"Uma luz para o cinema" — era o editorial do O POVO de 8 de setembro de 2001. A publicação tinha relação com a Medida Provisória (MP) nº 2.219, assinada pelo presidente Fernando Henrique Cardoso (FHC) quatro dias antes. "Essa agência vai monitorar toda a indústria cinematográfica", dizia trecho do artigo. O documento foi revogado e reeditado, com alteração pela MP nº 2.228-1, de 6 de setembro daquele ano. Assim, há exatamente duas décadas, nascia a Agência Nacional do Cinema (Ancine). Uma agência reguladora de fomento, regulação e fiscalização do mercado audiovisual brasileiro.
A medida também estabeleceu a Política Nacional do Cinema, criou o Conselho Superior do Cinema, instituiu o Programa de Apoio ao Desenvolvimento do Cinema Nacional (Prodecine), autorizou a criação de Fundos de Financiamento da Indústria Cinematográfica Nacional (Funcines) e alterou a legislação sobre a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional (Condecine). À época, isso significava uma nova era para a indústria do cinema. Após onze anos da extinção dos órgãos públicos de apoio à cultura pelo Governo Collor, "uma luz" surgiu.
A Ancine tornou-se a principal responsável pela viabilização de recursos para o cinema nacional, além de regrar todo o segmento. Um órgão público tão específico, ligado à cultura, chega aos 20 anos de existência em meio às constantes ameaças de desmonte pelo Governo Federal. O presidente da república já havia anunciado: "Vamos buscar a extinção da Ancine", em 25 de julho de 2019, numa transmissão virtual. A promessa não foi cumprida, já que a agência foi criada por lei. Os trâmites para extingui-la não são tão simples assim.
No entanto, segundo artistas, pesquisadores e gestores da Cidade, ligados à indústria audiovisual, a Ancine sobrevive a uma crise institucional. A instabilidade teria iniciado em 2016, quando Michel Temer assumiu a presidência, e se agravado com a política de esfacelamento cultural de Bolsonaro. Após o Tribunal de Contas da União (TCU) questionar a prestação da Ancine em 2019, o órgão, ao invés de organizar os processos, paralisou os recursos. No mesmo ano, a Ancine foi transferida para o Ministério do Turismo.
Desde então, a agência não lançou linhas do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA) nem editais, interrompeu os Arranjos Regionais (política que libera recursos para estados e municípios), suspendeu o Programa de Apoio Internacional (suporte a filmes exibidos fora do País) e tão pouco consegue alterar o quadro de funcionários ou captar recursos. Quando considerada a pandemia da Covid-19, as medidas são agravadas.
Lays Antunes, cineasta e gestora da produtora Memorabilia, trabalha com escrita de roteiros e projetos. Esses trabalhos prospectam financiamento da Ancine. Na Gavulino Filmes, por exemplo, ela desenvolvia projetos para inscrição em editais (a maioria apoiados pela agência). “Brasil Joiado”, “Ah, Quer Saber?!” e “Na Raiz dos Festejos” são alguns. "(Com a crise), meu trabalho de desenvolver projetos já era. Sem falar que isso gera instabilidade no mercado todo. Salários baixam e trabalhos ficam mais escassos. Sinto como se eu tivesse passado anos construindo um saber, o de escrever bons projetos, de compreender as normativas da Agência e do FSA... E tendo meu trabalho atacado por essa postura do governo em relação à cultura. Tá bem difícil. Isso mexe com nosso psicológico e nossos sonhos".
Num cenário ideal, as duas décadas da Ancine "estariam coroadas por números incríveis", diz Lays. Para a cineasta, muitas das produções que alcançaram certo prestígio existem por conta da agência. "Ou o governo cai, ou vamos ter um retrocesso muito parecido com o da 'era Collor' no audiovisual. Vamos sempre continuar lutando e resistindo aos ataques e às tentativas de nos silenciar e acabar com os fundos, que ao contrário do que muitos pensam, é lucrativo para a União", assegura. O cinema brasileiro gerou mais de R$ 2,7 bilhões de renda em 2019, segundo dados do Observatório Brasileiro do Cinema e do Audiovisual (OCA).
A produtora Caroline Louise, da Marrevolto Filmes, concorda: "Nunca pensei que toda uma política de anos sendo construída poderia ir por água abaixo em tão pouco tempo. Só consigo enxergar uma esperança com o fim deste governo". Atuando no cinema desde 2009, Caroline teve suas primeiras grandes produções realizadas com recursos da Ancine. Segundo a produtora, a Marrevolto só está "aberta" porque a empresa foi contemplada no último edital promovido pela agência, em 2018. "Tinha um recurso bom e conseguiu fazer com que a gente se mantivesse trabalhando. Desde 2018 não teve mais edital. Imagina que várias empresas do Brasil estavam a todo momento trabalhando, você terminava um projeto e começava outro... Essa roda parou", salienta.
