“Amanheceu um novo dia e tudo é sempre igual / Um loop eterno de notícias tristes no jornal / Mentiras e verdades que confundem o cidadão de bem / Eu sei quem é quem, eu sei quem é quem”. A música “Carta ao Futuro”, da banda de rock Detonautas, foi lançada em agosto de 2020, mês em que o Brasil alcançou a triste marca de 100 mil mortes pela Covid-19. Um ano depois, o País chega a mais de 560 mil vítimas da doença e o “loop” anunciado pela canção parece continuar. Para falar criticamente sobre o que tem acontecido no País, a banda seguiu criando mais canções e, em julho, lançou seu sétimo álbum de estúdio. Em entrevista exclusiva ao Vida&Arte, o cantor e compositor do grupo Tico Santa Cruz reverbera as mensagens transmitidas pelo trabalho, discute sobre as ações do governo de Jair Bolsonaro (sem partido) e a construção do mais recente disco.
Se os Beatles têm seu álbum branco e o Metallica o seu álbum preto, agora o Detonautas, formado por Tico Santa Cruz, Fábio Brasil, André Macca, Phil e Renato Rocha, tem a cor laranja para marcar seu novo disco. Em sua capa, o “Álbum Laranja”, além de fazer referências às bandas citadas, faz alusão ao caso de suspeitas de candidaturas laranjas em 2019 no PSL em Minas Gerais. Com isso, uma introdução ao conteúdo que o trabalho traz em suas 11 faixas.
Nas palavras do vocalista, o Detonautas “foi vivendo a pandemia e vendo as angústias, revoltas e indignações” do período e traduzindo seus eventos em “crônicas” musicais. Assim, o álbum reúne singles lançados pela banda desde 2020 e mais três faixas inéditas, sendo uma a versão acústica de “Carta ao Futuro”, canção que abriu esse processo.
Além de “Carta ao Futuro”, o disco apresenta as músicas “Micheque”, em referência aos R$ 89 mil em cheques depositados por Fabrício Queiroz na conta da primeira-dama Michelle Bolsonaro, “Político de Estimação”, que fala sobre uma visão de “idealização de nomes políticos”, e “Racismo é Burrice”, em parceria com o rapper Gabriel, O Pensador, para abordar o racismo no Brasil.
O posicionamento crítico acompanha a banda e o vocalista há muito tempo. No caso de Tico, isso faz parte de sua personalidade “desde jovem”, com seu interesse pelas áreas de história e geografia e também por debates. Não à toa, então, se formou em Ciências Sociais. Quanto ao Detonautas, o interesse por abordar questões políticas e sociais em sua trajetória também não é recente:
“O Detonautas tem uma coerência muito grande ao longo dos seus mais de 23 anos, porque sempre foi uma banda que fez questão de usar o espaço no palco e na internet para fazer críticas, análises, questionamentos e até elogios, quando necessário”, aponta o músico. Assim, com o pensamento de que a “classe artística tem uma função além do entretenimento”, a banda sentiu a necessidade de lançar esse novo trabalho falando sobre as condutas do governo de Jair Bolsonaro e a pandemia.
Na visão do compositor, “Carta ao Futuro” fala sobre “todos os problemas vividos” com a gestão de Bolsonaro, fazendo menções a ataques à cultura, às instituições democráticas e também ao negacionismo científico. “Ela, por si só, é uma crônica bastante eficiente do que está acontecendo no País”, alega.
Em meio a isso, surge o questionamento sobre o futuro do Brasil, passando também por tomadas de decisões coletivas a respeito de cargos políticos. O cantor declarou voto em Ciro Gomes (PDT) caso ele concorra às eleições presidenciais em 2022, mas afirma que seu apoio é direcionado ao projeto apresentado pelo político, e não pela sua pessoa. Além disso, chegou a afirmar que “não atacará o Lula ou o PT”, pois o foco seria a saída de Jair Bolsonaro da presidência.
