"Quando a gente padroniza, tenta fundir, e quer dar às teorias uma abrangência maior, é grande o risco do reforço aos estereótipos. Eu nem sei o que é o Ceará, se é que algum dia soube", apontou o pesquisador Gilmar de Carvalho (1949-2021) em entrevista às Páginas Azuis do O POVO em outubro de 2020. Dos nomes mais importantes a pesquisar as tradições populares nordestinas, o professor ensinou - não somente na entrevista citada, mas na ampla obra que deixou de legado - muito sobre estranhar a ideia de "nordestinidade" enquanto una e indivisível. A fala de Gilmar é emprestada, aqui, para apresentar o projeto de hub criativo Nordestesse, plataforma que busca reunir pequenos empreendimentos autorais não somente pelo que os aproxima - a região -, mas, fugindo do clichê, principalmente pelo que têm de singular.
Iniciativa da jornalista baiana Daniela Falcão, que foi por anos editora da Vogue Brasil, a plataforma - que hoje acolhe criadores em arte, design, gastronomia, moda e viagem - nasceu enquanto gesto inicialmente descompromissado. Tendo vivido por décadas no Sudeste, ela foi morar em Recife no início de 2020, saiu da revista no mesmo ano e, em período sabático, decidiu redescobrir o Nordeste de nascença a partir de uma viagem por todos os estados.
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A pandemia, naturalmente, impactou os planos, mas ela acabou por conhecer novos empreendedores e artistas de toda a região e, em ímpeto jornalista, produzia pequenos conteúdos informais para as próprias redes sociais. O foco era em marcas menores, que apostavam em artesanias aliadas à autoralidade e a impactos sociais e ambientais positivos.
O retorno foi, como ela define, "excelente". "O interesse das pessoas era enorme, perguntavam como faziam para comprar, os criadores me davam feedback falando que estavam ganhando seguidores, que os produtos que eu postava tinham esgotado. Começou de forma empírica e informal, mas vi que talvez tivesse, ali, uma missão", divide.
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A própria trajetória de Daniela influenciou no recorte que a plataforma adotou. Se a geração da jornalista não "questionava" o caminho de buscar oportunidades em São Paulo ou no Rio de Janeiro, ela descobriu uma juventude com "cabeça completamente diferente".
"Eles querem fazer sucesso, obviamente, no mercado paulista, mas não querem ter que sair da sua cidade. Querem continuar produzindo aqui, com a cadeia produtiva daqui, mas sendo também ouvidos e vistos fora", define. Na percepção da jornalista, o que faltava era visibilidade a este nicho de criadores.
"O Nordestesse veio da percepção que existia um vácuo para esses jovens que dialogavam com saberes tradicionais, imprimiam uma visão autoral e tinham muito desejo, mas não estavam reunidos em um lugar que o público os encontrasse", observa Daniela.
Na avaliação da criadora da plataforma, o cenário do último ano fortaleceu dois desejos em uma parcela da população que tinha potencial consumidor para estes criadores: o de reconexão com as origens e o de consumir do pequeno empreendedor. "O fast fashion ainda existe enquanto força, mas houve uma pulverização de marcas justamente porque o público jovem, sobretudo, quer consumir do pequeno. É uma geração que tem preocupação com impacto social, ao consumir do pequeno se está quebrando uma cadeia que perpetuava só as grandes forças econômicas", avalia.
"Não faz sentido nenhum uma Catarina Mina", cita a marca cearense da estilista Celina Hissa, "se estabelecer em São Paulo. É lógico que elas querem o mercado que é o maior do País, mas precisam e querem estar em suas comunidades. Não há um parque industrial enorme instalado, mas, em se tratando de economia criativa, o Nordeste surge como uma força muito grande", considera.
Atualmente com cerca de 120 pequenas marcas e artistas, a Nordestesse tem um site e redes sociais que funcionam como plataforma inicial de visibilidade das parceiras. Neles, conteúdos sobre as histórias e preocupações de cada iniciativa são compartilhados.
Além do braço da visibilidade digital, o hub inaugurou recentemente a visibilidade física, com uma oportunidade de varejo. Em São Paulo, ocorreu a primeira edição do Festival Nordestesse, que contou com a presença de 15 marcas e seus criadores. "Assim, a plataforma se materializa, toma forma, tanto para novos consumidores, quanto para quem já conhecia digitalmente, mas não tinha tido a chance de tocar na roupa, conhecer o criador", ressalta Daniela.
O calendário do ano contará, ainda, com mais três edições do festival, sendo duas menores em Punta del Este (Uruguai) e Brasília e uma maior no Rio de Janeiro. A chegada nestes mercados em união e sob a égide da plataforma é visto como diferencial. "Se uma marca chega sozinha, ela não passa a ideia. A ideia é materializar na artesania, no feito à mão, uma narrativa contada junta. Uma pessoa faz crochê, outra tem trabalho de linho, então se passa uma visão em conjunto interessante", avalia.