Para a professora Bete Jaguaribe, diretora de formação do Instituto Dragão do Mar (IDM), a Ancine, numa articulação com o Ministério da Cultura (extinto por Bolsonaro), é essencial para o desenvolvimento do cinema brasileiro. "Todos os países do mundo possuem estruturas de fomento. O cinema, além de ser uma forte economia mundial, é importantíssimo para a identidade cultural de um povo".
A professora classifica como "muito grave" o momento que a Ancine vive. "O desmonte da Ancine, patrocinado pelo Governo Bolsonaro, é mais um exemplo do que está acontecendo com todas as demais políticas públicas do País. Estamos num momento muito grave no Brasil, com quase 600 mil mortes de Covid, e um presidente sugerindo que os brasileiros comprem armas, ao invés de feijão".
Segundo Bete, há um contexto de morte física e simbólica. "O Governo Bolsonaro escolheu os artistas como alvo prioritário, criminalizando a arte e patrocinando o maior desmonte da estrutura pública de cultura do País. A Ancine insere-se nesse contexto de tragédia. Em termos de prospecção de futuro, só há uma saída. A derrota de Bolsonaro nas urnas, num pleito democrático. Os democratas do Brasil devem andar juntos nessa jornada, porque será um caminho difícil, considerando que estamos enfrentando patrocinadores de uma cultura de morte".
As fontes da reportagem apontaram que o apogeu da Ancine ocorreu durante as gestões de Manoel Rangel na diretoria-presidência da agência. Durante o período (2006 - 2017), foi implementado um Plano de Desenvolvimento, a média de produção chegou a 100 filmes por ano e diversos setores foram ativados. “Uma talentosa geração de realizadores emergiu nesse cenário, com a participação de todas as regiões, numa configuração em que a diversidade estética transformou-se no grande diferencial da produção audiovisual do País”, acrescenta Bete Jaguaribe.
Recentemente, o secretário Especial da Cultura, Márcio Frias, aprovou uma linha de investimentos para produções audiovisuais sobre a temática dos 200 anos da Independência (que será comemorado em 2022). O Edital, ainda sem data de lançamento, prevê R$ 30 milhões de investimento, para contemplar cerca de 20 projetos. A seleção será realizada por uma comissão mista, formada por servidores da pasta, da Ancine e por profissionais do audiovisual. O POVO tentou contato com a Ancine, mas não obteve retorno até o fechamento desta edição.
"A Ancine vive um momento de crise institucional"
O pesquisador, crítico e curador de cinema Marcelo Ikeda lança o livro “Utopia da Autossustentabilidade: impasses, desafios e conquistas da Ancine” pela Editora Sulina. A obra expande as ideiais do livro “Cinema brasileiro a partir da retomada: aspectos econômicos e políticos” (2015) — fruto de sua dissertação de mestrado em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF) — e traça um novo panorama sobre a consolidação das políticas públicas para o audiovisual desde a virada do milênio. Ikeda trabalhou na Agência Nacional do Cinema (Ancine) entre 2002 e 2010. Desde 2010, é professor do curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal do Ceará (UFC). Ao O POVO, ele aponta os destaques dos 20 anos de Ancine.
O POVO - Em que contexto a Ancine surgiu?
Marcelo Ikeda - Em 1990, o presidente Fernando Collor acabou com todos os órgãos de apoio à cultura e ao cinema brasileiro. Ele acabou com a Embrafilme (Empresa Brasileira de Filmes S.A), o Concine (Conselho Nacional de Cinema) e a Fundação do Cinema Brasileiro. Após o impeachment do Collor, houve uma reconstrução do apoio do Estado às atividades culturais. Com as leis de incentivo fiscais, com a Lei Rouanet e, especialmente a Lei do Audiovisual, entramos num processo chamado "retomada do cinema brasileiro". O cinema brasileiro chegou, ao final da década de 1990, com cerca de 8% ou 9% de participação de mercado. As leis de incentivo tiveram um papel fundamental para a recuperação do cinema brasileiro depois do Governo Collor. Mas ficava claro que só as leis de incentivo não seriam suficientes para colocar o cinema brasileiro num patamar estratégico de desenvolvimento. Nesse momento de crise, a própria classe se organizou no 3º Congresso Brasileiro de Cinema (2000), em Porto Alegre. Esse foi o embrião da criação de um órgão com um projeto para o cinema brasileiro. Esse foi o contexto em que foi criada a Ancine. A Ancine cuidava não só do fomento, mas também da regulação e da fiscalização de todo audiovisual brasileiro... Não só do cinema, mas também do home video (termo para mídias pré-gravadas, como DVD) e da televisão. Ou seja, tem uma estrutura mais completa.
