O cearense Leonilson (1957-1993) parece quase um conhecido para inúmeros dos admiradores da obra do artista visual. Tal caráter de intimidade imaginada se dá, especialmente, por conta da subjetividade intrínseca às produções do pintor, desenhista e bordadeiro. Tratando de temas como desejo, solidão, conflitos pessoais e vazio, ele chega, para muita gente, ao âmago de questões reconhecíveis, a ponto de serem registradas na pele ou elaboradas em novas obras. São justamente as reverberações da produção de Leonilson que interessam ao professor e colunista do Vida&Arte Lúcio Flávio Gondim no desenvolvimento de tese de doutorado em Letras na Universidade Federal do Ceará. O pesquisador, que participa nesta terça, 29, de live sobre a obra de Leonilson na programação da Biblioteca Estadual do Ceará, compartilha ao V&A processos e questões de estudo.
O próprio Lúcio é um dos fãs que se identifica com o artista e sua obra - "eu, pisciano como ele, sempre tive uma conexão muito forte", divide. "É uma obra absolutamente pessoal, um mergulho numa subjetividade", compreende, alargando o escopo de identificação. Interessado nas relações construídas a partir da obra do cearense na contemporaneidade, Lúcio optou por focar o olhar não no mundo canônico - ou seja, em museus, publicações e instituições culturais -, mas na presença de Leo como referência para novas obras artísticas em diferentes linguagens e, até, para tatuagens.
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"Observando Fortaleza, percebia ao meu redor como há essa idolatria pelo Leonilson, um mártir dos afetos, alguém que fala desses sentimentos. Pessoas carregam os vulcões, as garrafas prestes a explodir, nos corpos", exemplifica, citando imagens - e imaginários - fortes na produção do artista.
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"Fui recolhendo materiais e percebendo que havia ali uma manifestação artística, outra forma de apreciação cultural, reverberação, de contato do público com essa obra", avança Lúcio. Em diálogo com a pesquisa de mestrado do professor - que se baseou em estudar o corpo na obra da escritora e cronista do V&A Tércia Montenegro -, ele compreendeu que as tatuagens nas peles consistiam, sim, "uma nova possibilidade de exposição, de museu aberto ao público".
Os achados iniciais eram focados em um circuito próximo a Lúcio, mas o escopo se expandiu a partir da criação de um perfil de Instagram intitulado "Leonilson expandido" (@leonilsonexpandido), no qual ele passou a reunir em postagens as "reverberações" do artista que encontrava. Daí, seguidores de todo o País passaram a compartilhar as próprias tatuagens e obras. "A busca ativa no primeiro momento acontece, mas depois vai ser conduzida pelo próprio mecanismo da hashtag #leonilson. O sistema vai possibilitando essa reunião 'aleatória' para a qual a página vai contribuindo, dando essa costura. Quase todos os dias recebo novas imagens de quadros, releituras e tatuagens", afirma.
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Desenvolvida no doutorado em Letras, a pesquisa de Lúcio se dá a partir de uma compreensão expandida do que é e pode ser a literatura. "Para mim, Leonilson é uma manifestação também literária porque há uma escrita de si, um sujeito que se manifesta quase que de maneira compulsiva nas palavras em todos os meios - na voz que gravou, no diário, na tela, nos bordados, nas performances", elenca o pesquisador.
A escolha passou, também, pela necessidade de trazer novas contribuições ao extenso arcabouço acadêmico sobre Leonilson já existente. "São teses, dissertações, TCCs, muita coisa já desenvolvida. O meu escopo teórico e meu objeto de pesquisa foram recortados desse deslocamento do olhar", explica, referindo-se às atualizações e utilização da obra dele hoje. "Como é que outros artistas atualizam Leonilson? Por que é que esse cara tão solitário, tão internalizado, consegue ser tão social e universal?", compartilha questões.
As reelaborações de obras de Leonilson estabelecem o artista como uma espécie de "fenômeno pop", concretizado em especial pela já citada abundância de tatuagens que reproduzem artes do cearense. Nesse cenário, questões como apropriação e direitos autorais se tornam difusas.
"Há uma atualização, um cara que está ali no auge dos anos 1980 produzindo é reconduzido a esse lugar e isso acontece de uma maneira paralela à própria divulgação e alastramento do Leonilson pelo mundo", compreende Lúcio. Se o fato traz aspectos positivos, como a divulgação e a relação íntima do público com a arte, é possível encontrar também tensões estabelecidas pelo contexto.
Entre elas, o pesquisador cita o mimetismo do traço de Leonilson em produtos com fins comerciais e as diluições da ideia de originalidade. Na live que irá ministrar pela Bece, Lúcio comentará o catálogo raisonné de Leonilson, tipo de publicação que reúne em si detalhes sobre toda a produção de um artista, como data, tamanho e técnicas. Lançada em 2017 por iniciativa da família, a reunião "oficial" de obras do cearense, por exemplo, se contrapõe à presença "informal" do artista nas tatuagens, nos bordados - como o de Tolentino Ferraz que estampa a página -, nas peças teatrais, nas telas e em outras elaborações que partem de Leonilson.
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"Uma das coisas discutidas na tese é a ideia de apropriação. Entre peças, canções e filmes, algumas passam pela curadoria familiar, que cuida com punho de ferro das obras dele na questão de direitos autorais", estabelece Lúcio. A discussão reúne em si, nas palavras do pesquisador, o "choque de tensões" que o próprio Leonilson e sua obra não somente foram, mas seguem sendo.
"A família versus os fãs, os amigos versus os familiares, versus a fortuna crítica, versus os curadores... Isso vai gerando questões e a 'conclusão inconclusiva' dessa expansão é que as fronteiras dessa assinatura, do que é original, vão ficando mais diluídas", compreende Lúcio.
Travessias Literárias - Raisonné Leonilson
Quando: quarta, 29, às 15 horas
Onde: www.youtube.com/c/BibliotecaEstadualdoCeará/
Mais informações: @bece_bibliotecaestadualdoceara
O setor Atualidades da Bece conta com um exemplar do catálogo raisonné de Leonilson para consulta. Ele é composto por 3 volumes e traz 3,4 mil registros de obras, estudos e projetos realizados pelo artista. Saiba como agenda visita aqui.
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