipos de dívidas, quem recebe benefício do Governo e o tipo de benefício, renda média da comunidade e tipo de moradia.
Buscando um caráter amplo e diverso, o GT conta com a participação da Defensoria Pública do Estado, por meio do Nuham, de representantes de diversos órgãos do Governo do Estado, como Cagece, SCidades, Procuradoria-Geral do Estado (PGE), Secretaria de Direitos Humanos e Secretaria de Articulação Política.
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Também compõem o GT os escritórios de direitos humanos da Assembleia Legislativa (EFTA) e da Câmara Municipal (EDHAL). As organizações não-governamentais da AME Ceará e do Pequeno Nazareno também estão nesse GT. Essa diversidade de perspectivas visa garantir uma abordagem abrangente e a construção de soluções eficazes e justas para as comunidades envolvidas no projeto Dessal.
A pedagoga e educadora social Flaviana Ribeiro integra a equipe psicossocial da OSC O Pequeno Nazareno e acompanha as ocupações desde antes do surgimento da proposta de construção da Dessal.
"Nosso acompanhamento iniciou-se em meados de 2021, no ápice da pandemia, quando visitamos muitas famílias que moravam em situações precárias por não terem condições de pagar aluguel ou por conta de conflitos territoriais que as obrigavam a deixar suas casas", conta.
E segue: "Quando nós realizamos esse atendimento inicial para identificar as demandas psicossociais dessas famílias, nos falaram que nunca instituição alguma chegou para dar suporte a elas".
Conforme relata a educadora, "são famílias que, além das questões fundiárias e de moradia, possuem outras vulnerabilidades. Existem pessoas sem documentação, portanto sem Cadastro Único, sem acesso a benefícios como Bolsa Família, crianças fora da escola, com dificuldades de acessar o posto de saúde, conseguir um encaminhamento de qualquer natureza".
Ribeiro conclui que "essas famílias vivem uma série de violações de direitos": "Quando elas foram informadas de que seriam retiradas dali porque existia um projeto para aquele território, isso as amedrontou muito e nós buscamos articulação com escritórios de direitos humanos para iniciar esse processo da luta fundiária".
Outra organização não governamental que tem atuado em prol das comunidades é a Associação das Mulheres Empreendedoras (AME) Ceará, que cuida de massoterapeutas e vendedoras ambulantes dos bairros Praia do Futuro I e II.
Têm participado do GT as vereadoras Adriana Almeida (PT) e Adriana Gerônimo (Psol), o vereador Gabriel Aguiar (Psol), o deputado estadual Renato Roseno (Psol), a deputada estadual Larissa Gaspar (PT) e o deputado federal José Guimarães (PT). Além disso, participam os órgãos governamentais Cagece, SCidades, PGE, Secretaria de Direitos Humanos, SPU, Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da Defensoria Pública e Cras das regionais 2 e 7.
“Elas nos ligaram pedindo socorro porque estavam sendo ameaçadas de despejo. Formamos uma comissão de moradores e fomos até a Defensoria Pública e na SPU. Iniciamos a luta e a resistência da comunidade em favor da remoção com direitos assegurados pela Constituição brasileira”, detalha Cícera Silva, presidente da AME Ceará.
Ela acredita que “as ações do GT têm feito um grande resultado, pois os órgãos governamentais estão envolvidos e comprometidos em resolver o problema”.
O superintendente Fábio Galvão, titular da SPU/CE, observa que "a Dessal traz uma segurança hídrica necessária para todas e todos".
"As famílias hoje ali residem insalubremente, desordenadas, sem condições sanitárias de moradia e de equipamentos públicos sociais. Com a Dessal, além da usina, a área será toda urbanizada e serão instalados equipamentos públicos para uso comum de todas e todos, inclusive para essas mesmas famílias utilizarem, pois serão realocadas para moradias dignas ali próximo, tendo assim a dignidade atendida", assegura.