OP- A Ancine passou por diferentes governos. Há como delimitar ou caracterizar essas "eras"?
MI - O grande desafio da Ancine é sobreviver às mudanças de governo. Cada governo quer implementar uma política diferente, muitas vezes acabar com a política implementada pelo governo anterior e instaurar uma "nova marca". A Ancine teve um diferencial, porque foi criada como uma agência reguladora. Agências reguladoras têm uma série de características que permitem uma certa estabilidade, por serem órgãos de Estado, órgãos tecnicamente neutros. A Ancine, por exemplo, é comandada por uma diretoria colegiada. Todas as decisões são montadas por um colegiado com mandato fixo. O presidente não pode exonerar livremente um diretor da Ancine ou de qualquer agência reguladora, diferentemente de um secretário ou de um ministro. Ao mesmo tempo, toda a trajetória da agência tem embates com o governo de realmente estabelecer a sua autonomia como órgão regulador. Na prática, os governos acabam desenvolvendo instrumentos para tentar atuar junto às agências reguladoras. O grande desafio da Ancine foi exatamente essa relação entre órgão e Governo. Quando a relação era de harmonia, quando à frente da Ancine tinha alguém com a mesma visão do Governo, isso ficava mais fácil. Quando Manoel Rangel assumiu a presidência da Ancine durante o governo Lula e o governo Dilma, existia uma afinidade. Isso fez com que Manoel conseguisse aprovar leis para ampliar as atribuições da Ancine, que foi criada com uma série de restrições. Os objetivos da Ancine eram muito amplos, estavam em torno da ideia da auto sustentabilidade do mercado brasileiro. Os instrumentos da sua lei de criação eram restritos em relação a tão ambiciosa missão. Era preciso a aprovação de leis complementares, que ampliassem as atribuições da Ancine. Para aprovar a lei, você tem que ter essa interlocução com Governo e Congresso Nacional. Uma das principais conquistas das gestões do Rangel (diretor-presidente entre 2006 e 2017) foi conseguir aprovar três leis que transformaram o cinema brasileiro (lei 11.437, que criou o Fundo Setorial do Audiovisual); lei 12.485, de regulamentação da TV por assinatura; e lei 12.599, de expansão do parque exibidor).
OP - Como pode ser definido o momento que a Ancine vive?
MI - A Ancine vive um momento de crise institucional. Acho que isso faz parte do contexto macropolítico do governo Bolsonaro de desmonte da política cultural. Existe uma política de enxergar a cultura como inimiga do Estado. Aí reside o desafio da Ancine como agência reguladora, de estabelecer instrumentos técnicos, que possam garantir uma política de desenvolvimento do setor independentemente das matrizes ideológicas do governo. Esse últimos anos têm sido um desafio para a Ancine. É curioso perceber que a Ancine não acabou, diferentemente da Embrafilme. Quando o Collor entrou, com um decreto, com uma canetada, acabou com tudo. E o Bolsonaro não conseguiu acabar com tudo. Existe uma institucionalidade sólida para que, mesmo contra a vontade do presidente, a Ancine continue de pé. Isso só foi possível, ao meu ver, porque a Ancine foi criada como uma agência reguladora. Se fosse qualquer outro órgão de governo, ficaria mais fácil de acabar. Fica difícil, porque se isso acontece, pode abrir um precedente para fazer o mesmo tipo de ação com outras agências reguladoras, como a Anatel e a Aneel (respectivamente, dos setores de telecomunicação e energia). A Ancine conseguiu se sustentar de pé, mas o Governo conseguiu uma série de subterfúgios para que, se não acabasse com o órgão, meio que ele ficasse por asfixia. Apesar da Ancine continuar, as ações nos últimos anos foram muito pequenas. Principalmente porque não houve lançamento de novas linhas do FSA. Houve um imbróglio jurídico junto ao Tribunal de Contas da União (TCU), em que foram questionados os critérios de prestação de contas da Ancine. O TCU ordenou que a Ancine aperfeiçoasse os seus processos de prestação de contas, mas em momento algum mandou suspender recursos. Foi muito mais cômodo para a gestão simplesmente paralisar os processos. Uma aderência do governo Bolsonaro que queria travar o fluxo de recursos para o audiovisual e para a cultura como um todo. Com a pandemia, os critérios de financiamento teriam que ser revistos. Como a gente iria fazer filmes nesse período? Quais seriam os protocolos, os prazos? Haveria a necessidade de revisão desses critérios. Em vez disso, a Ancine paralisou os investimentos. E a justificativa não são só questões técnicas, relativas às demandas do TCU. Na verdade, em última instância, espelham impasses da visão do governo Bolsonaro para a cultura. Tem muitos indícios de que a Ancine, nesse período, não conseguiu estabelecer a sua independência. De fato, os diretores da Ancine acabaram capturados pelo governo. De forma indireta, mesmo não de forma explícita, a Ancine, hoje, é aderente a essa política ideológica de Bolsonaro.
