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Dia Internacional da Felicidade: a busca pelo que é possível
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Dia Internacional da Felicidade: a busca pelo que é possível

Em cenário delicado de perdas, lutos e lutas, como encarar a felicidade? V&A conversa com especialistas sobre o amplo, inapreensível e indefinível conceito
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Comemorado no último sábado, 20, o Dia Internacional da Felicidade existe desde 2012 por iniciativa da ONU. O conceito do sentimento é amplo e indefinível e, a partir disso, as fotos deste material apresentam diferentes definições do que é felicidade na visão de profissionais do núcleo de imagem do O POVO. A foto acima é do fotógrafo Fabio Lima (Foto: Fabio Lima)
Foto: Fabio Lima Comemorado no último sábado, 20, o Dia Internacional da Felicidade existe desde 2012 por iniciativa da ONU. O conceito do sentimento é amplo e indefinível e, a partir disso, as fotos deste material apresentam diferentes definições do que é felicidade na visão de profissionais do núcleo de imagem do O POVO. A foto acima é do fotógrafo Fabio Lima

Uma risada compartilhada, um sonho alcançado, um momento de respiro. Abordado e refletido por vieses filosóficos, sociológicos e psicológicos, o conceito de "felicidade" é de difícil apreensão. As situações descritas - e inúmeras outras - podem servir como "definições" do sentimento, o que ressalta sua amplitude. É um desafio ainda mais acentuado percebê-la no contexto de pandemia que afeta o planeta há mais de um ano. Para refletir sobre a importância dos processos de luto e o lugar da felicidade possível neste panorama, o Vida&Arte convidou especialistas.

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"A felicidade é um conceito difuso principalmente porque diz respeito a vivências individuais. Não posso impor ao outro minha concepção de felicidade porque não sei quais experiências de vida ele/a teve e valoriza como importantes para si", aponta, de partida, a professora Valeschka Guerra, da Universidade Federal do Espírito Santo.

"Em termos históricos, a realização da felicidade do indivíduo sempre dependerá do contexto de cada época, dos ideais de justiça de uma dada sociedade e de seus projetos sociais, éticos e morais", ressalta a psicóloga clínica e social e professora de Psicologia da Universidade Federal do Ceará Fátima Severiano.

As especialistas citam registros de reflexões sobre o tema que vão de Confúcio (550 a.C.) e Buda (560 a.C.) às 289 definições que Santo Agostinho (354 d.C.- 430 d.C.) compilou sobre o termo, passando por Sócrates (470 a.C.), Aristóteles (385 a.C.) e os mais de 50 tratados sobre o conceito no século XVIII.

JL Rosa divide registro do nascimento da segunda filha como uma definição de felicidade
Foto: JL Rosa
JL Rosa divide registro do nascimento da segunda filha como uma definição de felicidade

Como destrincha Fátima, as condições para atingir a felicidade passavam na Antiguidade, conforme Aristóteles, pelo "cultivo da alma" em prol da pólis (cidade), enquanto, com o Cristianismo, a busca passou a se dar pela "comunhão com Deus". "No princípio da Modernidade, no século XVIII, os ideais do Iluminismo de racionalidade, universalidade e individualidade erigiram-se ao lado do discurso da ciência, com vistas a assegurar o bem-estar, o progresso e a felicidade humana", segue, citando a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) que considera como direito inalienável a busca pela felicidade.

"Nesses registros antigos, considerava-se que a felicidade se alcançava com a busca pelo auto aprimoramento, a conquista de virtudes que trariam para o indivíduo um nível de autorrealização e autodesenvolvimento. Com as mudanças sociais, industriais, tecnológicas, a noção do que é importante para a felicidade foi se alterando", explica Valeschka. "Se por um lado as virtudes e o auto aprimoramento continuaram em uma linha de pensamento como importantes, por outro surgiram concepções que exaltavam a importância dos bens materiais como resultado do esforço do trabalho individual e dos ganhos financeiros derivados destes", avança.

