Com mais de 10 anos de vivências íntimas com o Carnaval — sejam as mais pessoais ou as coletivas, compartilhadas na experiência da banda BaianaSystem — o cantor e compositor baiano Russo Passapusso tem crenças profundas no poder da festa. Neste sentido, o grupo assina "Manifestação: Carnaval do Invisível" — mini documentário musical lançado com a Amazon Music —, que promove uma reflexão sobre o período de hiato da folia a partir de resgates históricos, ancestrais e poéticos de elementos fundantes da expressão popular. É "mostrar o passado para entender esse presente e ter esperança para o futuro", como dá conta o artista, que assina a direção do filme com Letícia Simões e Filipe Cartaxo. Compreendendo as contradições da festa em 2022, Russo defende, em conversa por telefone com o Vida&Arte, a força do que nomeia de "microcarnavais" — da chita feita para fantasiar as crianças da rua às expressões do grupo cearense Garajal —, lampejos que manterão viva a essência da festa para quando pudermos ocupar as ruas novamente. Afinal, como responde a canção "O Carnaval Quem É Que Faz?", do BaianaSystem, à própria pergunta-título, "o carnaval ainda quem faz é o folião".
O POVO - Sob um ponto de vista pessoal, como foi para você e a banda lidar com não poder, especificamente, estar no "habitat natural" de vocês que é o carnaval?
Russo Passapusso - Foi um processo que acabou aflorando outras formas de produção: o lado do audiovisual, dos games. A gente fez o "Futuro Dub" (em abril de 2020), lançou o "OXEAXEEXU" (em abril de 2021), mas não tinha como tocá-los. A gente não sentiu o gosto. Isso gerou outra relação. Começamos a trabalhar, nos provocar e pesquisar outras formas de expressão. Começaram a surgir argumentos, roteiros, ideias, escritas, imagens, fotografias, tudo aquilo conduzindo a gente para um novo material. Inicialmente, a gente se sentiu numa relação de aquário, produzindo muito, mas sem conseguir ter contato, comunicação com o público, que é o que traz o complemento para a arte, o olhar do público faz parte dela, também. Agora, depois de dois anos, é que a gente está começando a dar o primeiro passo.
OP - Imagino que isso teve vazão, em especial, no filme recém-lançado. Qual foi a intenção ao fazê-lo?
Russo - Nesse aquário que eu falei, a forma de entender, enxergar música e ouvir imagem nos trouxe justamente o mini doc como primeira expressão. A gente tem 10 anos de carnaval. 10 anos de laboratório, de pesquisa, de imagens, de manifestação, de festas populares, no Nordeste e fora do Nordeste, no Brasil e fora do Brasil… Isso tudo foi se somando. Esse curta musical-documental aconteceu justamente com a junção disso tudo. A gente percebeu que tinha esse material de forma muito natural, como uma resposta à própria pandemia. Entendemos que esse hiato não era vazio, mas muito cheio. Esse tempo tinha histórias, reflexão, sentimento. A gente começou a sentir que isso trazia uma mensagem muito forte e costuramos tudo de uma forma maravilhosa, como se a gente já soubesse o desenho que ia se fazer no final. A gente queria mostrar que isso está mexendo muito com as pessoas, mostrar as invisibilidades... Mostrar o passado para entender esse presente e ter esperança para o futuro. Quando você não vai, você sente falta. Quando você sente falta, você começa a notar como era.
OP - A não realização do carnaval neste ano vem sendo atravessada por questões de classe: festas públicas e suas expressões populares não podem acontecer plenamente, mas festas privadas são liberadas mediante protocolos. É um contexto delicado, mas como você avalia esse cenário?
