Cearense "Cabeça de Nêgo" estreia propondo debate sobre "feridas sociais"
João Gabriel Tréz é repórter de cultura do O POVO e filiado à Associação Cearense de Críticos de Cinema (Aceccine). É presidente do júri do Troféu Samburá, concedido pelo Vida&Arte e Fundação Demócrito Rocha no Cine Ceará. Em 2019, participou do Júri da Crítica do 13° For Rainbow.
Cearense "Cabeça de Nêgo" estreia propondo debate sobre "feridas sociais"
Após forte trajetória no circuito de festivais, longa cearense estreia ecoando lutas pessoais e coletivas a partir de trama sobre estudante negro da rede pública que se movimenta por mudanças no colégio
"É sobre um passado de um tempo presente", versa Sabotage na canção de 2002 que empresta o título ao filme cearense "Cabeça de Nêgo". Estreia do cineasta Déo Cardoso na direção e roteiro de um longa-metragem - concretizado após aprovação no Edital Longa BO Afirmativo 2016, que contemplou somente três projetos e foi descontinuado a partir da gestão Temer -, a obra apresenta temas como mobilização estudantil, precarização na educação e racismo a partir de Saulo Chuvisco (Lucas Limeira), um estudante tímido, poeta e em processo de politização que passa a lutar contra opressões na escola pública onde estuda. "Cabeça de Nêgo" entra em cartaz hoje, 21, no Shopping Benfica, Cinema do Dragão e Cineteatro São Luiz.
Problemas de orçamento, estrutura e tensionamentos de raça e classe marcam o dia-a-dia de Saulo e das outras alunas e alunos na escola. Ao passo que o diretor (Carri Costa) atua como figura opressora, o corpo discente conta com a zelosa e envolvida professora Elaine (a carioca Jéssica Ellen).
É com ela que Saulo troca ideias sobre movimentos sociais e ação popular direta, compartilhando leituras e descobertas sobre, por exemplo, os Panteras Negras, partido revolucionário dos EUA. É inspirado nos ensinamentos do grupo que o estudante passa a lutar por mudanças na escola, movimento que causa choques com professores e até colegas. Após sofrer um insulto racista e reagir, ele é expulso, mas se recusa a acatar o mandado. É este o estopim da trama do longa.
Refletindo um momento específico da educação no País - as ocupações escolares que encontraram força, principalmente, em 2016 -, "Cabeça de Nêgo" consegue ter um tempo bem demarcado e um caráter atemporal. O roteiro, por exemplo, foi escrito antes do movimento tomar corpo, enquanto que, mesmo lançado três anos após as filmagens, a produção ecoa questões recentes ligadas à educação e às lutas sociais.
Apesar de ser ele próprio um admirador dos Panteras Negras, Déo conta que o que inspirou a trama e a construção do protagonista foi um aluno que conheceu. "Um menino, um poeta, super tímido, também se politizando, indignado com todo tipo de opressão, que não é um líder nato, mas articula pela poesia", define o cineasta.
Entra, aqui, outra qualidade forte do longa: lança-se um ponto de vista pessoal e individual, mas que envolve o coletivo e convida à identificação. O protagonista Lucas Limeira, por exemplo, lembra das discussões entre o elenco jovem acerca das próprias experiências.
"Em 2016, eu não estava vinculado a nenhuma universidade, mas por estar no meio do movimento artístico pude participar e apoiar algumas ocupações universitárias e secundaristas. Como é um filme com muitos atores jovens, que tinham estudado em escola pública, teve um diálogo muito grande sobre isso. Além da minha experiência, teve a dos outros atores, também, e isso enriqueceu o processo de todo o elenco", observa o ator.
Até mesmo em momentos anteriores da própria trajetória, Lucas reconhece hoje ter vivenciado momentos de envolvimento político, dos ensinamentos da família desde cedo sobre sua negritude à luta pela permanência das aulas de teatro na escola onde estudou.
"Às vezes, a gente associa nosso movimento político a quando conhece as coisas pela forma científica e acadêmica, quando começa a nomear, mas comecei a fazer teatro aos 11 anos com a professora Socorro Machado, uma lutadora que reconhecia e explicava a importância da arte aos alunos. Passei pelo movimento de também lutar para permanecer fazendo teatro. Consigo pensar, hoje em dia, que foi um movimento político muito forte. Vejo como central no filme a atitude que o personagem tem de dizer 'não' para uma injustiça", identifica Lucas.
A insistência foi, também, um dos pontos principais para a concretização do filme, um dos três possibilitados a partir do Edital Longa BO Afirmativo 2016, lançado pela Agência Nacional do Cinema ainda no governo Dilma. Após o impeachment da presidente, Déo julgou que a chamada não iria para frente. No entanto, o processo precisou ser completado e o cineasta recebeu a aprovação.
"Se não fosse um edital de política pública, eu ainda estaria fazendo curta-metragem, tentando como eu sempre tentei, mas sem dinheiro, sem chamar a galera. Foi difícil, mandei para um primeiro edital geral e não entrou, mas, ainda no governo Dilma, abriu o edital afirmativo e entraram três projetos: o meu, o da Viviane Ferreira e o do Gabriel Martins", narra Déo.
"Fico pensando quantas Vivianes, Déos, Gabrieis, pessoas negras e indígenas estão na batalha e um projeto desses é descontinuado. Tem muita gente só esperando uma oportunidade para fazer um 'Cabeça de Nêgo' na Paraíba, no Rio Grande do Norte, no Amazonas... O Brasil é um País continental e diverso e essas políticas públicas são fundamentais. Quando não existem, há um marasmo e ficamos só com os mesmos fazendo o mesmo", aponta.
Da centralização de recursos à descontinuidade de políticas, do racismo cotidiano ao estrutural, tema e forma se ligam intrinsecamente ao se falar de "Cabeça de Nêgo". "O filme está abrangendo feridas sociais que se você parar pra pensar, inclusive na frase do Sabotage, estão aí desde o Brasil Colônia. Elas apenas mudaram de roupagem, mas estão aí vivas", avalia Déo.
Mesmo tendo escrito o roteiro antes das ocupações ou, por exemplo, do movimento da "Escola Sem Partido" - tema que, o realizador ressalta, acaba costumeiramente sendo mencionado a partir da obra -, Déo reconhece que "você vai encontrar paralelos porque tá tudo vigente". "Não se trata de adivinhar, se trata de serem as mesmas feridas abertas, que daqui a pouco vão ter outro nome. O filme constata uma ferida aberta e, também, o que um grupo de jovens faz em relação a ela", resume. É sobre um passado de um tempo presente.
- Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81, Praia de Iracema) Sessões às 20 horas nos dias 21, 23 e 27; e às 20h10 nos dias 22, 24 e 26
- Cineteatro São Luiz (rua Major Facundo, 500, Centro) Sessões às 14 horas e 18h20 no dia 21; 14 horas e 16h20 no dia 22; e 10 horas e 16 horas no dia 23
- Shopping Benfica (Av. Carapinima, 2200, Benfica) Sessões às 14h15 e 19h55 (sala 2) e às 17h35 (sala 1) entre os dias 21 e 27
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