Em meio ao barulho de buzinas e ao vai-vem de pessoas, as portas de um prédio secular seguem trancadas ao número 51 da rua São Paulo, no Centro de Fortaleza, próximo à Praça dos Leões. De vez em quando, tem quem aproveite os degraus da pequena escada da entrada para sentar, descansar um pouco, aproveitar o mínimo de sombra ou mesmo checar as notificações do celular. Aquela edificação, no entanto, abriga um dos principais equipamentos de preservação e divulgação da memória do Ceará. Primeira instituição museológica oficial do Estado, o Museu do Ceará chega aos 90 anos de fundação neste mês de fevereiro, fechado desde abril de 2019 e à espera de reforma.
O equipamento ocupa o Palacete Senador Alencar, prédio com 150 anos completados em 2021. As visitas estão suspensas para a obra de restauro, requalificação e modernização do Museu, anunciada em maio de 2021 pelo secretário Fabiano Piúba e orçada em R$ 3,4 milhões. A Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult/CE) aguarda a autorização de licitação (procedimento de contratação). Em resposta ao O POVO, a pasta afirma que a obra deve ser concluída no "exercício de 2023". O acervo será deslocado para um prédio na Praça do Ferreira, ao lado da Farmácia Oswaldo Cruz. A abertura da sede temporária está prevista para o 2º semestre de 2022.
O acervo do Museu conta com peças arqueológicas e indígenas, objetos do cangaço e da escravidão, bandeiras e armas, vestes do Padre Cícero, memorial a Frei Tito (padre líder da luta democrática contra a ditadura militar no Brasil), além do corpo empalhado do bode Ioiô — caprino "eleito" vereador de Fortaleza em 1922, como forma de protesto da população. De acordo com a Secult, 13 mil peças integram o acervo. "É preciso frisar que o Museu do Ceará passará por um processo de revisão da catalogação total do acervo a partir de novas normas museológicas e isso só será realizado quando o acervo estiver em sede provisória", diz a nota.
A Secult garante que "a equipe do Museu do Ceará está trabalhando em duas frentes". O espaço provisório receberá a administração do equipamento e as ações realizadas anteriormente no palacete, como circuito expositivo, oficinas e palestras. As atividades acontecerão on-line e no formato presencial, quando recomendado pelas autoridades de saúde do Estado, devido à pandemia da Covid-19.
Além da transposição do acervo, a instituição deve promover ações virtuais e em equipamentos da Cidade — "como já vem sendo realizado desde 2019", pontua a Secult. A pasta anuncia o evento "Ioiô Itinerante", previsto para acontecer em março e abril de 2022, on-line e na Rede Pública de Equipamentos Culturais da Secult Ceará. Com mesas-redondas, cortejos, oficinas e palestras, a ação celebrará os 90 anos de fundação do Museu do Ceará e o centenário da eleição do bode Ioiô.
A reforma do Museu do Ceará se insere no contexto de reestruturação do equipamento. No anúncio das obras, também foi divulgada a posse da nova diretora, a historiadora Raquel Caminha. Segundo a Secult, a obra conta com recursos do tesouro estadual e do edital de chamamento para seleção de projetos do Fundo de Defesa de Direitos Difusos (FDD), do Ministério da Justiça de Segurança Pública (MJSP). O edital é executado por meio de contrato de repasse com a Caixa Econômica Federal. Esse contrato está em tramitação. A pasta aguarda autorização da Caixa Econômica para que seja realizada a licitação do restauro. O orçamento total da obra é de R$ 3.453.474,26.
"A Secult Ceará ressalta que anteriormente, em 2019, o Museu do Ceará passou por uma obra de manutenção e, para os devidos cuidados necessários com o público e com o seu acervo, foi necessária a interrupção das visitas públicas ao local", acrescenta a nota. O Museu do Ceará não estampa as dicas culturais do Vida&Arte desde então, segundo registros do O POVO, em pesquisa de Roberto Araújo, do DataDoc.
A modernização do sistema contra incêndio, uma das preocupações em torno do Museu, deve ser incluída no restauro. "O equipamento possui um sistema de combate a incêndio, com extintores específicos para a estrutura e atividade, ao longo da edificação, com mangueira de hidrante no interior, além de uma atividade realizada dentro do prédio classificada como baixo risco, visto que não realiza ação que envolva chamas. A Secult está modernizando e tornando mais eficiente o sistema de combate a incêndio e pânico nos equipamentos, incluído no restauro, e aprovado pelo CBMFOR (Certificado nº 259515), atendendo às exigências. O Museu do Ceará conta também com uma equipe treinada para identificar e combater pequenos focos de incêndio, bem como para proceder em casos de alarmes de risco", conclui a pasta.
