Uma risada compartilhada, um sonho alcançado, um momento de respiro. Abordado e refletido por vieses filosóficos, sociológicos e psicológicos, o conceito de "felicidade" é de difícil apreensão. As situações descritas - e inúmeras outras - podem servir como "definições" do sentimento, o que ressalta sua amplitude. É um desafio ainda mais acentuado percebê-la no contexto de pandemia que afeta o planeta há mais de um ano. Para refletir sobre a importância dos processos de luto e o lugar da felicidade possível neste panorama, o Vida&Arte convidou especialistas.
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"A felicidade é um conceito difuso principalmente porque diz respeito a vivências individuais. Não posso impor ao outro minha concepção de felicidade porque não sei quais experiências de vida ele/a teve e valoriza como importantes para si", aponta, de partida, a professora Valeschka Guerra, da Universidade Federal do Espírito Santo.
"Em termos históricos, a realização da felicidade do indivíduo sempre dependerá do contexto de cada época, dos ideais de justiça de uma dada sociedade e de seus projetos sociais, éticos e morais", ressalta a psicóloga clínica e social e professora de Psicologia da Universidade Federal do Ceará Fátima Severiano.
As especialistas citam registros de reflexões sobre o tema que vão de Confúcio (550 a.C.) e Buda (560 a.C.) às 289 definições que Santo Agostinho (354 d.C.- 430 d.C.) compilou sobre o termo, passando por Sócrates (470 a.C.), Aristóteles (385 a.C.) e os mais de 50 tratados sobre o conceito no século XVIII.
Como destrincha Fátima, as condições para atingir a felicidade passavam na Antiguidade, conforme Aristóteles, pelo "cultivo da alma" em prol da pólis (cidade), enquanto, com o Cristianismo, a busca passou a se dar pela "comunhão com Deus". "No princípio da Modernidade, no século XVIII, os ideais do Iluminismo de racionalidade, universalidade e individualidade erigiram-se ao lado do discurso da ciência, com vistas a assegurar o bem-estar, o progresso e a felicidade humana", segue, citando a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América (1776) que considera como direito inalienável a busca pela felicidade.
"Nesses registros antigos, considerava-se que a felicidade se alcançava com a busca pelo auto aprimoramento, a conquista de virtudes que trariam para o indivíduo um nível de autorrealização e autodesenvolvimento. Com as mudanças sociais, industriais, tecnológicas, a noção do que é importante para a felicidade foi se alterando", explica Valeschka. "Se por um lado as virtudes e o auto aprimoramento continuaram em uma linha de pensamento como importantes, por outro surgiram concepções que exaltavam a importância dos bens materiais como resultado do esforço do trabalho individual e dos ganhos financeiros derivados destes", avança.
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Temporalmente, Fátima destaca a década de 1980, com "o paulatino desmantelamento do Estado do bem-estar social, do neoliberalismo e da Sociedade de Consumo", como um momento de "fragmentação das relações sociais comunitárias e das proteções institucionais, passando o indivíduo a ser o único responsável pela sua felicidade". Assim, o culto ao corpo e ao consumo se tornaram o caminho para a "aquisição" do sentimento.
As especialistas apontam a fortificação da tecnologia como elemento crucial para compreender o movimento. "A internet e as redes sociais entraram para exaltar ainda mais a importância de ter coisas específicas e de demonstrar formas de ser específicas, mas que não necessariamente são verdadeiras", observa Valeschka.
As redes, avança Fátima, extrapolam a atuação como "meio de comunicação e informação" para servirem como "dispositivo modelador de ideais, afetos, desejos e emoções que ditam, aprovam ou refutam formas de 'ser feliz', regidos sob a lógica do mercado".
Pelo referencial psicanalítico, a busca humana pela felicidade, segundo Freud, é ao mesmo tempo inerente e não realizável em sua plenitude, como destaca Fátima. "Isto porque o princípio da realidade que rege as regras das relações humanas em sociedade frustra constantemente a afirmação plena de satisfação imediata do desejo do sujeito, o qual se realiza apenas parcialmente e de forma episódica. Assim, somos sujeitos faltosos, clivados, incompletos; sempre a desejar", elabora.
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Tudo isso tem relação direta com as formas de lidar com os próprios sentimentos em meio à pandemia porque a busca constante pela felicidade, neste contexto, causa prejuízos individuais e coletivos. É preciso compreender, então, os tempos de elaboração, luto e as dificuldades que o cenário impõe.
"Não se pode 'ser feliz' em meio à catástrofe da pandemia em que vivemos há um ano, com mais de 260 mil mortos, a não ser pela via da negação ou da perversidade", pontua Fátima, citando o marco de vidas perdidas quando da realização da entrevista; até o fechamento desta edição, o número saltou para quase 300 mil.
