Nascida em Santos, a atriz Renata Carvalho, 41 anos, define o teatro como o "melhor e maior encontro" da vida. A relação move e fortalece a artista há 26 anos, mesmo com os solavancos do caminho — que incluem ataques e perseguições desde no mínimo 2018, quando casos de censura à montagem protagonizada por Renata, que é travesti, do espetáculo "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu" ganharam as manchetes nacionais. Escrita pela dramaturga trans e católica Jo Clifford, a peça acompanha um sermão de amor e respeito feito por Jesus, personagem da atriz.
Ainda que "conformada" com a saída forçada de diferentes espaços após seu "percebimento travesti", como compartilha ao V&A por e-mail, Renata se negou a sair da arte. A despeito dos ataques, inclusive institucionais, seguiu no teatro e alargou as experiências, acumulando trabalhos também no cinema nos últimos quatro anos. O mais recente é "Os Primeiros Soldados", do cineasta Rodrigo de Oliveira, que estreia na quinta, 11, no Cinema do Dragão.
O longa acompanha um grupo que vive o início da epidemia de aids no Brasil nos anos 1980. Nele, Renata vive a artista transexual Rose, que afirma a dada altura da produção: "Eles tentam nos matar desde que o mundo é mundo, é isso que eles fazem. E o que a gente faz é sobreviver sendo linda". Em consonância com o ímpeto de Rose, Renata fala ao Vida&Arte sobre a permanência no teatro, na arte e na vida.
Leia também | Confira matérias e críticas sobre audiovisual na coluna Cinema&Séries, com João Gabriel Tréz
O POVO - Para contexto, como começou sua relação com as artes cênicas e a atuação?
Renata Carvalho - Eu comecei no teatro em 1996, em um curso gratuito de iniciação teatral no Teatro Municipal de Santos, minha cidade natal, e nunca mais saí. Foi o melhor e o maior encontro da minha vida. Digo que vou todo dia para o teatro para ele não me esquecer, pois ele não precisa de mim, eu que preciso dele.
OP - Você fala muito da transpologia, ideia que se liga à atuação que você teve como Agente de Prevenção Voluntária de ISTs, Hepatites e Tuberculose e à formação em ciências sociais. Em quê essas experiências agregaram na experiência da arte? E vice-versa?
Renata - Na verdade, “transpologia” é o nome do meu estudo científico sobre a historicidade, transcestralidade, memória, identidade e a corporeidade trans/travesti. Este estudo teve início em 2007 quando me tornei agente de prevenção voluntária pela secretaria de saúde de Santos, trabalhando com travestis e mulheres trans na prostituição por 11 anos. A universidade veio aos 39 anos, minha pesquisa chegou primeiro do que eu. Compreender essa estrutura transfóbica, as construções sociais e o imaginário brasileiro sobre o corpo e a identidade travesti foi e é fundamental para poder debatê-lo com ética e responsabilidade no meu trabalho artístico.
OP - Mesmo com anos de trabalho no teatro, você se voltou para o audiovisual nos últimos três ou quatro. Como se deu esse processo de se encaminhar para as séries, o cinema, e, também, adaptar as suas ferramentas enquanto atriz para outra linguagem e registro?
Renata - Cinema e o audiovisual sempre foram um sonho, mas, como digo, o cinema na arte é como a medicina na educação, pouquíssimos alcançam. Entrei no audiovisual devido à democratização da educação, da arte e da tecnologia. Ações afirmativas, construção de universidades, leis de incentivo, celulares ampliaram esse campo restrito, alargando seu olhar. Ainda estou tateando, observando, escutando e me adaptando na interpretação para o audiovisual e está sendo uma descoberta linda e prazerosa. Sonhar é muito bom, mas viver seu sonho é emocionante.
OP - "Os Primeiros Soldados" faz um trabalho de memória que tem algo de factual, documental, mas também não se furta de fabular, imaginar. Em quê essa pulsão de imaginar novos mundos, por exemplo, pode nos ajudar a lidar com o presente?
Renata - Acho que estamos no momento de falar de vida, de cura, de prosperidade, de ascensão, de representatividade, de deslocar alguns corpos subalternizados na arte para narrativas mais positivas. A arte tem esse poder imagético, de suposições, do lúdico. Precisamos mudar essas narrativas depreciativas, viciadas, estereotipadas e recreativas que auxiliam na desumanização de alguns corpos. E a arte tem esse poder de transformação, de jogar luz em determinados assuntos, de provocar reflexões, abrindo mentes e corações. Essa luta também é pedagógica.
OP - Há quatro anos, em 2018, você foi uma voz forte e questionadora sobre a prática do transfake nas artes cênicas. Como você avalia esse cenário hoje? Houve melhoras nesse sentido? O que ainda falta ser posto em prática?