A conquista de mercados outros marca os primeiros passos do varejo físico da Nordestesse, mas a plataforma já planeja, também, encontros dentro da própria região para estimular os intercâmbios internos. "Existe um conhecimento nas fronteiras entre os estados. O consumidor consome muito o local e o nacional, mas não o regional. A ideia é fazer a troca entre artistas", explica.
Inclusive porque, naturalmente, os estados têm particularidades entre si e, inclusive, internamente. "Eles não são todos iguais entre si, é natural. Não tive a preocupação de ter o mesmo número de estilistas (de diferentes estados) porque cada lugar tem uma vocação e a gente tem que saber respeitar as diferenças. Os saberes podem ser comuns entre eles, mas a maneira como se desenvolvem em cada lugar é muito diferente", ressalta.
Das 15 marcas que participaram do primeiro Festival Nordestesse, em São Paulo, 11 foram cearenses, todas já destacadas no site da plataforma: Marina Bitu, Gonzalo, Açude, SAU, Studio Orla, Rebeca Sampaio, AM Brazil, Carola, Casa Aika, Catarina Mina e Gabriela Fiuza. A presença acentuada do Ceará, avalia a jornalista e idealizadora da plataforma Daniela Falcão, vem da força da moda no Estado.
“Existe um parque têxtil instalado e há toda uma história de moda profunda já desenhada”, inicia Daniela. “O curso de moda da Federal é um dos mais antigos do País, e isso ajuda a formar toda uma geração. Ter um curso de moda estruturado e longevo faz muita diferença, fora as iniciativas como Dragão Fashion e o Sebrae”, segue.
Além de ressaltar as diferenças entre estados, Daniela também aponta que a plataforma reforça as formas distintas de criação dentro do próprio Ceará. “A Açude, uma marca super nova, não trabalha com crochê ou renda, mas, por ser de Juazeiro do Norte, traz um diferencial nas cores e nas formas que é muito espelhado na caatinga”, analisa. “É brilhante até para o brasileiro se identificar e valorizar, olhar para a caatinga não como o lugar da seca, mas da criação”, avança.
Idealizada por Beatriz Ribeiro e sua mãe, Ivete, a Açude nasce do interesse da estilista nas criações e potencialidades do próprio lugar de nascença. “Para mim, falar sobre o Nordeste é falar sobre o povo, o que é criado ali. Puxando para a região de onde sou - porque não conheço a cultura da região inteira, é muito vasta -, é falar de cultura popular, cordel, religiosidade, danças, festividades, reisado”, elenca a criativa.
Inspirando-se em elementos da paisagem natural da caatinga como a palma, o tatu-bola e a semente de timbaúba, a marca busca ainda, nos conteúdos que gera, abordar diferentes elementos do artesanato do cariri cearense. “Na coleção de agora, a gente desenvolveu um cordel feito por artesãos do Juazeiro do Norte, José Lourenço e Chico Bruno”, exemplifica. “Estou buscando desenvolver outros projetos com artesãos de lá e é assim que a gente tenta se relacionar. Estamos falando sobre o Cariri e queremos ficar ali”, reforça.
A criação como expressão de si e enaltecimento do tradicional também marca os processos de Carolina Figueirêdo, que assina marca de joias Carola há seis anos. Entre as peças, estão as que compõem a Linha Carnaúba, na qual a palmeira nordestina dá brincos, anéis e gargantilhas como frutos.
“O criativo nordestino está para além de estereótipos traçados pela sociedade. Os aspectos regionais/tradicionais fazem parte da nossa formação como indivíduos e estão presentes em nosso repertório estético. Quando a Carola faz uma coleção inspirada em algo regional, estou falando sobre mim, minhas origens, trazendo minha visão e abordagem do meu universo criativo”, elabora.
A força criativa é inegável, mas as duas empreendedoras também dividem a consciência das questões estruturais que se somam ao contexto de criar no Nordeste. “Ainda temos um percurso muito grande para estabelecer a região dentro do cenário da moda nacional. Muita coisa mudou nos últimos anos, principalmente com as redes sociais servindo de plataforma para criativos e marcas nordestinas mostrarem seus trabalhos e suas narrativas para as pessoas de todos os lugares do país”, aponta Carolina.
“Fornecedores, produtores e tecelagens estão no Sul e Sudeste, há limitação de matéria-prima e isso na pandemia foi uma questão”, compartilha Beatriz, sem deixar de apostar na força da nova geração. “Acredito muito nos novos designers que estão chegando, num futuro mais slow, numa relação maior com o produto que você está comprando, e é por isso que estou trabalhando com moda. Existem marcas muito incríveis que nascem aqui, mas, por não estarem no eixo, não são alavancadas por não serem enxergadas. É difícil, mas as novas gerações e marcas têm muito o que agregar”, confia.
“Projetos como o Nordestesse são muito necessários para a descentralização da indústria criativa brasileira do eixo sul/sudeste”, dialoga Carolina. “O Nordeste tem um potencial criativo, econômico e cultural muito grande e precisa de plataformas de divulgação e investimentos oriundos de iniciativas privadas e também do poder público”, avança.
“Uma grande dificuldade é chegar ao público que quer consumir nosso produto. A plataforma foi um projeto muito feliz porque é como se as pessoas enxergassem a gente de outra forma quando está num projeto desse. Juntos, a gente consegue chegar a lugares mais bonitos. A moda é sobre isso, chegar às pessoas e elas te enxergarem e se identificarem com o produto e o que você está transmitindo”, defende Beatriz.
Daniela lembra, ainda, do plissado de Marina Bitu inspirado nas sanfonas com as quais a estilista conviveu na infância; dos novos usos do crochê aliados a um impacto social forte com rendeiras de Trairi propostos pela Catarina Mina, que há 14 anos já apostava nessas frentes; da “alta costura da carnaúba” que compõe as bolsas da Gonzalo; do trabalho com saberes ancestrais indígenas da AM Brazil... “Isso reflete muito a diversidade do Ceará”, resume a jornalista.
Célula fortalezense do grupo Mulheres do Brasil também aposta na bem-sucedida aliança entre o impacto social e as belezas do feito à mão. O e-commerce Terrartesã reúne produtos feitos por artesãos tradicionais, famílias e comunidades. A renda obtida nas vendas é 100% reinvestida em projetos que beneficiam os próprios artistas.
O projeto atua, ainda, ofertando oportunidades de formação em artesanato para pessoas em condições de vulnerabilidade, ampliando a faceta social da iniciativa.
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As peças atualmente disponíveis no catálogo da Terrartesã incluem uma linha natalina que traz cachepôs em carnaúba, sousplats e porta-copos em crochê e ainda kits e peças feitas a partir de outros materiais tradicionais.
Siga o projeto: @terrartesa
Site: www.terrartesa.com.br
Nordestesse
Acesse: nordestesse.com.br
Siga: @nordestesse_
Marcas cearenses
A Nordestesse já está em expansão. São, atualmente, cerca de 120 marcas parceiras, com intenção de chegar a até 200. Confira algumas das marcas cearenses que já tiveram visibilidade no site:
Açude
Criada há um ano por Ana Beatriz e Ivete Ribeiro, a marca se inspira na região do Cariri e aposta no upcycling
Gabriela Fiuza
A "crocheteria chic", como define o texto no site, é o "fio condutor" da marca que existe desde 2016, levando a artesania para peças urbanas, casuais e de festa
Catarina Mina
Fundada por Celina Hissa há 14 anos, a consolidada marca traz palha e crochê para bolsas criativas e únicas, feitas em parceria com artesãs do Estado, inclusive estabelecendo iniciativas como a Olê Rendeiras, coletivo que reúne mais de 200 bilreiras do Trairi
Rebeca Sampaio Brand
Desde 2014, a marca se firmou a partir da utilização de algodão, linho e peças de crochê, tomando ainda inspiração em artesãos do Cariri cearense
Carola Joias
Com anéis, brincos e gargantilhas minimalistas inspiradas em paisagens e símbolos cearenses, a marca de Carolina Figueirêdo existe há seis anos e busca reduzir impactos ambientais da produção
Casa Aika
Lançada há um ano por Marcos Maciel, aposta na utilização de bordados e rendas cearenses aplicados pontualmente em vestidos de linho ou viscose de seda
Studio Orla
Com proposta agênero e lançada há quatro anos por Thiago Maciel, tem base forte na utilização autoral do crochê, tendo peças para a praia e o espaço urbano
SAU
Marca de beachwear idealizada por Marina Bitu e Yasmin Nobre, nasce da busca por roupas funcionais para praticar esportes aquáticos
AM Brazil
Idealizada por Amanda Macedo em 2019, traz crochê, macramê e cestaria para bolsas, sandálias, acessórios e uma linha casa
Gonzalo
Idealizada por Walber Góes e Rodrigo Bessa, a marca produz bolsas com palha de carnaúba e crochê de artesãs de Aracati Existe desde setembro de 2020
Marina Bitu
Marca da estilista cearense existe desde 2017. Crescida no interior do Estado, a artista produz vestidos plissados inspirados na sanfona
Olar Olaria
Criada pelo publicitário Heytor Borges, a marca traz peças de barro minimalistas feitas por artesãos do Estado
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