Se para quem vem de fora a Praia do Futuro aparenta estado de abandono, para quem mora na região essa sensação é recorrente.
No caminho acumulam-se placas de aluguel e venda que, corroídas pela maresia, denunciam a ação implacável da natureza e do tempo.
A Areninha Gildo Fernandes, palco de rachas que ajudaram a revelar jogadores como Sabrina Cosmo Santos, atualmente na equipe de futebol feminino sub-17 do Ceará Sporting Club (CSC), estava esquecida até meses atrás.
Sem manutenção, a areia carregada pelos ventos encobriu a estrutura — que passou a compor o cenário de descaso em um dos pontos turísticos mais conhecidos da Capital.
Moradores do entorno também estão preocupados com os impactos que uma usina desse porte pode causar no dia a dia — além das comunidades que terão de ser reassentadas da área —, como barulho, resíduos e perda do acesso à praia, paisagem que será bloqueada para os vizinhos de frente: os habitantes da comunidade Raízes da Praia, existente há pelo menos 15 anos.
Há algumas semanas eles foram surpreendidos com a instalação de um cercamento na faixa de praia que gerou reclamações entre moradores, banhistas, surfistas e pessoas que frequentavam esse trecho do mar.
“Eu e minhas companheiras estamos participando de reuniões e mais reuniões dentro do assunto, já hoje teve gente aqui reunido, porque esse tipo de coisa sempre dá problema, né? Principalmente para as famílias ao redor. E fora que tira da gente o lazer, porque para as crianças daqui a única coisa que tinha era essa areninha”, indica dona Angela Maria, conhecida como tia Rosa, principal representante da Raízes da Praia.
Com relação à estrutura, o superintendente Fábio Galvão (SPU/CE) atesta que “é necessária” e que não interfere no acesso à praia, pois “nos lados do cercamento tem um imenso acesso ao mar que não é prejudicado”.
O imóvel onde seis portugueses foram brutalmente assassinados em 12 de agosto de 2001 continua no mesmo lugar, mas a força dos ventos já soterrou quase metade da antiga barraca Vela Latina.
Duas décadas depois, ao lado do terreno onde a usina Dessal será construída, uma ex-garçonete e sua filha continuam a lidar com os fantasmas do passado — e também com a falta de ação do poder público.
As duas moram no quarto vizinho ao cômodo onde os corpos foram ocultados, porém dizem temer mais os vivos do que os mortos. O sonho delas é a conquista de uma casa nova.
Lá vive a jovem Virna Lilian, de 28 anos, que era criança na época do crime bárbaro que chocou o Brasil e o mundo, com a mãe, Adelina Farias Barroso, hoje com 73 anos.
Quando soube do mapeamento das famílias afetadas pela construção da Dessal, Virna resolveu buscar ajuda: "A barraca é da minha mãe desde 1978, e a nossa realidade e de alguns barraqueiros mais antigos dessa região, é que fomos abandonados por todos".
"Eu moro aqui com minha mãe há mais de 25 anos, nunca tivemos nenhuma oportunidade de melhoria e só estamos sendo devastados pelo abandono do poder público. Nós não entramos na mesma situação que as ocupações aqui ao lado, eu pedi para passarem aqui (durante o mapeamento) e disseram que não iriam mexer", conta.
Procurada, a SPU explicou que a área da antiga barraca está fora do terreno da Dessal, "e dentro da poligonal da ação judicial geral das barracas, que tramita e aguarda decisão".
O imóvel fica "a uma distância de pelo menos 160 metros de onde será instalada a usina, por isso não foi incluída no mapeamento para reassentamento das famílias".
Após mais uma negativa, Virna segue: "Estamos literalmente sendo enterradas. A casa está sendo soterrada, é muita areia. Mas a prefeitura não pode fazer nada, o governo não pode fazer nada, até com a Defesa Civil eu já pedi para verem a nossa situação, mas também não podem nos ajudar. Estamos abandonadas".
