Logo O POVO+
Grupo Nóis de Teatro celebra 20 anos de trajetória
Vida & Arte

Grupo Nóis de Teatro celebra 20 anos de trajetória

Nascido na Granja Lisboa, Nóis de Teatro comemora marco de duas décadas de história com mostra especial e gratuita de repertório do grupo
Edição Impressa
Tipo Notícia Por
Espetáculo
Foto: Luiz Alves/Divulgação Espetáculo "Ainda Vivas", que reúne três histórias sobre mulheres, pessoas negras e LGBTs , estreou em 2019

Em 2002, em uma festa da Comunidade Católica de Granja Lisboa, um grupo de jovens do bairro se juntou para uma apresentação única de "Mariela - Uma prima distante de Cinderela". É esse espetáculo o marco inicial da história do grupo Nóis de Teatro, que comemora duas décadas de trajetória com uma mostra de repertório que destaca algumas das principais produções do coletivo. As apresentações gratuitas de "Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro" (em 30 de julho), "Despejadas" (em 6 de agosto) e "Ainda Vivas" (em 13 de agosto) ocorrem na sede do Nóis de Teatro, na Granja Lisboa.

"O grupo nasceu a partir de adolescentes com intuito de fazer 'pecinhas' de teatro nas festas comemorativas importantes da igreja. A partir daí, nos vimos empolgados a firmar um grupo de teatro dentro da comunidade, fazendo montagens maiores de espetáculos e com circulação de espetáculos nos bairros vizinhos", remonta a atriz Edna Freire, uma das fundadoras.

Das primeiras intenções, o grupo teve percurso atravessado pelo crescimento dos próprios membros. "Começamos na adolescência, então cada fase da vida foi sendo refletida nas nossas produções, assim como cada pesquisa e montagem foi refletindo na nossa vivência. 'Mariela' trazia as nossas referências de teatro da época, que, como estávamos começando, eram poucas", diz Henrique Gonzaga, ator e coordenador artístico.

 

Um dos entendimentos conquistados com o tempo foi sobre os potenciais do espaço público. "Começamos a compreender que o teatro de rua poderia ser a nossa forma de fazer teatro, não mais só uma necessidade por não ter um teatro na periferia. Descobrindo a rua como espaço de fomento do nosso trabalho, fomos compreendendo que era nela que os nossos corpos eram atravessados pelas constituições da vida social e são esses atravessamentos que nos movem hoje", segue o ator.

Coordenadora de formação e atriz, Kelly Enne Saldanha acentua a vinculação indissociável entre o Nóis e o Grande Bom Jardim. "Grande parte dos integrantes são moradores do território e tiveram toda a sua construção política, social e estética a partir desse lugar. Nossa formação pessoal reverbera nas produções do Nóis e toda a relação historicamente construída com a comunidade traz aspectos estéticos e poéticos em nosso fazer", aponta.

"Tudo que compartilhamos com a comunidade parte dessa troca constante. A priori, nosso desejo é de compartilhar nossa arte", avança Kelly, ressaltando que essa partilha está tanto nas ações culturais do grupo quanto em momentos formativos. Um dos projetos atuais do Nóis de Teatro, inclusive, é a Escola de Teatro Periférico, apoiada por edital público e com duração inicial de dois anos.

Vencedor do Prêmio Funarte Arte Negra, "Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro" soma mais de 120 apresentações realizadas(Foto: Tentalize / divulgação)
Foto: Tentalize / divulgação Vencedor do Prêmio Funarte Arte Negra, "Todo Camburão Tem Um Pouco de Navio Negreiro" soma mais de 120 apresentações realizadas

A comemoração de duas décadas, felizmente, se dá em um contexto de pandemia que já permite encontros presenciais. "Durante a pandemia, o Nóis teve o primeiro momento de completa desorientação do que seria o futuro, até que passamos a compreender que era preciso lidar com a situação", aponta Henrique. A assistente de produção e atriz Nayana Santos cita produções feitas de 2020 para cá. "O audiovisual é a linguagem que vem acompanhando mais recentemente os trabalhos, contando com os videoclipes que foram produzidos a partir das músicas do espetáculo 'Ainda Vivas'", exemplifica.

Constituído em um contexto que se pressupõe normativo e impõe às pessoas negras, indígenas e LGBTs e à própria cultura o lugar das margens, o Nóis de Teatro se colocava desde o princípio como "um dissenso ao projeto de cidade excludente, racista, misógino e LGBTfóbico que formula Fortaleza", como descreve Altemar di Monteiro, dramaturgo, ator e um dos fundadores do grupo.

"Fazer teatro 'na', 'com a' e 'para' a periferia é entender que há outras cidades dentro da cidade, outros modos de ver e sentir o mundo", atesta o artista. "Fomos compreendendo que periferia é bem mais que um conceito de território físico. Passamos a entender nossos próprios corpos como periferia do mundo, como lugares que produzem desvios à diversas perspectivas dominantes", avança.

A escolha de colocar raça, classe e gênero em pauta de modo "inseparável", como diz o dramaturgo, cria uma poética singular que parte dos próprios corpos dos integrantes do Nóis "como reflexo do mundo que vivemos e que aspiramos". "Isso é um diferencial do nosso trabalho na cidade, pois muitas crianças e jovens veem em nós uma plataforma de acesso a debates que pouco têm sido discutidos no âmbito do direito à cidade de Fortaleza", arremata Altemar.

Nóis de Teatro, a perspectiva Ubuntu e formas de ser coletivo

O POVO - O Nóis de Teatro, enfim, permanece, 20 anos depois. O que isso significa em níveis pessoais, simbólicos?

Altemar Di Monteiro - Ao longo de 20 anos, o Nóis mudou muito. E esse foi o tempo necessário para compreendermos que o coletivo é constituído de individualidades, de potências singulares que, juntas, formam esse mosaico de afetos. A perspectiva Ubuntu (Eu sou porque somos) começa a fazer parte de forma mais efetiva do nosso trabalho para nos lembrar que "nós somos porque eu sou”"

Entender essa dialética tem sido muito importante para o nosso trabalho: compreender que é necessário investir forças e afeto na trajetória individual de cada um (sobretudo num tempo de louvor ao Microempreendedor Individual). É através dessa compreensão que podemos fortalecer outras formas de coletivo, outras formas de se perceber e se relacionar, modos que nem uniformizem nossos corpos, sonhos e desejos e nem coloquem os indivíduos acima de qualquer coisa.

Trata-se mesmo de um pêndulo, um jogo dialético que fomos aprendendo a jogar. O modo de produção cultural mudou muito. Viver em coletivo hoje é resistir ao rolo compressor do empresariamento de si. Mas não podemos mais perder de vista o quão importante é termos 8 artistas com suas trajetórias fortalecidas para desenvolvermos um projeto consonante.

Mostra Repertório do Grupo Nóis de Teatro

Quando: dias 30 de julho e 6 e 13 de agosto (sábados), sempre às 19 horas

Onde: Sede do Nóis de Teatro (rua José Torres, 1211, Granja Portugal)

Entrada gratuita

Mais infos: @noisdeteatro

Podcast Vida&Arte

O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui

 

O que você achou desse conteúdo?