Em abril de 1977, Sebastião Lima da Silva, José Claudio Nogueira, Francisca Silva, José Garcia de Santos Gomes e Ivan José de Assis vestiram roupas com suas identificações nas costas e começaram a pintar um painel colaborativo durante o XXVII Salão de Abril, em Fortaleza. Enquanto elaboravam a obra, seus nomes artísticos ficavam em destaque para o público: eram, respectivamente, Babá, Claudionor, Chica da Silva, Garcia e Ivan.
Os cinco artistas estavam ali de maneira simbólica, porque não iriam participar da premiação oficial do evento. O objetivo era mostrar aos fortalezenses que eles não eram falsificadores. Cada um tinha habilidades próprias. Todos haviam aprendido suas técnicas na Escola do Pirambu, de Chico da Silva (1910 - 1985), e mereciam reconhecimento.
A performance, denominada de "Homens Trabalhando", havia sido proposta pelo pintor e desenhista Hélio Rola com o objetivo de valorizar os integrantes daquele movimento. Era uma tentativa de reparação histórica após os cinco terem sido taxados de "falsos artistas" pela mídia cearense e pelo meio das artes.
Essa fama negativa havia começado anos antes, quando o artista Chico da Silva criou um espaço de produção coletiva com as crianças e os adolescentes do bairro em que morava. Os jovens aprendiam ao seu lado, e, no fim, ele assinava. As polêmicas seguiram até o fim de sua carreira e também paraivam entre os principais participantes da escola.
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Na época da produção da obra, Chico estava internado em um hospital psiquiátrico, mas teve autorização para sair com a supervisão de Hélio Rola, que era médico. Depois dessa demonstração, o painel precisava de um lugar para ficar, porque Hélio viajaria para Paris para fazer um pós-doutorado e os artistas ainda não haviam decidido seu destino.
"Por isso, eu levei para a então diretora da biblioteca da faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC). Perguntei se não teria espaço para deixar, onde não iria importunar", explica ele, que também era professor da instituição.
Quando retornou, tentou buscar a pintura "Homens Trabalhando" na universidade, mas não conseguiu. De acordo com ele, a UFC sempre demonstrava algum impedimento. "Não houve doação, nenhum documento, simplesmente foi um lugar que foi colocado temporariamente", afirma.
Mesmo com várias tentativas de obter a obra de volta, não conseguiu avanços. Durante as décadas, afirma que enviou e-mails quando havia uma nova direção ou de maneira esporádica. As respostas, segundo ele, eram semelhantes. "Quando chegava no Museu de Arte da UFC (Mauc), apesar de não ter documentos, o painel não voltava para nós", comenta.
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Entre as últimas tentativas, destaca-se a do 71º Salão de Abril, que, em 2020, homenageou Chico da Silva. Com o apoio do curador Paulo Portella Filho, houve uma movimentação para retomar ao tema. No catálogo oficial, por exemplo, há textos que explicam a situação.
O conteúdo também registra documentos que estavam perdidos, como a reprodução da série "Patrimônios Popular: Os Pintores do Pirambu", divulgada no 29º Congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), em 1977, que aborda a história dos artistas da escola. Ainda há fotos realizadas durante a performance "Homens Trabalhando", que foram feitas por Marcos Valle e João Valle.
A busca mais recente pelo painel ocorreu durante a curadoria da exposição "Um Atlas para o Hélio Rola", para o Museu de Arte Contemporânea do Ceará (Mac Dragão). "Eu, enquanto curadora, entrei em contato com a direção do Mauc e disse que queria o painel para expor, porque é uma parte importante da história do Hélio Rola", indica a curadora e pesquisadora Flávia Muluc. "O Mauc disse que ficou exposto esse tempo todo e que iria para um restauro. Por isso, não seria emprestado", revela.
A trajetória de Hélio com o Chico da Silva e a Escola do Pirambu estão mesmo entrelaçadas. No início dos anos 1970, familiar com as polêmicas acerca da falsificação, o cearense decidiu criar um grupo de estudos ao lado de Gilberto Brito, restaurador de obras de arte, e do cientista político David Silberstein. Os três avaliaram os modos de produção artística no bairro.
Depois incentivou a valorização dos artistas por meio da performance. Também levou vários dos quadros de Babá, Claudionor, Chica da Silva, Garcia e Ivan para vender na Europa, enquanto estava no pós-doutorado. Detentor de uma variedade de pinturas dos cinco, ele comenta: "É uma coleção que mostra a competência real e as características da Escola do Pirambu, que era rechaçada pela classe elitista."
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Durante as décadas de tentativa para obter o "Homens Trabalhando" de volta, vários pintores que participaram da performance morreram. No momento, os remanescentes são Garcia e Babá.
Com o objetivo de pressionar a instituição a devolver a obra ou a adquiri-la formalmente, um grupo de pessoas do meio artístico criou a petição on-line "Justiça para os pintores da Escola do Pirambu - Chico da Silva". A iniciativa, que conta com o perfil no Instagram @escoladopirambu, foi idealizada pela curadora Flávia Muluc e pelo artista cearense Rafael Limaverde.
O POVO buscou posicionamento da Universidade Federal do Ceará, que respondeu com a seguinte nota: "Por ser a presença do referido painel artístico na Universidade Federal do Ceará um fato que já ultrapassa quatro décadas, a administração da Instituição informa que somente se pronunciará sobre o tema caso seja instada por canais oficiais e por interessados que apresentem razões de fato e de direito sobre o painel. Logo, sem mais a declarar por ora."
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Ciclos que retornam a Chico
"A vida é feita por ciclos que começam em um ponto e podem durar uma vida inteira". A frase de Paulo Portella Filho, artista plástico e curador do Salão de Abril de 2020, resume sua relação com Chico da Silva. Ele já conhecia e admirava o pintor acreano desde a juventude, mas as informações que tinha dele eram permeadas pelas polêmicas que lia nos jornais.
Trabalhava na Pinacoteca do Estado de São Paulo quando conheceu Hélio Rola, em 1977. "A diretora me apresentou a ele, que era um jovem artista e professor. Ele me presenteou com um opúsculo sobre Chico da Silva e os pintores do Pirambu", recorda.
Pela primeira vez, ele tinha um resumo consistente da história que conhecia de forma fragmentada. A partir daquele conteúdo, ficou encantado e decidiu conhecer o pintor no Ceará, indo visitá-lo no Pirambu.
Mais de três décadas depois, um novo encontro. No ano passado, teve a oportunidade de trabalhar com o artista que o conectou ao Estado desde o início: Chico da Silva seria o homenageado do Salão de Abril, evento em que era o curador.
No processo de pesquisa, retomou o contato com o artista naif. "Até que encontrei o Salão de 1977, noticiando a performance proposta pelo Hélio Rola. Era o painel 'Homens Trabalhando', o mesmo assunto de sua conversa em São Paulo naquele ano", conecta. Os dois, então, passaram a buscar documentação histórica do evento e registraram o que foi encontrado no catálogo.
"Eles (artistas da Escola do Pirambu) são autores de um patrimônio visual. A situação deve ser legalizada e seria uma generosa oportunidade de reconhecimento. Antes, não tínhamos os fios dessa história. Nós não conhecíamos, mas, em paralelo, um grupo de pessoas reconstituiu o assunto e está prestando um favor à cultura. Esse trabalho ajuda a universidade a aproximar pontes que estavam desligadas nesses 40 anos."
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