"Breaking Bad" (2008–2013) e "Better Call Saul" (2015–2022) compartilham muito mais do que criadores, personagens, atmosfera e ambientação. Criar um juízo de qualidade entre as duas é diminuí-las, porque uma complementa a outra a partir de uma gravidade narrativa compartilhada. As duas séries de Vince Gilligan — a mais recente co-criada por Peter Gould — mostram lutos mal trabalhados levando protagonistas à ruína moral.
Centrada em Jimmy McGill (Bob Odenkirk), personagem que viria a ser o trambiqueiro advogado Saul Goodman apresentado em "Breaking Bad", "Better Call Saul" funciona mais do que como simples obra derivada que antecede narrativamente o sucesso anterior — o que convencionou-se chamar "prequel", "prequela" ou ainda "prequência". A série, cuja sexta e última temporada terminou na semana passada, é um espelho capaz de reforçar pontos-chave do seriado original.
No violento universo de faroeste neonoir de Albuquerque de "Breaking Bad", o professor de Química Walter White (Bryan Cranston) resolveu cozinhar metanfetamina junto ao ex-aluno Jesse Pinkman (Aaron Paul) para deixar um legado financeiro à família quando inevitavelmente morresse de um câncer já avançado. Em Walter, o autoluto é o contrário de um freio moral. É um acelerador da falência ética.
Diante de uma justificativa moral irretocável, ele abandonou qualquer preceito moral para se afundar num mar de perversão. Aos poucos, se prova que o objetivo dele não era financeiro. Era ânsia do poder sobre a vida dos demais, aqueles que não foram amaldiçoados com o câncer. Ele abandonou a vida de Walter White, um professor que precisava fazer jornada dupla num posto para sustentar a família, para se assumir Heisenberg, senhor do crime.
Jimmy já nasce muito mais moralmente ambíguo, o que não era novidade — em "Breaking Bad", já como Saul Goodman, o advogado tropeçava entre o carisma e a imoralidade. Mas "Better Call Saul" viaja para antes de o alter ego nascer, quando Jimmy tentava debilmente ganhar a aprovação do bem sucedido irmão Chuck (Michael McKean), alguém amaldiçoado a estar sempre certo. Ou pelo menos acreditar nisso.
Ampliando a dicotomia Walter/Heisenberg, "Better Call Saul" divide o protagonista ainda mais. Ele foi o golpista Jimmy "Sabonete", virou o advogado iniciante Jimmy McGill, criou para si o corrupto Saul Goodman, até necessitar de fuga como Gene Takovic. O ponto de cisão é a morte do mentor/inimigo/pai substituto Chuck McGill, ao final da terceira temporada.
Confrontando a natureza imoral de Jimmy, Chuck, antes de morrer, "matou" o irmão ao negar a aprovação e sentenciou que ele era irredimível. Toda a derrocada de Saul Goodman é uma longa jornada para provar, mais uma vez, que o McGill mais velho era incapaz de errar.
Esse luto mal resolvido é compartilhado por quase todos no universo de "Breaking Bad". "Better Call Saul" chafurda mais as motivações de Mike Ehrmantraut (Jonathan Banks) e encontra na culpa a motivação para a falência moral do cansado "leão de chácara" de Gus Fring (Giancarlo Esposito). Responsável pela morte do filho, o ex-policial se afunda cada vez mais até o ponto onde foi apresentado na obra mais antiga. O personagem até apresenta certa oscilação narrativa na representação — vai de se recusar a matar a assassino constante —, mas segue como ponto alto da trama.
Com Gus, a vingança por perder alguém que amava é um dos centros de "Breaking Bad". Há também Jesse Pinkman, único personagem que conseguiu ver no luto uma possibilidade de redenção. Ou mesmo, agora, em "Better Call Saul", Kim Wexler (Rhea Seehorn), cuja memória da mãe é uma sutil referência ao relacionamento codependente dela com personagens moralmente mais flexíveis. Todos amaldiçoados pelas perdas, inevitáveis a quem vive.
A morte parece banal em uma obra tão cheia de assassinatos. O que "Better Call Saul" consegue fazer é dimensionar o peso de cada uma dessas inúmeras perdas, enquanto brinca de referências cruzadas com "Breaking Bad" — corpos descobertos em um e explicados no outro, participações especiais de antigos protagonistas, explicações de contextos de falas desconexas e inúmeros recursos narrativos divertidos e complexos.
A questão central não deveria ser se "Better Call Saul" é melhor do que "Breaking Bad", até porque a primeira não existiria sem a segunda. A questão é como "Better Call Saul" faz de "Breaking Bad" uma série melhor.
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