OP - Por fim, gostaria que o senhor comentasse sobre esse 20º aniversário. Como prospectar um futuro para a agência?
MI - É curioso que a Embrafilme foi criada em 1969 e acabou em 1990. Ela completou os 20 anos, mas não chegou a completar seu 21º ano. Em 2022, a Ancine pode superar a Embrafilme em duração. O grande desafio é se estabelecer como um órgão independente, que consiga implementar políticas visando o desenvolvimento do setor, baseado em critérios técnicos. Uma política setorial que não esteja à margem dos humores de cada governo.
Utopia da Autossustentabilidade
de Marcelo Ikeda
Editora Sulina
246 pág.
Quanto: R$ 39,90
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Impacto da Ancine no Ceará
Quando o Plano Anual de Investimento (PAI) da Ancine estava ativo, havia uma linha de arranjos com ações integradas entre União, Estados e Municípios. Segundo levantamento da Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult/CE), o auge dessa parceria se deu entre 2015 e 2017. Nesse período, o Estado estabeleceu convênios em dois programas: “Cinema da Cidade”, que possibilitou a construção de dez complexos de cinema no interior do Ceará (em andamento); e a “Chamada Pública de Coinvestimentos Regionais”, que elevou o Ceará ao papel de protagonismo no cenário nacional. O aporte financeiro também cresceu, tanto por parte da Ancine quanto do Estado.
Ainda de acordo com a pasta, o XII Edital Ceará de Cinema e Vídeo teve o investimento de R$ 4,45 milhões do Estado e R$ 6,43 milhões do FSA. Na XII edição, R$ 7 milhões foram provenientes do Estado e R$ 10 milhões do FSA. Na última Chamada Pública Ancine/FSA nº 1/2018, uma nova proposta de Coinvestimentos Regionais foi submetida. O valor passava a casa dos R$ 20 milhões, mas a Ancine jamais divulgou o resultado da chamada. Para a Secult, o novo edital, feito com recursos próprios do Estado, sofreu impacto significativo no “volume global dos investimentos”.
Em nota, a Secult destacou ao O POVO: “Desde 2019, sequer a Ancine tem um novo Plano de Investimento aprovado. Se existe tal plano, ele não é executado, causando um prejuízo não só para os arranjos federativos, mas para a produção do audiovisual brasileiro que conta hoje apenas com os recursos limitados dos estados e de alguns poucos municípios”. A ausência de parcerias financeiras impactam o setor produtivo cearense, tanto pela interrupção dos arranjos regionais quanto pela impossibilidade de participação de realizadores em editais e ações. No caso do Edital Ceará de Cinema e Vídeo, há uma limitação financeira sem os recursos da Ancine. Longas-metragens, por exemplo, tinham substancial apoio da agência. O setor também deixou de se beneficiar com apoio à produção de séries e festivais, além da exibição e distribuição.
O que o Estado tem feito? A Secult cita o Edital de Apoio ao Audiovisual Cearense (2020), que beneficiou 48 projetos (ainda em execução), com mais de R$ 18 milhões provenientes da Lei Aldir Blanc (chamada de emergência cultural lançada durante a pandemia). O XIX Edital Ceará de Cinema e Vídeo está em fase de articulação com o setor. A pasta também retomou a pauta de reestruturação do Programa Ceará Filmes (de fomento do audiovisual a nível estadual). “Lamenta-se a interrupção de uma parceria que se mostrava inquestionavelmente frutífera e vitoriosa até então”, encerra a nota.
O POVO+
Na seção "Reportagens Especiais" do OP+, assinantes têm acesso à reportagem seriada "Desmonte da Cultura". Em três episódios, uma análise de como o Governo Bolsonaro tem desarticulado a pasta.
Podcast Vida&Arte
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