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Ednardo 80 anos: biografia, filme, música e o voo incessante do Pavão Mysteriozo
Vida & Arte

Ednardo 80 anos: biografia, filme, música e o voo incessante do Pavão Mysteriozo

Celebrando 80 anos, Ednardo costura as memórias, reflete sobre a passagem do tempo em sua produção artística e se debruça sobre a Fortaleza contemporânea
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Ednardo completa 80 anos cercado de projetos na literatura, no cinema e na música; "Sempre estou querendo mais" (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Ednardo completa 80 anos cercado de projetos na literatura, no cinema e na música; "Sempre estou querendo mais"

Ainda mysteriozo, José Ednardo Soares Costa Sousa traja sua característica boina, à luz do fim de tarde, em um hotel à beira-mar na Praia de Iracema. Atrás de si, vaza um excerto de Fortaleza, que há 52 anos o cantor insiste em retratar em suas composições, pinturas e crônicas.

Comemorando 80 anos nesta quinta-feira, 17, artisticamente, Ednardo segue mais inquieto que nunca, se alimentando daquilo que visualmente lhe inspira.

"Tenho meus momentos. É diferente de quando eu tinha contrato com gravadoras e existia a pressão de entregar um disco por ano, com minha criatividade condicionada a isso. Agora, tendo minha gravadora e sendo dono de mim próprio novamente, componho quando quero, quando sinto que tenho algo a dizer", pontua.

Nascido no Bairro de Fátima, o grande homenageado no Carnaval de Fortaleza de 2025 tem recebido, nos últimos anos, diversos gestos que reafirmam a conexão de sua obra com toda uma geração que tem orgulho de ser cearense. Contudo, o reconhecimento por parte de sua terra natal, por vezes, ainda lhe soa como novidade e surpresa.

"Foi um momento de plena alegria, que me fez muito feliz. Tomei um susto, pois sempre achei que Fortaleza tinha uma certa ingratidão com os artistas daqui. Meu grande amigo e parceiro Belchior tinha esse ressentimento e me dizia: 'Somos bem recebidos no Brasil todo, nossa música chega no Exterior. Como é que em nossa própria cidade não tem esse cuidado com a música de seus próprios artistas?' Dizia para ele ir se acostumando com isso. Mas hoje vejo que existe, sim, essa valorização", compara.

Ao lado de Belchior, Ednardo viveu uma aventura de sul, suor e estrada. Na virada dos anos 1960 para os anos 1970, o mesmo vento terral que uniu toda uma geração de músicos cearenses também estufou a vela de alguns destinos. Além de Ednardo e Belchior, nomes como Rodger Rogério, Téti, Fagner, Jorge Mello e Amelinha decidiram tomar a estrada, se ramificando entre Brasília, São Paulo e Rio de Janeiro. Na turma paulistana, estavam Ednardo, Rodger Rogério e Téti, que, há 52 anos, se reuniam por lá para gravar o primeiro disco e registro histórico daquela geração: "Meu corpo, minha embalagem, todo gasto na viagem", de 1973.

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"O Brasil acostumou-se a ter o eixo Rio-São Paulo como fonte emissora de arte, televisão e música. Nunca havia tido um movimento contrário, de algo que nascesse no Nordeste e fosse fazer sucesso por lá", afirmou Ednardo, durante a entrevista ao O POVO.

A saída do Ceará, a chegada em outras praias (às vezes sem praia), o retorno nostálgico e a permanência combativa marcam presença nas canções do movimento que ficou conhecido como Pessoal do Ceará, dando fôlego a toda uma geração seguinte.

Fruto dessa inspiração, em 1978, enquanto Ednardo estava envolvido com a turnê de lançamento de seu disco "Cauim", jovens artistas lhe procuraram para falar da falta de espaço em Fortaleza, o que conflitava com o desejo que tinham de mostrar sua arte. Ao lado de Augusto Pontes, e incentivado por seus irmãos Régis e Rogério, criaram então a Massafeira Livre.

"Me veio a ideia de fazer um festival que juntasse todo tipo de ofício artístico. Quando a ideia se espalhou, gente de todos os lugares do Ceará começou a chegar. Quando vimos, a coisa ficou muito maior do que imaginávamos. Tivemos que fazer quatro dias, com oito horas por dia, para dar conta do volume de artistas. E o movimento de fato ficou marcado na história da música", relembra com uma empolgação sobressaliente em relação às demais perguntas da entrevista.

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Os quatro dias no Theatro José de Alencar renderam aos artistas um convite para gravar um álbum homônimo pela gravadora CBS. "Chamávamos, brincando, a CBS de 'Cearenses Bem-Sucedidos'", conta Ednardo, referindo-se também à acolhida que o selo dava ao Pessoal do Ceará.

No Hotel Santa Teresa, no Rio, durante o período de dois meses e meio em que esse grupo de artistas se transferiu para gravar o álbum duplo, o local ficou marcado como uma espécie de extensão da feira, especialmente na piscina do hotel, que originou diversas parcerias.

"A maioria daquelas pessoas nunca tinha gravado nada. Foi a primeira vez que entraram em um estúdio, e já foi de uma multinacional. Fomos em um grupo de 90 pessoas, na cara e na coragem, e de fato passamos por muitas dificuldades até começar a dar certo. Sinto que, depois da Massafeira, o Ceará não teve um movimento dessa amplitude", destaca.

