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Há 30 anos, Cazuza partia deixando uma obra atemporal
Vida & Arte

Há 30 anos, Cazuza partia deixando uma obra atemporal

Morte de cantor e compositor carioca Cazuza completa 30 anos neste 7 de julho. No cenário artístico, reverbera ainda a força inconformada da juventude no indelével timbre rascante
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Sao Paulo 24 de outubro de 1988. O cantor e compositor Cazuza canta em show especial da TV Globo. (Foto ANA STEWART/AE) (Foto: ANA STEWART/AE)
Foto: ANA STEWART/AE Sao Paulo 24 de outubro de 1988. O cantor e compositor Cazuza canta em show especial da TV Globo. (Foto ANA STEWART/AE)

"Pouco importa o que essa gente vá falar mal". Voz gutural rasgando a laringe, pra lá de rouco, Cazuza entoou os primeiros versos da canção "Posando de star" — que abre o álbum de estreia do Barão Vermelho em 1892 — como uma profecia: "Falem mal". Agenor de Miranda Araújo Neto rebentou ao mundo em 4 de abril de 1958, no Rio de Janeiro. Filho do produtor fonográfico João Araújo (1935-2013) e da cantora Lucinha Araújo (1936 -), já nasceu Cazuza, moleque que mordeu a vida com dentes fortes e encheu a boca, lambeu os dedos. Símbolo do rock dos anos 1980, ele embarcou num trem pras estrelas com apenas 32 anos, em 7 de julho de 1990. Desses 30 anos passados, reverbera ainda a força inconformada da juventude que ecoa no timbre inesquecível.

Cazuza cresceu bebendo as palavras de Caetano Veloso, Elis Regina e Gilberto Gil na fonte: seu pai fundou a gravadora das Organizações Globo, a Som Livre, em 1969. Foi o rock de garagem, entretanto, que fez do palco a morada de Cazuza. Leo Jaime indicou o amigo para assumir os vocais de um até então quarteto surgido no bairro carioca do Rio Comprido, o Barão Vermelho. Começava ali, no primeiro ensaio entre Cazuza, Roberto Frejat, Guto Goffi, Maurício Barros e Dé Palmeira, o percurso artístico de um dos maiores letristas da música contemporânea brasileira.

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"A partir do momento em que o Cazuza começou a cantar a primeira música no ensaio, a gente percebeu que ele tinha energia e o astral que a gente queria; ele tinha um timbre de voz muito bonito", rememora o cantor e guitarrista Frejat. "O Cazuza tinha o barato de tocar com punch, com energia, com muito gás. Quando a gente tocou a primeira música e deu um breque, ele fez uma firula bem bluseada. 'Achamos o cara'", complementa o principal parceiro de Cazuza. Em 1982, com produção de Ezequiel Neves, o Barão gravou o hoje aclamado álbum que abriga sucessos como "Bilhetinho azul", "Todo amor que houver nessa vida" e "Down em mim".

Sensual, provocador, irônico e dono de uma acidez certeira, Cazuza carregava no corpo os anseios democráticos de um País que aspirava a vindoura abertura concretizada em 1985, após a ditadura militar (1964-1985). "O poeta e compositor era símbolo do povo que queria ter voz", defende o historiador e vereador cearense Evaldo Lima. "Em 1985, houve o show antológico do Barão Vermelho na primeira edição do Rock in Rio em que Cazuza cantou 'Pro Dia Nascer Feliz' exatamente na noite anterior à eleição do presidente Tancredo Neves. Anunciou em palco o fim dos anos de repressão no País. Precisamos sempre saudar os arquitetos da música brasileira que, como Cazuza, estabeleceram referências para novas vozes se erguerem contra a intolerância e o autoritarismo", adiciona.

