O intelectual, artista e abolicionista negro baiano Manuel Raimundo Querino (1851-1923) é "referenciado e reverenciado" no título do Projeto Querino, comandado pelo jornalista Tiago Rogero. O podcast de oito episódios revê a História do Brasil a partir de um olhar afrocentrado. Se "a história é contada pelo ponto de vista dos vencedores", como diz a frase do autor inglês George Orwell, mirá-la por um ângulo distinto pode ajudar a desvelar pontos de percursos anteriores e questões atuais. Neste 7 de setembro que marca o bicentenário da Independência do País, Tiago fala ao V&A sobre o Brasil a partir da data.
O POVO - Observando o processo da Independência do Brasil, quem seriam os "vencedores"?
Tiago Rogero - Acima de tudo os escravistas, donos de escravizados. Nisso, está incluída a elite branca e política do período e o próprio imperador Dom Pedro I, que até o momento da Independência é príncipe regente e, a partir dela, se autointitula imperador. A escravidão era a principal fonte de renda do Brasil naquele momento, que passa a dar lucro para Portugal a partir do momento em que começa a ser empregado o trabalho escravo. No momento da Independência não é diferente, a escravidão tem um peso muito grande sobre o processo. Essas pessoas que tomam as decisões e se beneficiam delas nesse momento de ruptura do Brasil com Portugal são, acima de tudo, escravistas e definitivamente os vencedores desse processo.
OP - O bicentenário da Independência já seria um marco que, por si, convidaria a reflexões críticas sobre a história do País. Neste ano de eleições, com o acúmulo de uso político não só da data, mas de símbolos nacionais, que relevância essa elaboração adquire?
Tiago - A gente está vendo na prática, como por exemplo na tentativa de uso político da figura de Dom Pedro que o atual presidente candidato à reeleição está fazendo. Esse é um exemplo muito claro de um uso dessa história, especialmente da versão mítica dessa história: uma versão que considera só essa elite branca, como eu disse, que, como você citou, seriam os "vencedores", entre aspas. Esse uso político que o Jair Bolsonaro tenta fazer da figura de Dom Pedro é uma demonstração e essa tentativa de uso foi feita, por exemplo, na ditadura militar, há cinquenta anos. Bolsonaro se inspira nisso.
OP - De que formas descobrir o papel de figuras invisibilizadas pode nos ajudar a reelaborar a História do País e, até, impactar nas ações do presente?
Tiago - Foi isso que a gente tentou fazer no projeto Querino e, modéstia à parte, conseguiu, embora ele seja só mais uma contribuição a um longo trabalho que intelectuais, negros sobretudo, já vem fazendo há décadas. O próprio Manoel Querino, que a gente reverencia e reverencia no nome, é um exemplo de um intelectual negro que já fazia essa valorização da participação afrodescendente na nossa História há muito tempo. O Brasil teve escravidão por mais de 300 anos porque houve uma escolha das pessoas que se beneficiavam dela para que ela fosse mantida, mesmo quando a gente já era uma vergonha mundial, o último país das Américas a manter esse regime. Mesmo quem não é descendente dessas pessoas, mas não é negro, indígena ou não branco também se beneficia das relações socioeconômicas estabelecidas por um País que escravizou pessoas só por causa da cor da pele e que, nos anos seguintes à abolição, seguiu tratando essa população — os descendentes daquelas pessoas que um dia foram escravizadas — como cidadãos de segunda categoria. A gente procura contar uma versão mais completa da história do Brasil e todo mundo é beneficiado com isso porque a gente passa a olhar para o quadro geral, não mais para o retrato que estão querendo e sempre quiseram mostrar, que é essa versão mítica, masculina e quase 100% europeia ou branca, apregoada até hoje por quem vai fazer manifestações antidemocráticas no 7 de setembro.
OP - O que o percurso de pesquisa revela sobre a historiografia do País?
Tiago - O projeto Querino é fruto de um trabalho longo, são dois anos e oito meses com uma equipe de mais de 40 pessoas. Não tem nenhum furo de reportagem ou grande descoberta historiográfica nele, o que a gente fez foi uma pesquisa muito aprofundada e uma sistematização de fatos que, infelizmente, são desconhecidos da maior parte dos brasileiros. A gente faz isso dando crédito a todos os pesquisadores, intelectuais, historiadores, sociólogos que primeiro revelaram essas informações. Quem ouve vai perceber que usamos palavras fortes, mas não pesa a caneta em nenhum momento, tudo está muito referendado em pesquisa, foi checado e rechecado. É que quando olhamos para a História do Brasil como um todo, ela é assustadora, mesmo, é muito forte. Aconteceram muitas barbaridades para permitir que uns fossem tão ricos e tivessem tantos privilégios — e até hoje têm — e que outros fossem tratados como menos do que humanos. Essa história de tristeza, de barbárie, infelizmente não para quando termina a escravidão.
Projeto Querino
Já disponível para audição no site e plataformas de áudio
Mais informações: www.projetoquerino.com.br
Confira também
Minissérie da TV Cultura em 16 episódios, com direção e texto final de Luiz Fernando Carvalho e texto de Luis Alberto Abreu, "Independências" busca rever a história oficial. A estreia acontece nesta quarta, 7, às 22 horas.
Com organização de Antonia Pellegrino e Heloisa Starling, o livro "Independência do Brasil - As mulheres que estavam lá" recupera a participação de sete mulheres no processo histórico: Hipólita Jacinta Teixeira de Melo, Bárbara de Alencar, Urânia Vanério, Maria Felipa de Oliveira, Maria Quitéria de Jesus, Maria Leopoldina da Áustria e Ana Lins. É possível comprá-lo em www.bazardotempo.com.br
O podcast Vida&Arte é destinado a falar sobre temas de cultura. O conteúdo está disponível nas plataformas Spotify, Deezer, iTunes, Google Podcasts e Spreaker. Confira o podcast clicando aqui