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Temporalmente, Fátima destaca a década de 1980, com "o paulatino desmantelamento do Estado do bem-estar social, do neoliberalismo e da Sociedade de Consumo", como um momento de "fragmentação das relações sociais comunitárias e das proteções institucionais, passando o indivíduo a ser o único responsável pela sua felicidade". Assim, o culto ao corpo e ao consumo se tornaram o caminho para a "aquisição" do sentimento.

As especialistas apontam a fortificação da tecnologia como elemento crucial para compreender o movimento. "A internet e as redes sociais entraram para exaltar ainda mais a importância de ter coisas específicas e de demonstrar formas de ser específicas, mas que não necessariamente são verdadeiras", observa Valeschka.

A fotógrafa Thais Mesquita divide uma versão imagética da felicidade nas páginas do V
Foto: Thais Mesquita
A fotógrafa Thais Mesquita divide uma versão imagética da felicidade nas páginas do V

As redes, avança Fátima, extrapolam a atuação como "meio de comunicação e informação" para servirem como "dispositivo modelador de ideais, afetos, desejos e emoções que ditam, aprovam ou refutam formas de 'ser feliz', regidos sob a lógica do mercado".

Pelo referencial psicanalítico, a busca humana pela felicidade, segundo Freud, é ao mesmo tempo inerente e não realizável em sua plenitude, como destaca Fátima. "Isto porque o princípio da realidade que rege as regras das relações humanas em sociedade frustra constantemente a afirmação plena de satisfação imediata do desejo do sujeito, o qual se realiza apenas parcialmente e de forma episódica. Assim, somos sujeitos faltosos, clivados, incompletos; sempre a desejar", elabora.

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Tudo isso tem relação direta com as formas de lidar com os próprios sentimentos em meio à pandemia porque a busca constante pela felicidade, neste contexto, causa prejuízos individuais e coletivos. É preciso compreender, então, os tempos de elaboração, luto e as dificuldades que o cenário impõe.

"Não se pode 'ser feliz' em meio à catástrofe da pandemia em que vivemos há um ano, com mais de 260 mil mortos, a não ser pela via da negação ou da perversidade", pontua Fátima, citando o marco de vidas perdidas quando da realização da entrevista; até o fechamento desta edição, o número saltou para quase 300 mil.

A vontade de voltar à "normalidade" é compreensível, apontam as especialistas, mas é preciso ter ciência do momento. "Na esfera psicossocial, o atravessamento desta crise nos confronta com toda sorte de afetos que eclodem constantemente: por um lado, há uma exacerbação do desamparo, medo e insegurança frente às incertezas do futuro. Por outro, este momento ímpar requer o aprendizado da pausa e do silêncio, a fim de compreendermos os processos internos e externos que estão ocorrendo", afirma Fátima.

Uma brincadeira na praia pode ser, também, um momento feliz, como no registro de JL Rosa da filha mais velha na Praia do Futuro
Foto: JL Rosa
Uma brincadeira na praia pode ser, também, um momento feliz, como no registro de JL Rosa da filha mais velha na Praia do Futuro

"Considero importante, então, que se busque, nesta brecha de tempo, olhar para dentro e para o fora que há dentro de nós, no intuito de questionar as anteriores constantes demandas por felicidade que ocorriam em face de uma extenuante compulsão por produção, aceleração e consumo do supérfluo", elabora a professora da UFC. Valeschka soma à sugestão: "Procure atribuir um sentido para os momentos bons e os momentos difíceis. E pratique a compaixão, seja gentil consigo mesmo e com outras pessoas. Se vamos sobreviver a esta pandemia, será como comunidade. Para isso, precisamos enfrentá-la juntos, cuidando uns dos outros". 

Bate-pronto

Entendendo a felicidade não como um imperativo ou algo a ser perseguido a todo custo, o Vida&Arte perguntou às professoras Fátima Severiano e Valeschka Guerra que trabalhos emocionais e recursos externos são bem-vindos para experienciar a felicidade possível no cenário global de pandemia. 