Para a cantora e compositora cearense Mona Gadelha, Cazuza consolidou na década de 1980 a possibilidade escrever rock como poesia. "O Cazuza apresentou uma poética muito enriquecedora e contextualizada com esse começo da década de 1980, de uma transição política que misturava a esperança e medo", compartilha Mona. "Ele nos mostra que essa música transgressora, que essa música de origem negra que é o rock, pode se expandir de forma poética e bastante politizada, com uma mensagem sociopolítica muito forte. Esse modo de cantar do Cazuza de forma visceral sempre me trouxe muita admiração. O Cazuza foi singular nas tiradas, na sofisticação".

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Em 1985, Cazuza abandonou os vocais do Barão Vermelho e iniciou sua carreira solo com o álbum "Exagerado", que abriga canções como "Exagerado", "Mal nenhum" e "Codinome Beija-Flor". Já com o diagnóstico de aids, o cantor viaja aos EUA para tratamento naquele mesmo ano. Retorna ao Brasil e, em 1988, lança o LP "Ideologia", considerado um clássico do rock nacional. A turnê dirigida por Ney Matogrosso resultou no álbum ao vivo "O tempo não para" (1989).

Com toda a educação burguesa, criado no Leblon, Cazuza destilava terceiras intenções no seu exímio trabalho como letrista. "Sempre muito afiado, Cazuza dizia as coisas certas porque ele era fruto da burguesia e podia criticar o que conhecia no cotidiano", pontua Hertenha Glauce, professora e diretora teatral apaixonada por Cazuza desde a adolescência. O carioca lançou o LP "Burguesia" em 1989 e, já bastante debilitado, faleceu em julho de 1990. Para o guitarrista cearense Caike Falcão, a contribuição do astro foi imensurável para a formação musical de gerações de instrumentistas. "Para mim, hoje é muito natural falar e tocar Cazuza em 2020. Ele ainda é muito mais atual", destaca.

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Nestes sete anos de carreira meteórica, o cantor e compositor carioca ganhou páginas e mais páginas de jornais entre críticas e louvores. Cantou um Brasil desigual quando a ditadura agonizava e o País se afogava em saudosismos vazios. Gozou o amor livre de homens e mulheres perante uma nação careta. Cazuza ousou ser quem se era — "faz parte do meu show, meu amor". 

Frases

“Não me convidaram pra aquela festa pobre" quando resolveram que ele iria cantar e ser poeta no andar superior. Com certeza eu teria dito não! Ele me mostra a cara que o Brasil muitas vezes nunca quer enxergar. Eu amo Cazuza também por isso!
Aparecida Silvino, cantora e compositora

É muito interessante como, mesmo já com mais de 30 anos, as músicas ainda são tão atuais. Cazuza esteve e está com a gente ainda hoje. No movimento político, na paixão pela vida, na exacerbação da liberdade, na busca pelos direitos, no amor.
Guilherme Sampaio, vereador

O rock politizado do Cazuza reverbera com muita influência na cena artística brasileira, e não apenas no rock. Acredito que a música popular do nosso País teve na figura do cantor uma mudança de postura estética, poética e performática.
Evaldo Lima, vereador e historiador

O Cazuza foi realmente transformador. A partir do primeiro segundo que nós cinco nos juntamos em uma sala com tudo montado para fazer um som, a coisa fluiu de uma forma muito bacana. A gente soube na hora que aquele era o vocalista do Barão de Vermelho, que não tinha para ninguém.
Guto Goffi, baterista do Barão Vermelho

Ao retratar o Brasil da sua geração, Cazuza tornou-se atemporal. Sua poesia continua alimentando rebeldes e contestadores, tornando-se necessária no Brasil atual.
Clodomir Freire, professor de História

Ao retratar o Brasil da sua geração, Cazuza tornou-se atemporal. Sua poesia continua alimentando rebeldes e contestadores, tornando-se necessária no Brasil atual.
Clodomir Freire, professor de História

Acho que o maior legado que o Cazuza deixou não foram só as canções, o maior legado que ele deixou foi de coragem, de se declarar soropositivo no auge da beleza, da juventude, do sucesso.
Lucinha Araújo, mãe de Cazuza

 

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