Russo - A Cidade não vai conseguir abraçar, com suas ruas, essa manifestação de carnaval, então a gente vai ter outro hiato. Um totalmente diferente daquele do ano passado, um já com a parte do capital — marcas, festas particulares, com protocolos para fazer os eventos, artistas precisando fazer sua arte nesses lugares, para quem pode pagar… Isso vai acontecer juntamente com os "microcarnavais": os da ruazinha de fulano, da frente da casa de fulana, do som que fulano botou no churrasquinho. Eu saúdo muito os "microcarnavais" das pessoas que vão fazer essas chamas serem acesas, fazer o contraponto às festas fechadas que você citou. O microcarnaval de dona Maria, que vai fazer a chita e colocar nas crianças da rua e aquilo vai acontecer com grande beleza. No carnaval, tem as pessoas que costuram roupas, tem manifestações variadas pelo Brasil inteiro. Em Maracanaú, fui para um lugar muito bonito com o pessoal do Cheiro do Queijo (grupo cênico-musical de rap palhaço). Cheguei no Garajal (grupo dedicado a artes cênicas, populares e de rua), que é uma expressão maravilhosa dos microcarnavais. São três mulheres que costuram, falam sobre todo tipo de cultura dos reisados. Fiquei, ali, cheio. Vivi meu carnaval ali, elas dançaram com espadas... Tinha, o quê, umas 12 pessoas ali, mas o poder era enorme. Expressões culturais vão acontecer e ter um poder muito grande que vai manter as coisas vivas para quando a gente puder voltar para as ruas. A mensagem que a gente tem que passar é a de que o futuro será diferente, melhor, e para isso a gente tem que acender esses lampejos, essas chamas, de continuidade, de respeito às manifestações populares.
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OP - Você fala de esperança, de futuro, e também de ver o há no hiato como uma forma de conexão com o espírito comunitário, ancestral. Qual o lugar de pensar e elaborar essa esperança em resposta ao clima pesado, mórbido, que o País vive politicamente, sanitariamente?
Russo - É muito interessante esse ponto que a nossa conversa chega porque a gente começa a perceber o potencial que a falta traz. Quanto te falta algo, você começa a ver a importância daquilo. Quando te falta alguém, você começa a ver a importância daquela pessoa. A gente sempre foi um País que viveu ininterruptamente um processo de abundância de festas, a gente sabe muito fazer isso, faz parte das nossas misturanças, nosso comportamento. Atrelar isso a um processo de esperança é algo muito natural. É o caminho mais natural da nossa sobrevivência. É como as pessoas aí do Jangurussu. Eu tomei uma aula absurda aí no mês passado, passei quatro dias. Fui ali para o pessoal do Vetinflix, conheci muito sobre a palhaçaria, algo que eu não tinha ideia de como era grandioso. Isso é um bom exemplo para falar sobre arte e essas pessoas que estão na rua fazendo sorrir. É como um grafiteiro que bota uma pintura numa parede sabendo que ela vai cair, mas ele não desacredita das pessoas que vão passar no transporte público e vão vê-la, o palhaço que está nos ônibus. A valorização desses detalhes tem que ser imensa. O respeito a esse tipo de artista tem que ser imenso. À palhaçaria de Fortaleza, ao pessoal do Jangurussu, ao de Maracanaú. Nutrem Fortaleza com expressões desse tipo. Isso tudo fala de esperança. Trazendo para o meu lugar, Salvador, interior da Bahia, de onde eu venho, é muito desses grupos de samba reggae, o Oludum, Ilê-Ayê, Ijexá. Nesse meio que a gente vive hoje, que tá tudo muito atrelado, que as coisas ficaram muito conectadas — a política, a ciência, a sobrevivência… —, cada vez mais ser, viver e existir já são atitudes políticas. Eu converso com você e consigo saber que você é um sobrevivente. Teu número não é pequeno. Eu escapei, mas muitos músicos não escaparam. Você escapou, mas muitos jornalistas não escaparam. No final das contas, a gente já tem um posicionamento existencial-político muito forte. Você já consegue olhar para mim e saber que eu me vacinei. Eu entendo que você é uma pessoa que se vacinou, porque você tá aqui. A gente entende cada vez mais que esse processo de política e esperança estarem abraçadas é um processo de sobrevivência. Tem muita coisa nas entrelinhas, nos detalhes. Acho que falta traz esse processo de esperança pra gente, justamente pelo olhar mais aprofundado naquilo que a gente precisa valorizar.
Manifestação: Carnaval do Invisível
Dirigido por Filipe Cartaxo, Letícia Simões e Russo Passapusso, com argumento de Filipe Cartaxo e Russo Passapusso, roteiro de Letícia Simões e pesquisa de Íris de Oliveira
Assista em www.bit.ly/CarnavaldoInvisivel