"Ninguém melhor para falar, problematizar, inventar e cobrar o Brasil do que brasileiros", atesta a pesquisadora audiovisual Luana Sampaio. Estudiosa da obra do documentarista brasileiro Eduardo Coutinho (1933-2014), a cearense — diretora de criação do O POVO — é autora de um dos artigos que faz parte do livro "Cinema e processos formativos: pensar a partir de Eduardo Coutinho". Com organização do professor Humberto Perinelli Neto, da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), a coletânea de artigos — que segue em processo — parte da produção audiovisual de Coutinho para desvendar aspectos do do País. A intenção é utilizá-la como material didático para o ensino de história no ensino fundamental.
Luana fez, em 2018, uma pós-graduação de curta duração na Deakin University, na Austrália. Na época, a pesquisadora tinha como tema o cinema híbrido no Brasil a partir da montagem. Uma das referências intransponíveis foi Coutinho, por conta do filme "Jogo de Cena" (2007), que mistura ficção e documentário.
O contato inicial foi sucedido por uma curiosidade pela filmografia do diretor — que inclui "Cabra Marcado Para Morrer" (1984), "Edifício Master" (2002) e "As Canções" (2011). "Acabei me interessando por saber o que mais eu poderia encontrar no cinema dele, me aprofundando, assistindo a outros filmes, até que conheci 'Peões', obra que se tornaria meu objeto de pesquisa do mestrado", narra.
O longa de 2004 acompanha metalúrgicos do ABC paulista que participaram do movimento grevista no Brasil comandado pelo ex-presidente e atual candidato Lula quando era líder sindical. "Ao longo da pesquisa, a montagem foi deixando de ser um elemento de análise e passou a dar espaço ao arquivo, à memória e à política", avança a pesquisadora.
A pesquisa de Luana, que compôs o programa de pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal do Ceará, traz análises estéticas e simbólicas de todas as sequências do filme. "O processo foi intenso, dado o pouco tempo pra desenvolver algo desse porte e as dificuldades que a universidade pública e a pesquisa acadêmica em artes e humanidades vêm enfrentando nos últimos anos no Brasil, sem falar na pandemia de covid-19", contextualiza.
A dissertação "Deixa o 'Peões' falar: o encontro entre arquivo, memória e política na narrativa histórica dos trabalhadores do ABC" foi defendida por Luana em 2021, com orientação do professor Marcio Acselrad e coorientação do professor Marcelo Dídimo Souza Vieira. O convite para compor a coletânea, fruto do projeto "Formação Docente e narrativa cinematográfica: contribuições estéticas e epistemológicas dos filmes de Eduardo Coutinho para o ensino de História no Ensino Fundamental I (Anos Iniciais)", surgiu pouco depois.
"O professor Humberto Perinelli entrou em contato comigo, apresentou sua pesquisa e fiquei muito honrada de receber e aceitar o convite. Meu trabalho versa muito sobre a discussão da escrita histórica, em especial quando ela é tomada como matéria-prima de elaboração do real, no cinema não-ficcional. Por isso, quando vi a oportunidade de utilizar os quase três anos de pesquisa no mestrado para fazer essas discussões entrarem em sala de aula e atingirem mais pessoas, especialmente jovens, foi algo maravilhoso", celebra.
O texto que compõe a publicação, explica Luana, se debruça na aproximação que o longa faz entre a luta sindical e "as noções de tempo, família e trabalho" dos personagens filmados. "As memórias das pessoas estão embebidas da experiência operária, seja no nascimento da filha que acontecia no mesmo dia de uma passeata, seja na ausência na criação dos filhos por conta da carga-horária exaustiva, seja na insistência de dores no corpo devido à insalubridade do serviço na fábrica", lista.
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"O artigo analisa as sequências de alguns personagens que trazem para a cena esses momentos em que a vida privada é mediada pela dinâmica na fábrica, de modo que ao contextualizar o que foram as grandes greves do ABC e em que momento político e histórico que o Brasil vivia naquele tempo, espero apresentar para o leitor uma parte do país que fomos e que, infelizmente, muitos ainda não conhecem", avança.
É justamente na ampliação de conhecimento sobre o Brasil que está um dos principais potenciais do cinema do diretor, defende a pesquisadora. "Se Coutinho fosse mais trabalhado na educação básica, se desde pequenas pudéssemos conhecer o Brasil por meio de suas lentes e sensibilidade, certamente teríamos muito mais consciência do país que somos, que herdamos e do que ele merece ser. Como João Moreira Salles disse sobre Coutinho: 'Com rigor e método ele construiu uma obra a partir da qual se pode saber como gostar um pouco mais de cinema - e bem mais do Brasil'", cita.
"Trabalhar o cinema nacional em sala é ver Brasis distintos e conhecer um pouco mais de suas especificidades em meio à efervescência imagética e sonora que ele propõe. Acredito no cinema como ferramenta lúdica de ensino capaz de se comunicar com todas as faixas etárias. O cinema de Coutinho só reforça isso, abre portas e gera perguntas muito mais do que as responde, e por entender que a escola deve ser espaço seguro de questionamento e debate, vejo que utilizar cinema nacional como ferramenta de ensino na educação básica é uma atitude não só bem-vinda, como necessária para as próximas gerações", finaliza.
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