A advogada Lourdes Vieira, do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece), que acompanha de perto a conjuntura, critica a falta de transparência que tem permeado a realização do projeto, cuja nova localização ainda era desconhecida pela população até a apuração da reportagem do O POVO+ publicada em junho.
“Nós temos questionado a ausência de publicização desse projeto e até oficiamos a Cagece solicitando, mas ainda não obtivemos resposta. A única coisa que nós tivemos acesso foi uma apresentação de PowerPoint bem básica”, aponta.
Outro ponto de questionamento por parte do escritório é o licenciamento ambiental de responsabilidade da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), já que a área é uma Zona de Proteção Ambiental (ZPA) onde há desova de tartarugas marinhas, olhos d’água, restinga (mata atlântica) e outras sensibilidades.
“Nós acreditamos que essa obra só terá andamento e conclusão após a resolução dessas questões de licenciamento ambiental, do problema habitacional dessas famílias e do estudo dos impactos que essa usina pode causar. Esse equipamento pode ser um grande violador de direitos, direitos ambientais, direitos humanos, então nossa perspectiva é evitar que danos maiores aconteçam”, conclui a advogada.
Opinião que coaduna com o que pensa o coordenador do Escritório de Direitos Humanos Dom Aluísio Lorscheider (EDHAL), da Câmara Municipal de Fortaleza, Marcus Giovanni.
“Até agora a gente ainda não teve acesso a nenhum projeto definitivo da instalação da usina. Nossa preocupação é, sobretudo, antever qualquer problema que venha a acontecer. Uma percepção nossa é que os moradores daquela área têm muita resistência ao aluguel social por causa dos valores, que são insuficientes para os alugueis na Praia do Futuro, e eles não querem abandonar o lugar deles”, pondera.
Giovanni acredita que “a instalação da usina é um problema multisetorial porque envolve vários aspectos da vida humana, desde o meio ambiente, passando pela questão do direito à moradia, direito à saúde, direito à memória, porque muita gente mora naquela região há anos e vai ter que sair”.
No próximo episódio, entenda os impactos ambientais e econômicos que estão envolvidos na construção da usina Dessal e como o consórcio responsável pela obra pretende avançar com o projeto.
"Oie :) Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários. Até a próxima!"
Reassentamento: entre a esperança e o medo da remoção
Apesar do conhecido número de 250 famílias, a quantidade exata de integrantes dos núcleos familiares afetados pela Dessal do Ceará não é preciso. Enquanto a Defensoria aponta cerca de 700 pessoas, fontes ouvidas pelo O POVO indicam que há "em torno de mil, menos que isso não é".
Fato é que são mulheres, crianças e adolescentes, idosos, pessoas com deficiência, gestantes, puérperas, lactantes, doentes crônicos — todos em ocupações precárias e situação de vulnerabilidade extrema.
"A comunidade é grande e tem muita gente precisando de moradia, precisando de ajuda. Há muito tempo que a gente precisa. Quem está acompanhando vê nosso sofrimento aqui sem banheiro, energia, água. Agora vai começar o mês chuvoso, o mês da ventania, do inverno, aí complica ainda mais a situação da gente. Porque madeira com água não dá certo, né?", desabafa a líder comunitária Marcelânia Oliveira.
E continua: "A gente está participando de uma reunião uma vez por mês com o povo da Cagece, o povo dos direitos humanos, da cidadania, a Dra. Elizabeth, que é a defensora, vai um bocado de gente. O pessoal da Defensoria (Pública) nunca abandonou a gente. Só que a gente não sabe se eles estão ajudando a gente ou se estão tentando facilitar alguma forma de remover a gente daqui, sabe?".
A supervisora do Núcleo de Habitação e Moradia (Nuham) da Defensoria Pública do Estado do Ceará (DPCE), Elizabeth Chagas, garante que tem atuado para facilitar o funcionamento do grupo de trabalho (GT), assumindo as providências e responsabilidades designadas em cada encontro.
Para a defensora pública, o GT tem sido uma experiência fundamental para o avanço das demandas das comunidades. "Essa é a primeira vez que um processo como esse é implementado, e acredito que, se bem sucedido, poderá servir de modelo para a resolução de outros casos. Por enquanto, podemos dizer que as demandas estão avançando e que só se concluirá os trabalhos quando as soluções habitacionais para essas pessoas estiverem efetivamente implementadas."
Um levantamento do Nuham abrangeu o número de inscrições no Cadastro Único (CadÚnico), no Minha Casa, Minha Vida, empregos, tipos de trabalhos exercidos, quem tem dívidas, quem recebe benefício do Governo, renda média da comunidade e tipo de moradia.
Comunidades também serão afetadas no entorno da obra
Se para quem vem de fora a Praia do Futuro aparenta estado de abandono, para quem mora na região essa sensação é recorrente. No caminho acumulam-se placas de aluguel e venda que, corroídas pela maresia, denunciam a ação implacável da natureza e do tempo.
A Areninha Gildo Fernandes, palco de rachas que ajudaram a revelar jogadores como Sabrina Cosmo Santos, atualmente na equipe de futebol feminino sub-17 do Ceará Sporting Club (CSC), estava esquecida até meses atrás.
A perda de acesso à praia e outros impactos trazidos pelo projeto Dessal são parte dos temores dos moradores das comunidades atingidas. Sem manutenção, a areia carregada pelos ventos encobriu a estrutura — que passou a compor o cenário de descaso em um dos pontos turísticos mais conhecidos da Capital.
Moradores do entorno também estão preocupados com os impactos que uma usina desse porte pode causar no dia a dia como barulho, resíduos e perda do acesso à praia, paisagem que será bloqueada para os vizinhos de frente: os habitantes da comunidade Raízes da Praia, existente há pelo menos 15 anos.
Há algumas semanas eles foram surpreendidos com a instalação de um cercamento na faixa de praia que gerou reclamações entre moradores, banhistas, surfistas e pessoas que frequentavam esse trecho do mar. "Eu e minhas companheiras estamos participando de reuniões e mais reuniões dentro do assunto, já hoje teve gente aqui reunido, porque esse tipo de coisa sempre dá problema, né? Principalmente para as famílias ao redor. E fora que tira da gente o lazer, porque para as crianças daqui a única coisa que tinha era essa areninha", indica dona Angela Maria, conhecida como tia Rosa, é a principal representante da Raízes da Praia.
Com relação à estrutura, o superintendente Fábio Galvão (SPU/CE) atesta que "é necessária" e que não interfere no acesso à praia, pois "nos lados do cercamento tem um imenso acesso ao mar que não é prejudicado".
Ele reforça que "a Dessal traz uma segurança hídrica necessária para todas e todos". "As famílias hoje ali residem insalubremente, desordenadas, sem condições sanitárias de moradia e de equipamentos públicos sociais. Com a Dessal, além da usina, a área será toda urbanizada e serão instalados equipamentos públicos para uso comum de todas e todos, inclusive para essas mesmas famílias utilizarem, pois serão realocadas para moradias dignas ali próximo, tendo assim a dignidade atendida."
Para não violar direitos, obra só terá andamento após resolução dessas questões
A advogada Lourdes Vieira, do Escritório de Direitos Humanos e Assessoria Jurídica Popular Frei Tito de Alencar (EFTA), da Assembleia Legislativa do Estado do Ceará (Alece), que acompanha de perto a conjuntura, critica a falta de transparência que tem permeado a realização do projeto, cuja nova localização ainda era desconhecida pela população até a apuração da reportagem do O POVO publicada em junho.
"Nós temos questionado a ausência de publicização desse projeto e até oficiamos a Cagece solicitando, mas ainda não obtivemos resposta. A única coisa que nós tivemos acesso foi uma apresentação de PowerPoint bem básica", aponta.
Outro ponto de questionamento por parte do escritório é o licenciamento ambiental de responsabilidade da Superintendência Estadual do Meio Ambiente (Semace), já que a área é uma Zona de Proteção Ambiental (ZPA) onde há desova de tartarugas marinhas, olhos d'água, restinga (mata atlântica) e outras sensibilidades.
"Nós acreditamos que essa obra só terá andamento e conclusão após a resolução dessas questões de licenciamento ambiental, do problema habitacional dessas famílias e do estudo dos impactos que essa usina pode causar. Esse equipamento pode ser um grande violador de direitos, direitos ambientais, direitos humanos, então nossa perspectiva é evitar que danos maiores aconteçam", conclui a advogada.
Opinião que coaduna com o que pensa o coordenador do Escritório de Direitos Humanos Dom Aluísio Lorscheider (EDHAL), da Câmara Municipal de Fortaleza, Marcus Giovanni.
"Até agora a gente ainda não teve acesso a nenhum projeto definitivo da instalação da usina. Nossa preocupação é, sobretudo, antever qualquer problema que venha a acontecer. Uma percepção nossa é que os moradores daquela área têm muita resistência ao aluguel social por causa dos valores, que são insuficientes para os alugueis na Praia do Futuro, e eles não querem abandonar o lugar deles", pondera.
Giovanni acredita que "a instalação da usina é um problema multisetorial porque envolve vários aspectos da vida humana, desde o meio ambiente, passando pela questão do direito à moradia, direito à saúde, direito à memória, porque muita gente mora naquela região há anos e vai ter que sair".
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Este episódio foi disponibilizado primeiro para assinantes do OP . Nele, você confere também outras análises e a história da família que vive no local da "chacina dos portugueses", ao lado do terreno da Dessal, mas que não será reassentada.
Vela Latina: no local da "chacina dos portugueses", família sobrevive quase soterrada ao lado do terreno da Dessal — mas não será reassentada
O imóvel onde seis portugueses foram brutalmente assassinados em 12 de agosto de 2001 continua no mesmo lugar,masa força dos ventos já soterrou quase metade da antiga barraca Vela Latina.
Duas décadas depois, ao lado do terreno onde a usina Dessal será construída, uma ex-garçonete e sua filha continuam a lidar com os fantasmas do passado — e também com a falta de ação do poder público.
As duas moram no quarto vizinho ao cômodo onde os corpos foram ocultados, porém dizem temer mais os vivos do que os mortos. O sonho delas é a conquista de uma casa nova.
Lá vivea jovem Virna Lilian, de 28 anos, que era criança na época do crime bárbaro que chocou o Brasil e o mundo, com a mãe, Adelina Farias Barroso, hoje com 73 anos.
Quando soube do mapeamento das famílias afetadas pela construção da Dessal, Virna resolveu buscar ajuda: "A barraca é da minha mãe desde 1978, e a nossa realidade e de alguns barraqueiros mais antigos dessa região, é que fomos abandonados por todos".
"Eu moro aqui com minha mãe há mais de 25 anos, nunca tivemos nenhuma oportunidade de melhoria e só estamos sendo devastados pelo abandono do poder público. Nós não entramos na mesma situação que as ocupações aqui ao lado, eu pedi para passarem aqui (durante o mapeamento) e disseram que não iriam mexer", conta.
Procurada, a SPU explicou que a área da antiga barraca está fora do terreno da Dessal, "e dentro da poligonal da ação judicial geral das barracas, que tramita e aguarda decisão".
O imóvel fica "a uma distância de pelo menos 160 metros de onde será instalada a usina, por isso não foi incluída no mapeamento para reassentamento das famílias".
Após mais uma negativa, Virna segue: "Estamos literalmente sendo enterradas. A casa está sendo soterrada, é muita areia. Mas a prefeitura não pode fazer nada, o governo não pode fazer nada, até com a Defesa Civil eu já pedi para verem a nossa situação, mas também não podem nos ajudar. Estamos abandonadas".