"A Voz Humana": curta de Almodóvar explora artifício em tema e forma
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
"A Voz Humana": curta de Almodóvar explora artifício em tema e forma
Curta de Pedro Almodóvar com Tilda Swinton narra história sobre emocional fim de uma relação amorosa apostando na artificialidade
O universo cinematográfico do diretor espanhol Pedro Almodóvar reúne elementos e escolhas que poderiam soar aparentemente contraditórias. Ao mesmo tempo em que os trabalhos do cineasta trazem alta carga emocional, a partir da qual é possível se identificar com as humanidades e desumanidades de cada personagem, eles estão longe de qualquer abordagem naturalista ou realista. O mundo almodovariano existe sempre alguns tons acima, seja nas cores fortes do figurino e dos espaços, na intensa música marcada por potentes instrumentos de cordas ou nos registros de atuação. Essa amálgama entre a explosão e a contenção encontra interessante espaço de desenvolvimento na mais recente obra de Almodóvar lançada no Brasil: o curta "A Voz Humana" (2020), adaptação livre de texto de Jean Cocteau, estreia do diretor na língua inglesa e primeira parceria dele com a atriz britânica Tilda Swinton.
O encontro de Almodóvar e Tilda, duas figuras admiradas e até cultuadas pelas trajetórias no cinema, por si já fez com que o anúncio do filme provocasse expectativas altas junto ao público. Apesar da grandeza dos dois artistas, "A Voz Humana" soa mais como uma produção quase que descompromissada - ou, nas palavras do próprio diretor quando o curta estreou no Festival de Veneza de 2020, um "capricho".
O texto teatral original, escrito pelo dramaturgo Jean Cocteau em 1930, acompanha uma mulher sozinha que fala ao telefone com o homem que a abandonou, estabelecendo um diálogo que se torna monólogo ao termos acesso somente a ela.
No curta, onde Tilda é a protagonista, a personagem é apresentada ainda no momento da angustiante espera pela chamada, marcado por uma solidão profunda que é agravada pela única companhia que ela tem: o cachorro do ex-amante.
Em uma breve narração, descobrimos que a protagonista teve um relacionamento de quatro anos. "Eu te esperava enquanto via um DVD ou lia e você sempre voltava", ela lembra. Há três dias, porém, ele não retornou.
A adaptação de Almodóvar traz a situação proposta por Cocteau não somente aos tempos atuais, mas também, e principalmente, a um importante e intenso descolamento de uma possível abordagemrealista.
Na primeira sequência de "A Voz Humana", Tilda surge em cena com figurinos extravagantes em um galpão abandonado. O desencontro entre espaço e corpo demarca, de partida, os choques desvelados ao longo dos 30 minutos da obra. A primeira ação dramática do curta, porém, se dá em uma loja de materiais de construção. Nela, onde os figurantes falam espanhol, a protagonista está acompanhada de um cachorro e compra uma machadinha.
A concatenação do que é apresentado nestes minutos iniciais vem quando, na cena seguinte, a obra se encaminha para um amplo apartamento repleto de móveis e paredes coloridos e vibrantes, obras de arte que prendem o olhar e um jardim de belas flores.
Bem vestida, de vermelho da cabeça aos pés, salto alto de oncinha e após ingerir pílulas, fumar um cigarro e tomar uma taça de champanhe, a protagonista impele-se fervorosamente até a machadinha que adquiriu e, com ela, desfere golpes em um terno que repousa numa cama de casal. Um rápido corte de câmera revela que o apartamento é cenográfico, montado no mesmo galpão da abertura.
Essa espécie de "prólogo" resume em si alguns dos principais gestos do curta, como a elaboração de experiências íntimas e emocionais a partir do artifício e do exagero. Nesta intenção, a presença de Tilda Swinton é precisa e essencial. Imbuída de uma elegância e uma contenção naturais, a atriz desafia a si e ao próprio filme. Entregando uma construção tons acima dos tons já acima do universo almodovariano, ela aposta dobrado na artificialidade ao optar por um registro marcado por afetação em cada frase, gesto ou expressão facial, "competindo" com o exagero da própria obra.
Da parte do filme, os elementos evocam pompa e circunstância, mas, mesmo flertando com algum esnobismo, a abordagem é mais próxima do humor - fato reforçado quando, por exemplo, a protagonista confessa ao ex que guardou todas as cartas enviados por ele "em uma pequena bolsa Chanel". Se as cartas de amor são ridículas, como versa Fernando Pessoa, as guardadas numa Chanel adquirem um ar ainda mais camp (conceito de Susan Sontag ligado a expressões de frivolidade e exagero).
Toda a forma encontrada por Almodóvar e Tilda para concretizar a história espelha, de forma intrínseca, os próprios temas da ligação da protagonista com o ex. No diálogo/monólogo, ela busca performar um estado de bem-estar que se opõe à realidade dos dias que viveu.
Diz que comeu bem, visitou amigas e viu peças teatrais, ao invés de assumir a solidão, a inércia e a falta de vontade que a abateram. O jogo de aparências da protagonista com o ex-amante e o do filme com o público são equivalentes nas operações de esconder e revelar. Tanto a personagem quanto o curta reforçam de maneira intensa o falseamento, mas é por ele que revelam muito de si.
Confira o trailer de "A Voz Humana":
A Voz Humana
Já disponível para compra e aluguel
Onde: Now, Amazon Prime, Vivo Play, Google Play e YouTube Filmes
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