Fátima Severiano - É tempo de reavaliar os sonhos, reconhecer os desejos e limites próprios, abrir janelas para a criatividade, a solidariedade e o viver com sentido, desacelerando a felicidade compulsória e a euforia perpétua, sempre exigida e nunca alcançada. Em termos de recursos humanos externos, enquanto psicóloga, considero ser dever dos profissionais da área desvelar o engodo do imperativo da "felicidade", da "euforia perpétua" e das "soluções imediatas", acolhendo e escutando o sofrimento singular e os desejos de seus pacientes, enquanto um ser humano em situação de crise, em sua complexidade e seus limites.

Valeschka Guerra - Faça exercícios físicos. Não tente negar ou ignorar o que está acontecendo, agindo como se nada tivesse mudado. Ao mesmo tempo, não busque um excesso de informações que vai contribuir para o aumento do medo e da ansiedade. Pratique meditação. Escute música. Procure atribuir um sentido para os momentos bons e os momentos difíceis. E pratique a compaixão, seja gentil consigo mesmo e com outras pessoas.

 

6 pontos de ajuda

A professora Valeschka Guerra, da UFES, dividiu com o Vida&Arte alguns pontos identificados por especialistas até aqui que podem ajudar a encarar o período delicado da pandemia. Confira a lista abaixo e os detalhes dela no OP .

1- CONTROLE

Lembre-se que o sofrimento faz parte da vida e não temos controle de tudo
“Ao compreender isso, é possível não sofrer tanto pela ausência de controle, mas tentar seguir da forma que é possível naquele momento”, ressalta a professora.

2- A FELICIDADE NÃO É FIXA

É ilusória a concepção da felicidade como um estado fixo e constante
É ilusória a concepção da felicidade como um estudo fixo e constante.
“A felicidade não é uma ilha onde você chega e vive lá eternamente. A vida tem muitos momentos felizes, mas eles não são constantes e nem são esfuziantes o tempo inteiro. Precisamos valorizar outras emoções positivas, como gratidão, serenidade, paz de espírito, entre outras. São essas que nos acompanham com mais frequência no dia-a-dia e que, em geral, não percebemos por buscarmos algo intenso como sinônimo de felicidade”, aponta Valeschka.

3- AQUI E AGORA

Estar presente com corpo, mente e emoções no momento presente pode ajudar
“A prática da atenção plena, que é a habilidade de estar presente com seu corpo, mente e emoções no momento que está sendo vivenciado, no agora, está muito relacionada a uma redução de ansiedade e a um aumento dessas emoções positivas mais calmas, que nos trazem segurança”, indica a professora

4- FLEXIBILIDADE

Sem naturalizar as dificuldades do momento, adapte-se ao contexto
“Ter flexibilidade, adaptar-se ao que tem acontecido, faz parte de tudo isso, é o processo natural de evolução. Isso não quer dizer aceitar a morte de milhares de pessoas como algo natural ou negar que tanto sofrimento e luto tem acontecido. Isso quer dizer apenas aceitar, sem julgamento e sem briga interna, que uma adaptação é necessária nesse momento e que estamos construindo nossa vida como ela será a partir de agora. O mundo que existia antes da pandemia não existe mais. Agora, precisamos construir o mundo que queremos daqui pra frente. Para isso, precisamos nos manter vivos. A saúde está em primeiro lugar”, aponta.

5 - CONEXÕES

Mantenha contato e valorize relacionamentos
“É importante valorizar os relacionamentos positivos, manter contato virtual com pessoas importantes emocionalmente, conversar sobre outras coisas, não basear todas as suas conversas na pandemia”, afirma.

6- AUTO-ACOLHIMENTO

Tenha autocompaixão e busque ajuda profissional, se preciso
“É importante procurar ajuda profissional se estiver sentindo dificuldades com o enfrentamento desse período. E é importante ter autocompaixão: todos e todas estamos passando juntos por essa tempestade. Cada um em barcos diferentes, com condições diferentes. Para passarmos bem por ela, precisamos nos ajudar. É natural sofrer e estar ansioso(a), triste, em luto nesse momento. É uma reação completamente saudável do seu cérebro, mostrando que você compreende o que estamos vivendo. Por outro lado, se estiver agindo como se nada estivesse acontecendo, saindo, brincando e se divertindo, sem sentir nenhum tipo de efeito psicológico da pandemia, pode ser que precise de ajuda realmente pela negação dos fatos”, desvela a especialista.