Em 2016, a então nova gestão da Secult se comprometeu em avançar na discussão sobre a modernização do equipamento. Apesar das promessas, a reforma só foi anunciada cinco anos depois e o equipamento ainda aguarda a licitação para o início das obras, enquanto segue fechado. Conforme o jornalista Demitri Túlio citou em sua coluna no último dia 27, o "Museu do Ceará não pode mais esperar".
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Do pioneirismo aos embates sobre conservação
Um breve passeio pela história do Museu do Ceará pode evidenciar os entraves sobre sua manutenção e conservação ao longo do tempo. A primeira instituição museológica oficial do Ceará foi criada em fevereiro de 1932 por um decreto e aberta ao público quase um ano depois, em janeiro de 1933. Denominado Museu Histórico do Ceará à época, o equipamento foi concebido como uma ala do Arquivo Público.
O POVO documentou, em outubro de 1932, que umas das primeiras peças adquiridas para o acervo foram 19 fotografias do Ceará, datadas de 1892, do professor Joaquim da Costa Nogueira. Sobre a inauguração, este jornal publicou: “Para o próximo dia 7 do corrente, sábado, está marcada a instalação do Arquivo Público e Museu Histórico do Estado, em seu novo prédio, à rua 24 de maio n. 388, desta cidade”. Depois, em 1934, as instituições foram transferidas para um prédio em frente à Praça da Sé (que já não existe) e desmembradas em 1951.
Enquanto o Arquivo foi levado para o Palacete Senador Alencar, o Museu continuou no mesmo endereço, sob a administração do Instituto Histórico do Ceará. Em 1955, reabriu com a denominação de Museu Histórico e Antropológico do Ceará. A instituição foi deslocada outras três vezes até a mudança, em 1990, para o atual palacete — tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em 1973, o prédio já foi, inclusive, instalação da Assembleia Legislativa Provincial (símbolo do poder do Estado em outro tempo). Desde então, é referido como Museu do Ceará.
Há décadas, o O POVO acompanha a manutenção do Museu do Ceará. O rabo do bode Ioiô foi roubado no fim do século XX. Após o ocorrido, um rabo postiço foi posicionado no lugar. A preocupação com a segurança e a conservação do acervo do equipamento foi destaque nestas páginas desde os anos 2000, principalmente quando três homens roubaram uma tela de Cândido Portinari e outra de Pablo Picasso no Museu de Arte de São Paulo (Masp), em 2007. Após o furto aos óculos do frei Tito de Alencar Lima (1945-1974), em 2008, o Museu do Ceará ganhou, no ano seguinte, um novo sistema de segurança.
Em reportagem de julho de 2011, visitantes reclamaram de infiltrações e rachaduras nas paredes, buracos no teto e pisos frouxos do palacete. Em 2013, funcionários do Museu do Ceará confidenciaram ao O POVO que o prédio tinha janelas sujas, teto com infiltrações e remendos em certos pontos, paredes atravessadas por rachaduras e infiltrações. Na ocasião, uma funcionária afirmou que a central de ar-condicionado ficava desligada a maior parte do tempo. À época, o coordenador de patrimônio da Secult, Otávio Menezes, reconheceu os problemas e disse que os projetos de restauração estariam em análise. Ao assumir a Secretaria da Cultura em 2016, o secretário Fabiano Piúba disse, em entrevista ao Vida&Arte, que a modernização dos equipamentos culturais seria um dos desafios da pasta.
O Iphan emitiu comunicado à Secult em 2017, pedindo a pontuação de possíveis problemas estruturais do equipamento. Quando um incêndio atingiu o Museu Nacional do Brasil em 2018, no Rio de Janeiro, os olhos se voltaram para a segurança dos acervos em instituições do Ceará. Procurado pelo Vida&Arte àquela época, o secretário Fabiano Piúba garantiu que “não há motivo para pânico”, pois “há uma linha contínua de manutenção e custeio dos nossos equipamentos”. A então diretora, Carla Vieira, expôs: “Eu não poderia me capacitar a dizer que o museu não corre risco. O que nós temos são uma série de esforços voltados a evitar que tragédias aconteçam”. Enquanto os entraves ocorrem, a memória do Estado parece persistir em seguir resistindo, trancada, longe dos holofotes da visitação.
A seguir, com exclusividade ao Vida&Arte, a historiadora e multiartista cearense Sy Gomes Barbosa escreve sobre sua relação com o Museu do Ceará e lança olhar contemporâneo à ausência de um museu de portas abertas. Confira:
"O esquecimento é uma operação"
por Sy Gomes Barbosa,
especial para O POVO
Aos 16 anos, muito novinha, entrei no curso de História da Universidade Federal do Ceará (UFC). Em nossa primeira disciplina, intitulada "Introdução aos Estudos Históricos", vivenciamos uma aula de campo no Museu do Ceará. O ano era 2016. Sob a gestão do Professor Régis Lopes, o Museu seguia aberto com algumas exposições contínuas.