A vontade de voltar à "normalidade" é compreensível, apontam as especialistas, mas é preciso ter ciência do momento. "Na esfera psicossocial, o atravessamento desta crise nos confronta com toda sorte de afetos que eclodem constantemente: por um lado, há uma exacerbação do desamparo, medo e insegurança frente às incertezas do futuro. Por outro, este momento ímpar requer o aprendizado da pausa e do silêncio, a fim de compreendermos os processos internos e externos que estão ocorrendo", afirma Fátima.
"Considero importante, então, que se busque, nesta brecha de tempo, olhar para dentro e para o fora que há dentro de nós, no intuito de questionar as anteriores constantes demandas por felicidade que ocorriam em face de uma extenuante compulsão por produção, aceleração e consumo do supérfluo", elabora a professora da UFC. Valeschka soma à sugestão: "Procure atribuir um sentido para os momentos bons e os momentos difíceis. E pratique a compaixão, seja gentil consigo mesmo e com outras pessoas. Se vamos sobreviver a esta pandemia, será como comunidade. Para isso, precisamos enfrentá-la juntos, cuidando uns dos outros".
Bate-pronto
Entendendo a felicidade não como um imperativo ou algo a ser perseguido a todo custo, o Vida&Arte perguntou às professoras Fátima Severiano e Valeschka Guerra que trabalhos emocionais e recursos externos são bem-vindos para experienciar a felicidade possível no cenário global de pandemia.
Fátima Severiano - É tempo de reavaliar os sonhos, reconhecer os desejos e limites próprios, abrir janelas para a criatividade, a solidariedade e o viver com sentido, desacelerando a felicidade compulsória e a euforia perpétua, sempre exigida e nunca alcançada. Em termos de recursos humanos externos, enquanto psicóloga, considero ser dever dos profissionais da área desvelar o engodo do imperativo da "felicidade", da "euforia perpétua" e das "soluções imediatas", acolhendo e escutando o sofrimento singular e os desejos de seus pacientes, enquanto um ser humano em situação de crise, em sua complexidade e seus limites.
Valeschka Guerra - Faça exercícios físicos. Não tente negar ou ignorar o que está acontecendo, agindo como se nada tivesse mudado. Ao mesmo tempo, não busque um excesso de informações que vai contribuir para o aumento do medo e da ansiedade. Pratique meditação. Escute música. Procure atribuir um sentido para os momentos bons e os momentos difíceis. E pratique a compaixão, seja gentil consigo mesmo e com outras pessoas.
6 pontos de ajuda
A professora Valeschka Guerra, da UFES, dividiu com o Vida&Arte alguns pontos identificados por especialistas até aqui que podem ajudar a encarar o período delicado da pandemia. Confira a lista abaixo e os detalhes dela no OP .
1- CONTROLE
Lembre-se que o sofrimento faz parte da vida e não temos controle de tudo
“Ao compreender isso, é possível não sofrer tanto pela ausência de controle, mas tentar seguir da forma que é possível naquele momento”, ressalta a professora.
2- A FELICIDADE NÃO É FIXA
É ilusória a concepção da felicidade como um estado fixo e constante
É ilusória a concepção da felicidade como um estudo fixo e constante.
“A felicidade não é uma ilha onde você chega e vive lá eternamente. A vida tem muitos momentos felizes, mas eles não são constantes e nem são esfuziantes o tempo inteiro. Precisamos valorizar outras emoções positivas, como gratidão, serenidade, paz de espírito, entre outras. São essas que nos acompanham com mais frequência no dia-a-dia e que, em geral, não percebemos por buscarmos algo intenso como sinônimo de felicidade”, aponta Valeschka.
3- AQUI E AGORA
Estar presente com corpo, mente e emoções no momento presente pode ajudar
“A prática da atenção plena, que é a habilidade de estar presente com seu corpo, mente e emoções no momento que está sendo vivenciado, no agora, está muito relacionada a uma redução de ansiedade e a um aumento dessas emoções positivas mais calmas, que nos trazem segurança”, indica a professora
4- FLEXIBILIDADE
Sem naturalizar as dificuldades do momento, adapte-se ao contexto
“Ter flexibilidade, adaptar-se ao que tem acontecido, faz parte de tudo isso, é o processo natural de evolução. Isso não quer dizer aceitar a morte de milhares de pessoas como algo natural ou negar que tanto sofrimento e luto tem acontecido. Isso quer dizer apenas aceitar, sem julgamento e sem briga interna, que uma adaptação é necessária nesse momento e que estamos construindo nossa vida como ela será a partir de agora. O mundo que existia antes da pandemia não existe mais. Agora, precisamos construir o mundo que queremos daqui pra frente. Para isso, precisamos nos manter vivos. A saúde está em primeiro lugar”, aponta.
5 - CONEXÕES
Mantenha contato e valorize relacionamentos
“É importante valorizar os relacionamentos positivos, manter contato virtual com pessoas importantes emocionalmente, conversar sobre outras coisas, não basear todas as suas conversas na pandemia”, afirma.