Dia Internacional da Felicidade

A data foi instaurada em junho de 2012 pela Organização das Nações Unidas após a realização, em abril daquele mesmo ano, de uma reunião cujo tema era "Felicidade e Bem-Estar: Definindo um Novo Paradigma Econômico". Segundo o site oficial da Organização, a celebração do dia vem na intenção de reconhecimento da relevância da busca dos países por políticas que tragam bem-estar e felicidade às populações. Segundo a organização, são aspectos-chave para esta finalidade o fim da pobreza, a redução da desigualdade e a proteção do planeta. Além da atuação da ONU, o dia da felicidade é foco de atenção de uma campanha global coordenada pela organização sem fins lucrativos Action for Happiness (“ação pela felicidade”, em tradução). A instituição promove anualmente atividades para a data e, ainda, o lançamento de um relatório global que mede o índice do sentimento. Neste ano, a campanha se norteia pelo tema “Fique calmo. Siga sábio. Seja amável”. A edição de 2021 do relatório foi lançada ontem, 20.

Campanha Day of Happiness
Onde: www.dayofhappiness.net

Referências nas artes

Em canções célebres, prosa e verso ou no cinema, a felicidade é constantemente referenciada nas artes. Confira sugestões de obras para ler, ver e ouvir que abordam a emoção.

MÚSICA
“Wave”, canção romântica e célebre, foi escrita por Tom Jobim em 1967 e atesta: “Fundamental é mesmo o amor / É impossível ser feliz sozinho”. Outra música cantada por Tom, essa composta pelo parceiro Vinícius, é “A felicidade”.

Escrita para a trilha do longa “Orfeu Negro”, descreve poeticamente a emoção, tendo como mais conhecido verso “Tristeza não tem fim / Felicidade sim”. Um exemplo mais recente é “Felicidade”, de Marcelo Jeneci, que traz uma roupagem positiva e relaxante e define “Felicidade é só questão de ser”.

LITERATURA
O tema é central na área de não-ficção, seja a partir de obras de especialistas contemporâneos ou de abordagens mais ligadas à autoajuda. Os exemplos vão de “A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo”, do filósofo Gilles Lipovetsky, à “Felicidade: Modos de usar”, dos pensadores Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondé e Mário Sergio Cortella. Na ficção, Guimarães Rosa ensinou no conto “Barra da Vaca”, do livro “Tutameia”: “Felicidade se acha só é em horinhas de descuido”. O sentimento está também no título e no conteúdo de outro conto, “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, e da história “Onde estaes Felicidade?”, de Carolina Maria de Jesus.

CINEMA
De clássicos com mensagens edificantes a filmes contemporâneos que tensionam o conceito, a felicidade é presente enquanto tema em diferentes obras cinematográficas.

“A Felicidade Não Se Compra” (1946)

Dirigido por Frank Capra, o longa natalino apresenta um anjo enviado à Terra para ajudar um homem desesperado a compreender as coisas importantes da vida. Disponível na Telecine.

“Luzes da Ribalta” (1952)
Em trama escrita, dirigida e protagonizada por Charles Chaplin, o encontro entre uma dançarina deprimida e um comediante falido é o ponto de virada para ambos encontrarem propósito e esperança em suas vidas. O filme pode ser visto no Mubi.

“Simplesmente Feliz” (2008)

A animada e alegre professora Poppy (Sally Hawkins) exaspera as pessoas ao seu redor pelo nível de otimismo que emana. A comédia de Mike Leigh foi indicada ao Oscar de Melhor Roteiro Original.

“Feliz como Lázaro” (2018)

O filme de Alice Rohrwacher lança um olhar com recorte de classe ao tema. Na história, um camponês simples e gentil e sua família são constantemente explorados por uma mulher rica. É possível assistir ao filme na Netflix

 

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