Lembro bem da Sala Vermelha. Acredito que, observando o acervo de mais de 10 mil peças históricas, antropológicas e ainda de história natural, grande parte sempre interno da reserva técnica, houve a necessidade de se pensar o poder político das armas, uniformes e quadros de homens poderosos. Lembro que essa sala debatia exatamente o poder institucional, logo ao lado, no mesmo espaço, estava também um bode. Uma taxidermia de quase 100 anos, que está empalhada desde 1931. Esse objeto é conhecido da cidade de Fortaleza, vocês sabem quem ele é. Bode Ioiô, ainda hoje é a peça que passou maior tempo em exposição no Museu do Ceará, pois era adorado pelas crianças, jovens e adultos. Ioiô teve seu rabo roubado, de tanto desejo que ele provocava.
Objetos, principalmente dentro de uma exposição, criam "aura", provocam obsessão. Isso foi algo que aprendi com os anos na História, por isso, tal bode já teve inclusive uma pelúcia sendo vendida nos souvenirs do museu. Os óculos de Frei Tito, que tinha uma exposição no Museu, também foram roubados.
Quando o museu era aberto, ele provocava tanta significância na vida de quem passava pelo Palacete Senador Alencar, prédio em que está até hoje, que era de fato um ponto turístico. O Palacete, anteriormente a Assembléia Legislativa do Ceará, foi finalizado e inaugurado em 1871 e tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em 1973. Contudo, nós sabemos que o desmonte dessa autarquia federal faz com que o processo de tombamento já não assegure mais nada, nem a conservação e nem a manutenção do acervo. O prédio que hoje tem 151 anos corre sérios riscos de incêndio, desabamento e está cheio de infiltrações.
No fim do ano passado, fui até o Museu do Ceará, acompanhada dos artistas David Felício, que também é historiador, e Jorge Silvestre, para me encontrar com a figura mais icônica e esdrúxula da história política cearense. O bode estava lá me esperando, sob sua base de madeira escura e se mantendo em pé com o suporte da equipe que resiste coordenando o museu. Agradeço, na pessoa de Raquel Caminha, diretora do Museu, a oportunidade de entrada no espaço, afinal o museu segue fechado.
Ao entrar por aquela porta, me vi reativando alguma função daquela fortaleza, que há muito só serve de banco, mijódromo e é esquecida por quem frequenta as festas da Praça dos Leões. Não é atoa que em minha última passagem pelo Bar Lions, me perguntaram se eu sabia o que era aquele prédio de pedra branca assentado na praça. Eu ri alto, me segurei para não dizer um desaforo e informei que ali estava o Museu do Ceará, mas logo em seguida percebi que jamais seria culpa de quem pergunta, pois aquele espaço, esquecido pelas autoridades desse Estado, sendo pelos esparsos sonhos dos funcionários que ainda trabalham lá, está fadado ao esquecimento. Um museu fechado, que só tem seu acervo para as listas, boletins e arquivos institucionais, jamais vai ser de fato reconhecido pela Cidade.
Urge a necessidade de uma reforma, pois já não se pode mais subir no segundo andar daquele prédio centenário. Além disso, é emergencial a retirada de todo o acervo daquele lugar. Se não há garantia de segurança, a Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult/CE) deve alugar contêineres, galpões ou seja lá qual espaço seja, para resguardar a dita história cearense.
Afinal, outra coisa que nós historiadores sabemos é que, assim como a memória, o esquecimento é uma operação. Assim como lembrar, esquecer é um desejo. Resta saber o que querem as autoridades cearenses. Querem esquecer os diversos fósseis, objetos indígenas, armas coloniais, vestimentas políticas, quadros centenários, esculturas, documentos, móveis e animais empalhados? Querem esquecer seu precioso Bode? Se não quiserem, o caminho é um só: mudem de operação, elaborem um resgate desse museu, pois se não, logo a fatalidade premeditada será real e já não teremos mais como desejar lembrar.
Conteúdo especial
Sy Gomes apresentou material inédito do projeto "Ioiô não vai votar", em que questiona a figura mítica do bode Ioiô, nas páginas do Vida&Arte, em outubro de 2021. As fotografias da performance ao lado do corpo empalhado do caprino estamparam a sobrecapa do O POVO, dentro da mostra "Nosso Papel é Arte", disponível para apreciação na seção Reportagens Especiais do O POVO Mais
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