Se a filósofa francesa Marie-José Mondzain reflete em "A Imagem Pode Matar?" sobre onde reside a violência do visível, é possível também se perguntar sobre as potencialidades de vida e cura nele. A qualidade de uma imagem, porém, não diz respeito somente a ela, mas a quem a produziu, a quem a consome. É impossível dissociá-la do mundo, e vice-versa. Convidando a reflexões e ações irmanadas, o Fotofestival Solar chega à 2ª edição nesta quarta, 7, seguindo com ampla e gratuita programação de fruição, formação e dinamização do campo da fotografia e das artes visuais até domingo, 11. O evento ocupa espaços da Estação das Artes, no Centro, e o Museu da Imagem e do Som do Ceará.
Idealizado pelo fotógrafo e editor cearense Tiago Santana, o Solar foi concretizado enquanto "fruto de série de iniciativas no Ceará desde a década de 1980" — como ressalta o também diretor artístico — em 2018. Os contextos de País e mundo, como não podia ser diferente, afetaram e afetam o pensamento curatorial do Solar.
A estreia foi atravessada pela eleição recente do atual presidente Jair Bolsonaro (PL), enquanto a retomada em edição plena e maior vem quatro anos depois, na esteira da vitória de Lula (PT) no pleito deste ano. "O festival não pode ficar alheio ao tempo, só em torno da linguagem, mas sim dentro do contexto que se vive no Brasil, no mundo", defende Tiago.
A edição de 2022 ganha ares especialmente simbólicos porque ocorrerá em equipamentos pensados há décadas e entregues à população cearense ao longo do ano. "Isso reflete uma luta grande de várias pessoas que alimentaram esses sonhos, que foram concretizados mesmo com todas as adversidades. O Solar acontecer neles reforça a importância da mobilização", elabora o diretor. Se na edição anterior a toada era sobre encarar o "abismo", a atual traz sopros de "retomada, reconstrução, esperança, utopia, magia".
Principal exposição da edição, "Negros na Piscina" — com curadoria da jornalista, professora e pesquisadora Fabiana Moraes e do pesquisador e escritor Moacir dos Anjos — convida à visibilização de outros imaginários possíveis, em consonância com a proposta central do Solar em 2022.
Na recém-inaugurada Pinacoteca do Ceará, a mostra parte de aspectos que pensam a representação — da mídia às artes visuais — de populações cujos direitos foram historicamente suprimidos. O lugar da "piscina" simboliza, como elabora a curadora, "a boa alimentação, a escola, a segurança, o lazer", usualmente negados a mulheres, travestis, pessoas negras, indígenas, pobres.
"Como jornalista, trago questões sobre como, midiaticamente, se dão as representações dessas pessoas: estão sempre ancoradas na ideia de sofrimento. Quando se fala 'negro no jornal', geralmente vai se pensar em violência, racismo, tem uma ancoragem em questões que são reais, mas não contam de maneira integral essas populações. Quando repito imagens de sofrimento, de certa maneira nego que aquela pessoa tenha outras formas de existência e poder", exemplifica Fabiana.
A busca, avança a curadora, é por dar a ver representações dessas populações que, justamente, enquadrassem a força, a felicidade e a insurgência presentes nelas. O gesto é materializado nas cerca de 60 obras que compõem a mostra, incluindo não só fotografias — como a do mineiro Paulo Nazareth que batiza a exposição; a de Walter Firmo que estampa este texto; as que registram celebrações em periferias de Belo Horizonte e no Poço da Draga; e as da série "Ester dançando Vogue", de João Bertholini, que mostram poses de uma dança da retratada em uma comemoração de Natal na Casa Neon Cunha, espaço de acolhimento e apoio a travestis e transexuais em situação de rua —, mas também outros suportes e linguagens — como esculturas de Mestre Vitalino, Mestre Didi e Sonia Gomes e vídeos do Projeto Fruto de Favela e filmes.
O Solar conta ainda com exposições como "Cosmopolíticas" e "Quando o Vento Sopra", na Pinacoteca; "Constelações Latinas", "Convocatória Zum", "Livros - Espelhos e Janelas da Alma" e "Noite Solar", no Centro de Design; "e "Horizontes Desejantes", no MIS; debates, oficinas, lançamento de livros e show da cantora Céu.
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Um destaque especial da edição vai para o pensamento de construção de políticas públicas para a fotografia e as artes visuais, na iminência do anunciado retorno do Ministério da Cultura. "Os últimos quatro anos foram muito difíceis na política cultural de forma geral a nível federal. Agora, o que aparece no cenário é o início de um diálogo mais próximo para pensar efetivamente políticas, propostas", afirma Tiago, que ainda adianta a construção de uma carta que deve ser enviada ao Grupo de Transição de Cultura do governo eleito a partir do festival.
Da ação política à fruição, o Solar busca "atrair públicos diversos", inclusive apostando no diálogo com literatura, música e outros campos. "Alguém gosta de livros e vai para as mesas do assunto, ou vai para o show e se envolve com a Pinacoteca. Isso é enriquecedor. O Solar, para além de tudo, é uma estratégia, um pretexto para juntar pessoas e fazê-las serem contaminadas pela fotografia e pelas linguagens que dialogam", compartilha.
2º Fotofestival Solar
Quando: de quarta, 7, a domingo, 11
Onde: Complexo Cultural da Estação das Artes (rua Dr. João Moreira, 540, Centro) e Museu da Imagem e do Som do Ceará (av. Barão de Studart, 410, Meireles)
Entrada gratuita.
Programação: www.solarfotofestival.com/2022
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