6- AUTO-ACOLHIMENTO
Tenha autocompaixão e busque ajuda profissional, se preciso
“É importante procurar ajuda profissional se estiver sentindo dificuldades com o enfrentamento desse período. E é importante ter autocompaixão: todos e todas estamos passando juntos por essa tempestade. Cada um em barcos diferentes, com condições diferentes. Para passarmos bem por ela, precisamos nos ajudar. É natural sofrer e estar ansioso(a), triste, em luto nesse momento. É uma reação completamente saudável do seu cérebro, mostrando que você compreende o que estamos vivendo. Por outro lado, se estiver agindo como se nada estivesse acontecendo, saindo, brincando e se divertindo, sem sentir nenhum tipo de efeito psicológico da pandemia, pode ser que precise de ajuda realmente pela negação dos fatos”, desvela a especialista.
Dia Internacional da Felicidade
A data foi instaurada em junho de 2012 pela Organização das Nações Unidas após a realização, em abril daquele mesmo ano, de uma reunião cujo tema era "Felicidade e Bem-Estar: Definindo um Novo Paradigma Econômico". Segundo o site oficial da Organização, a celebração do dia vem na intenção de reconhecimento da relevância da busca dos países por políticas que tragam bem-estar e felicidade às populações. Segundo a organização, são aspectos-chave para esta finalidade o fim da pobreza, a redução da desigualdade e a proteção do planeta. Além da atuação da ONU, o dia da felicidade é foco de atenção de uma campanha global coordenada pela organização sem fins lucrativos Action for Happiness (“ação pela felicidade”, em tradução). A instituição promove anualmente atividades para a data e, ainda, o lançamento de um relatório global que mede o índice do sentimento. Neste ano, a campanha se norteia pelo tema “Fique calmo. Siga sábio. Seja amável”. A edição de 2021 do relatório foi lançada ontem, 20.
Campanha Day of Happiness
Onde: www.dayofhappiness.net
Referências nas artes
Em canções célebres, prosa e verso ou no cinema, a felicidade é constantemente referenciada nas artes. Confira sugestões de obras para ler, ver e ouvir que abordam a emoção.
MÚSICA
“Wave”, canção romântica e célebre, foi escrita por Tom Jobim em 1967 e atesta: “Fundamental é mesmo o amor / É impossível ser feliz sozinho”. Outra música cantada por Tom, essa composta pelo parceiro Vinícius, é “A felicidade”.
Escrita para a trilha do longa “Orfeu Negro”, descreve poeticamente a emoção, tendo como mais conhecido verso “Tristeza não tem fim / Felicidade sim”. Um exemplo mais recente é “Felicidade”, de Marcelo Jeneci, que traz uma roupagem positiva e relaxante e define “Felicidade é só questão de ser”.
LITERATURA
O tema é central na área de não-ficção, seja a partir de obras de especialistas contemporâneos ou de abordagens mais ligadas à autoajuda. Os exemplos vão de “A felicidade paradoxal: ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo”, do filósofo Gilles Lipovetsky, à “Felicidade: Modos de usar”, dos pensadores Leandro Karnal, Luiz Felipe Pondé e Mário Sergio Cortella. Na ficção, Guimarães Rosa ensinou no conto “Barra da Vaca”, do livro “Tutameia”: “Felicidade se acha só é em horinhas de descuido”. O sentimento está também no título e no conteúdo de outro conto, “Felicidade Clandestina”, de Clarice Lispector, e da história “Onde estaes Felicidade?”, de Carolina Maria de Jesus.
CINEMA
De clássicos com mensagens edificantes a filmes contemporâneos que tensionam o conceito, a felicidade é presente enquanto tema em diferentes obras cinematográficas.
“A Felicidade Não Se Compra” (1946)
Dirigido por Frank Capra, o longa natalino apresenta um anjo enviado à Terra para ajudar um homem desesperado a compreender as coisas importantes da vida. Disponível na Telecine.
“Luzes da Ribalta” (1952)
Em trama escrita, dirigida e protagonizada por Charles Chaplin, o encontro entre uma dançarina deprimida e um comediante falido é o ponto de virada para ambos encontrarem propósito e esperança em suas vidas. O filme pode ser visto no Mubi.
“Simplesmente Feliz” (2008)
A animada e alegre professora Poppy (Sally Hawkins) exaspera as pessoas ao seu redor pelo nível de otimismo que emana. A comédia de Mike Leigh foi indicada ao Oscar de Melhor Roteiro Original.
“Feliz como Lázaro” (2018)
O filme de Alice Rohrwacher lança um olhar com recorte de classe ao tema. Na história, um camponês simples e gentil e sua família são constantemente explorados por uma mulher rica. É possível assistir ao filme na Netflix