Renata - Sou idealizadora e fundadora do Monart - Movimento Nacional de Artistas Trans/Travestis e, dentro dele, do “Manifesto Representatividade Trans”, que visa a inclusão, permanência, empregabilidade, profissionalização e representatividade coletiva de corpos trans/travestis nas artes e nos espaços de atuação e criação artística e pede uma pausa na prática do transfake — quando artistas cisgêneros interpretam personagens trans. Lançamos o primeiro manifesto em março de 2017, hoje, cinco anos depois, vemos alguns avanços com o tema e a abrangência para outras instituições, mas ainda precisamos de muito para naturalizarmos nossas presenças nesses espaços. Mas a mudança está acontecendo, ela é lenta, gradual mas é constante. “Há um ponto de marca que dele não se pode mais voltar” (Grande Sertão Veredas)
OP - Além disso, você também esteve ligada à fundação de movimentos como o Coletivo T e o Movimento Nacional de Artistas Trans/Travestis. Qual a importância desse ato de se posicionar, se mobilizar?
Renata - Fundei o MONART para provar que artistas trans/travestis existiam. O Coletivo T foi para marcar também. O que queremos é uma democracia cênica que alcance todes os corpos artísticos. Sem luta nada muda. “A liberdade é uma luta constante” (Angela Davis)
OP- Em uma entrevista, o autor indígena Daniel Munduruku afirmou que reconhecimentos significavam para ele e a luta indígena uma forma de trazer à tona "tudo aquilo que a sociedade brasileira tem ocultado dela mesma". Trago essa reflexão para te perguntar: como você recebe as repercussões, prêmios e elogios aos seus trabalhos mais recentes no cinema?
Renata - Como uma atriz, fico feliz de ter um trabalho reconhecido pela crítica especializada. É muito bom ver uma atriz travesti ser reconhecida como atriz. É preciso celebrar e saudar acontecimentos assim. Concordo com Munduruku, está ficando cada vez mais difícil nos esconder, nos silenciar, nossas ausências estão começando a ser questionadas e o nosso trabalho está sendo reconhecido em lugares de prestígio social. Mas preciso ter a consciência e a nitidez que sou uma travesti, e ainda, somos corpos "intrusos" nesses espaços e de pouca valia.
OP- Você trabalhou anos no teatro como diretora e dramaturga. Houve uma demora em trabalhar no cinema enquanto atriz, mas e essas funções por trás das câmeras, há algum desejo, projeto?
Renata - Fui para os espaços de criação para poder criar espaços onde o meu corpo pudesse ser sujeito. Quero me dedicar um pouco mais à escrita, vou lançar meu segundo livro, "Domínio Público", texto da peça com Wagner Schuwartz, Elisabete Finger e Maikon K.. Estou desenvolvendo o roteiro do meu longa, “Corpo sua autobiografia”, que dirijo com a Cibele Appes. Faço muita consultoria e tenho estado em algumas salas de roteiro. Mas ainda estou engatinhando no audiovisual.
OP - No documentário "Quem tem medo?" (que traz um olhar para a ascensão da extrema direita a partir de entrevistas com artistas alvo de censura) você disse: "Já me tiraram de todos os lugares, mas do teatro vocês não vão me tirar". Essa afirmação categórica de permanência é muito forte e a gente pode trocar "teatro" por "cinema", "cultura", "Brasil", "vida". O que te fortalece nessa certeza de permanência tão corajosa?
Renata - Essa frase foi um recado e continuo ela dizendo que "eles mexeram com a travesti errada". Na época, estava sofrendo muitas censuras, perseguições, fake news, ameaças à minha integridade física e violações de direitos e tudo isso aconteceu por eu ser uma travesti. Fui expulsa/retirada de muitas instituições e lugares quando tenho meu percebimento travesti — educação, família, religião, trabalho, saúde… —, inclusive da arte. De certa forma, me conformei e não tive forças ou saúde para permanecer nesses espaços, mas da arte eu não permito, vou lutar sempre com todas as minhas forças para permanecer como tenho feito desde 1996. Hoje, depois de 26 anos, acho que posso afirmar que estou com uma carreira mais estruturada.
Os Primeiros Soldados
Quando: quinta, 11, sábado, 13, e quarta, 17, às 18h10min; e sexta, 12, domingo, 14, terça, 16, às 20h10min
Onde: Cinema do Dragão (rua Dragão do Mar, 81 - Praia de Iracema)
Quanto: R$ 16 (inteira); preço promocional de R$ 10 às terças (inteira)
Ingressos disponíveis no site ingresso.com (com taxa) ou na bilheteria física do cinema
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui