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"Jango Jezebel" reaviva memórias de vidas travestis em meio à ditadura
Vida & Arte

"Jango Jezebel" reaviva memórias de vidas travestis em meio à ditadura

Partindo de pesquisa de memória, "Jango Jezebel - Onde Estavam as Travestis na Ditadura?" se debruça em vidas apagadas da narrativa histórica oficial
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Foto: Té Pinheiro / divulgação "Jango Jezebel" se desenvolveu no Laboratório de Teatro do Porto Iracema das Artes. Na foto, registro de montagem do espetáculo na Mostra da escola, em dezembro de 2019

"Na pesquisa histórica, antes de tudo, é preciso — e alguém vai fazer isso em algum momento — dizer que uma história é digna de ser contada. A questão é: o que há para além do que foi considerado digno de registro?". A reflexão compartilhada pela artista e pesquisadora transfeminista Helena Vieira em entrevista Vida&Arte aponta para uma questão norteadora do espetáculo "Jango Jezebel - Onde estavam as travestis na ditadura?". Com Helena, Noá Bonoba e Tavares Neto em cena e direção de Luiz Fernando Marques, a peça terá apresentação única e gratuita nesta terça, 13, às 19 horas, no Cineteatro São Luiz, após passar por São Paulo e Guaramiranga.

No relatório fruto da Comissão Nacional da Verdade publicado em 2015, um trecho que falava das "homossexualidades" durante a ditadura chamou a atenção de Helena, uma vez que o termo, ela avalia, "tentava dar conta de um conjunto de experiências de dissidência" distintas entre si — incluindo aquelas de travestis. A partir deste apagamento, decidiu empreender uma pesquisa sobre o tema.

"A história é uma narrativa construída em função das classes e grupos dominantes de dado momento do tempo, de modo que a participação, os trânsitos e as vivências de sujeitos dissidentes e subalternizados são apagadas ou apenas relatadas em função do olhar normativo do Estado ou das classes dominantes", aponta Helena.

Os parcos documentos encontrados por ela que davam conta da existência de travestis no período foram, essencialmente, as páginas policiais e de humor dos jornais, além de registros de shows artísticos que ocorriam à época. Foi nos relatos compartilhados por travestis que sobreviveram à ditadura, porém, que o projeto encontrou a principal base.

"Se você procura documentos sobre uma coisa e não encontra, pode inferir que ela não existiu. Isso é confundir a inexistência documental com a inexistência de uma experiência no mundo, porque nem todas as experiências foram documentadas", reforça.

Marcinha do Corintho, Jacque Chanel, Anyky Lima, Thina Rodrigues e Jane di Castro foram algumas das entrevistadas no processo, ainda antes da concretização da peça, em um trabalho de pesquisa de memória. "Se nós não coletamos, são memórias que vão sumir. Todo o conjunto de práticas, resistência e sobrevivência ao longo de um períodos mais obscuros da nossa história tende a desaparecer", atesta Helena. Das cinco citadas, Anyky, Thina e Jane já faleceram.

"A ausência (de registros) não é real. Houve um apagamento sobre o qual a gente fala no trabalho. Ele vai por dois caminhos, o do registro histórico, escavando depoimentos e histórias, e mistura esse levantamento com uma criação ficcional, invenção", dialoga Noá, atriz e preparadora de elenco. "Existem muitas histórias e elas são contadas a partir do nosso olhar, do olhar de travestis, sobre a história da nossa ancestralidade", avança a artista.

A fabulação entra na obra precisamente para dar conta de "registrar" aquilo que foi ignorado pela narrativa oficial. "O que nos leva pro teatro é a ausência de documentos. Existem alguns, mas eles não nos contam uma quantidade de histórias como nós gostaríamos. A escolha pela dramaturgia é justamente porque o teatro permite invocar narrativas não escritas e, nesse exercício de imaginação política sobre o passado, projetar para o futuro", aponta Helena.

É a partir daí que "Jango Jezebel" se constitui, inclusive, como "espetáculo de experiência". "Nós fazemos na peça a opção de sair da história para entrar na vida. A vida está para além da história. O que nós queremos saber é onde elas estavam e como viviam", afirma Helena. "Quem assiste não está lá só para aprender a história das travestis com a razão, mas para sair com uma memória corporal, para que isso se comunique no âmbito do poético, não somente no âmbito simbólico", estimula.

O gesto de lançar luz às travestis da época se concentrando nas experiências cotidianas de vida e sobrevivência, em contraponto à noção de heroísmo histórico, desponta como uma reverência ao coletivo. "Quando a gente fala desse momento histórico, tem sempre a presença de figuras masculinas que ficaram como heróis. O trabalho dissolve essa figura para trazer à tona a presença de corpos LGBTs que estiveram lá", avança Noá.

"A história das travestis não tem uma única heroína. Sabe por quê? Porque é a história das coletividades caminhando juntas para sobreviver. O que a história das travestis nos ensina, como uma memória que se projeta para o futuro, é justamente que nós não precisamos de heróis", finaliza Helena.

 

Jango Jezebel - Onde Estavam as Travestis na Ditadura?

Quando: terça, 13, às das 19 horas

Onde: Cineteatro São Luiz (rua Major Facundo, 500, Centro)

Entrada gratuita, com entrada por ordem de chegada

Classificação Indicativa: 14 anos

Mais informações: @jangojezebel e @outrogrupo

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