Para além de candidatos, Tico defende a avaliação de projetos: “Por outro lado, eu entendo que o Brasil já passou pela fase do PT e do Lula, então eu quero experimentar uma outra forma de governo. Para isso, eu tenho que estudar um planejamento, um projeto. Se nós conseguirmos sair um pouco da discussão dos nomes e partirmos para a discussão de projetos, eu acho que os brasileiros começarão a perceber que não adianta acharmos que só nomes vão resolver problemas se não houver um projeto de País”.
Quem o acompanha nas redes sociais percebe seu interesse em apresentar discussões sobre conceitos que envolvem campos de espectros políticos e sobre eventos que marcaram o Brasil, como a ditadura militar. Em sua visão, um "trabalho de conscientização política” para que as pessoas que o seguem na internet “sejam capazes de fazer análises por conta própria”.
Ele comenta que é transparente em seus posicionamentos: “Eu sou um artista que as pessoas me conhecem para o bem e para o mal. Houve fases que alguns artistas nem queriam estar do meu lado, não queriam me dar espaço para cantar nem dar palco, porque achavam que eu estava ali defendendo o PT e a Dilma. Acho que agora ficou bem claro que de que lado eu estou: ao lado da democracia”.
O Álbum Laranja é marcado por reunir críticas contundentes, sim, mas o trabalho também abre espaço para abordar sentimentos que têm feito parte da rotina de muitas pessoas durante a pandemia, como solidão, medo e incertezas. Com as faixas “Fica Bem” e “Clareiras”, a banda busca transmitir uma “abordagem mais afetiva”, de acolhimento e de esperança.
“Nós entendemos que é necessário ter acolhimento e palavras de amor, carinho e afeto para que aqueles que estão lutando se sintam fortalecidos internamente para poderem seguir”, comenta Tico Santa Cruz. A banda ainda prevê o lançamento de mais um disco neste ano, mas dessa vez um trabalho “completamente diferente da abordagem política” que é apresentada no Álbum Laranja. Reforçando a “complexidade” do ser humano, Tico Santa Cruz acredita que o Detonautas retrata esse aspecto e que é “muito claro sobre suas posições”: “Eu sou esse cara com um monte de tatuagem, de ideia na cabeça e de revolução no coração. Acho que esse é o meu papel como artista no Brasil”.
"O silêncio é uma posição política"
No sexto episódio do Vida&Arte Convida, a cantora Ana Cañas comentou que, atualmente, “não é mais cabível adotar uma postura de isenção”, ou seja, não se manifestar diante da conduta do governo federal na pandemia. Para Tico Santa Cruz, essa é uma fala “muito poderosa”, mas que, em sua visão, “não podemos interpretar o silêncio como isenção”:
“Eu sou um pouco mais duro nesse sentido. Eu acho que o silêncio é uma posição política, é conivência, é compactuar com o que está acontecendo. Eu acho que quem está em silêncio poderia estar de alguma maneira participando, ainda que fosse para divulgar informações relacionadas à importância de usar máscaras, de fazer distanciamento físico e de se vacinar. Quando alguém que tem visibilidade se cala em relação a isso que está acontecendo, está sendo conivente, está compactuando com as fake news e com as mentiras que fazem parte do bolsonarismo".
Ele acrescenta : “Nós não estamos pedindo para você escolher o Lula, o Ciro, o Haddad, o Dória ou qualquer político. Não é sobre isso que estamos falando. Estamos falando sobre a democracia, sobre a saúde, sobre a vida. Então, eu acho que quem fica em silêncio está sendo conivente e covarde”.
Álbum Laranja
Onde escutar: smb.lnk.to/AlbumLaranja
Acompanhe o trabalho: @detonautas e @ticostacruz no Instagram e no Twitter
O POVO MAIS
Tico Santa Cruz é o entrevistado do 7º episódio do Vida&Arte Convida, disponível na seção “Séries e Docs” do O POVO+. O músico repercute a construção do Álbum Laranja e também reflete sobre a atual conjuntura política vivida no Brasil, a administração do governo federal diante da pandemia, eleições presidenciais e a necessidade de se posicionar a favor da democracia.