"A pintura corporal antes de tudo é uma proteção ancestral, que protege o espírito, a alma e a nossa identidade". A frase do artista visual, professor de geografia e líder indígena Benício Pitaguary (1992-2022) consta na epígrafe da monografia "Grafismo indígena: pinturas corporais como prática no ensino de Geografia na Escola Indígena Itá-Ara, Pacatuba-CE", apresentada por ele em 2019 para conclusão do curso de Geografia na Universidade Federal do Ceará. Alvo de apagamentos históricos — assim como diversas outras culturas dos povos indígenas do Brasil —, os grafismos refletem, nos trabalhos de jovens artistas indígenas cearenses dos povos Karão Jaguaribaras, Kariú-Kariri, Tremembé e Pitaguary, múltiplos sentidos de coletividade, identidade e ancestralidade.
No trabalho acadêmico de Benício, o artista e pesquisador destaca a relação íntima dos grafismos de cada povo com as próprias terras. "As pinturas corporais e grafismos indígenas assumem diferentes padrões e cores que se diversificam em função dos diferentes espaços e paisagens geográficas. Nesse sentido, pode-se perceber as pinturas corporais como interpretações ou representações das paisagens de alguns povos", escreveu na monografia.
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A relação íntima entre pele e terra, porém, como Benício segue, foi atingida pelo "difícil e longo processo" ao qual povos indígenas, especialmente do Nordeste, foram submetidos: o de esquecimento da própria cultura, incluindo as pinturas. A retomada dos costumes é um gesto de aproximação de si e dos seus.
Nascida no Distrito Federal e pertencente ao povo Kariú-Kariri — cujo território originário compreende os municípios cearenses do Crato, Juazeiro do Norte, Barbalha, Missão Velha e Nova Olinda, entre outros —, a artista, designer e tatuadora Adriane Kariú Oliveira define a aproximação dela aos grafismos como um movimento "coletivo".
"Meu povo está em retomada. Isso significa que estamos coletivamente retomando nossas tradições, espiritualidade e, consequentemente, o uso dos grafismos", explica. "Nesse processo, através das nossas narrativas, histórias e até através de sonhos, coletivamente voltamos a criar esses grafismos. Minha aproximação não foi individual, mas parte de processo coletivo", compreende.
Coletividade é regra na passagem dos saberes dos grafismos. Merremii Karão Jaguaribaras, artista visual, poetisa e ativista do povo pertencente à Serra de Ubatryté (hoje chamada Maciço de Baturité), tem no avô a primeira lembrança da arte. "Cresci vendo ele fazer tintas naturais para seus trabalhos de alquimia e cura. Com ele, aprendi a usar tintas naturais nos corpos humanos para cura e nos objetos para conexão de energia. Assim como ele, estou dando continuidade a este trabalho", afirma.
Para Acauã Pitaguary, do povo que ocupa os municípios de Maracanaú e Pacatuba, a expressão do grafismo foi uma reconexão, também, consigo. "Minha aproximação com a minha identidade foi através das pinturas e dos rituais. Costumo dizer que, quando eu estou pintando outra pessoa, aquilo é uma troca de energia. As pinturas indígenas carregam histórias com uma ancestralidade muito grande por trás de cada uma delas", atesta.
Artista visual e estilista, Rodrigo Tremembé traz inspirações das pinturas do seu povo, que ocupa terras em Itapipoca e Itarema, para o trabalho de criação de roupas e acessórios. "O grafismo foi a minha primeira 'vestimenta', essas marcas sempre estiveram presentes em minha pele, inerentes à minha existência. Desde minha recordação mais antiga, lembro de estar pintado de jenipapo e urucum nos rituais do Torém (dança sagrada do Povo Tremembé) na aldeia, na escola", compartilha.
"Os grafismos compõem características culturais e espirituais de determinado povo. Desse modo, cada traço conta uma história e tem sua simbologia e significado aproximando o ser indígena da sua ancestralidade", avança Rodrigo. "Os povos indígenas muitas vezes se identificam pelo grafismo. Todos têm suas particularidades. E não só a prática do grafismo, como dos artesanatos, da espiritualidade e da coletividade, nos aproxima do grande espírito, da nossa ligação com a terra e da nossa própria história", dialoga Adriane.
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