Com a mente afeita ao passado, mas o olhar mirando o futuro, o compositor reflete sobre a passagem do tempo na música popular cearense e reconhece a potencialidade da produção atual.

"Essa nova geração continua fazendo coisas ótimas, eles são muitos e podem voar. E vejo também uma mudança das entidades e do público em receber e valorizar essa música local. Isso é sinal de que, de alguma forma, as pessoas estão acordando para a importância de que um povo fale de sua arte e de sua cultura. Um povo sem sua própria linguagem é um povo dominado", defende.

Como bom guardião da Cidade, na semana seguinte ao aniversário de 299 anos de Fortaleza, o compositor publica o livro "Ednardo - Papel, Pele & Pulso", que será lançado nesta quinta-feira, 17, às 17 horas, no Iate Clube. O pintor, o poeta, o cronista e o menino que corria sob o sol quente na pele - essas e outras facetas podem ser conferidas na publicação, escrita de forma conjunta com o jornalista Luã Diógenes.

Para além da publicação literária, que reúne sua vida e obra, Ednardo está tocando, já em fase de pré-produção, um longa-metragem inspirado em suas vivências, com direção de Rosemberg Cariry e Petrus Cariry.

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"Vamos fazer um longa-metragem inspirado em minha vida e minha arte. Ele terá o livro como base, mas dei toda a liberdade para Rosemberg e Petrus criarem novas situações a partir disso", ressalta.

Olhando pelo retrovisor, ao ser questionado sobre aquilo que guarda com maior carinho dentre suas conquistas e feitos nesses 80 anos, o pavão destaca: "Eu nunca me sinto totalmente realizado. Sempre estou querendo mais. Minha mãe se foi com 103 anos e fazendo coisas. Minha meta é mais ou menos essa: seguir trabalhando, ativo".

Papel, Pele & Pulso

"O livro é físico, obrigatoriamente no papel. Deixo nele um pouco de mim, de minha pele. E tudo isso com muito pulsar. Aí ficou, papel, pele e pulso", conta Ednardo, em tom de riso.

Deixando muito de si, chega ao mercado editorial a obra "Ednardo - Papel, Pele & Pulso", em um diálogo entre a escrita biográfica e a produção artística do biografado, costurada em parceria com o jornalista Luã Diógenes.

A ideia surgiu em 2020, quando Ednardo começou a ensaiar o feito de publicar um livro, que desde o início nasceu com a premissa de uma abordagem intimista.

De lá para cá, entre a luta contra um câncer na boca - ao qual o cantor culpa pelo hábito de fumar duas carteiras e meia de cigarro por dia - e problemas de visão que ocasionaram sete cirurgias oculares, a publicação do livro, hoje, soa de certa forma como uma conquista.

"Foi um trabalho de escrita minuciosa, com questões de saúde que impediram que o livro se concretizasse logo. Por conta da visão, foi difícil para mim trabalhar escrevendo no computador. Mas conseguimos terminar e o resultado está bonito. Estou tão feliz que me parece até difícil dizer", relata.

A publicação, além do caráter biográfico, mergulha em outras produções de Ednardo no campo da cultura, expressas em pinturas, desenhos, crônicas e poemas inéditos. Para a façanha de cartografar a produção de uma vida, o compositor dividiu a tarefa com Luã, que se dedicou ao trabalho de pesquisa e narrativa biográfica, cabendo a Ednardo o tom mais poético do livro, e ao designer Rafael Limaverde a criação gráfica.

A obra, que nasceu com o desejo profundo de ser destinada às mãos do poeta Gilmar de Carvalho, após sua morte, em 2021, quase foi parar no acervo das inúmeras biografias escritas por Lira Neto. Pelo excesso de contratos e projetos em curso, Ednardo optou, então, pela escrita de Luã, "um amigo de longa data".

"Luã conseguiu fazer um trabalho muito meticuloso, minucioso. Ele é um estudioso da arte feita no Ceará, tem um trabalho de pesquisa consolidado em um livro sobre a música cearense. Além disso, é uma pessoa que, para a idade dele, com menos de 30 anos, tem uma competência e uma experiência de jornalista que parece ter seus 60 ou 70 anos. Achei que tinha que ser ele", explica.

Com suas coordenadas existenciais em Fortaleza, para a ocasião, Ednardo realizou um lançamento nesta terça-feira, 15, na Biblioteca Pública Estadual, com uma roda de conversa que detalhou o processo do livro.

O segundo momento acontece no Iate Clube, nesta quinta-feira, 17, data que celebra os 80 anos do artista. A partir das 17 horas, o evento, que será aberto ao público, convida amigos, familiares e cearenses para celebrar a vida e a obra de um espírito enérgico, que tem sua produção fonográfica entrelaçada com a história do Ceará.

Lançamento de "Ednardo - Papel, Pele & Pulso"

  • Quando: quinta-feira, 17, às 17 horas
  • Onde: Iate Clube (Avenida Vicente de Castro, 4813 - Cais do Porto)
  • Entrada gratuita
  • Valor do livro: R$ 200
  • Mais informações: @ednardoreal
Capa do disco
Capa do disco "Berro", de 1976.

Fortaleza pelos olhos de Ednardo

Pavão Mysteriozo

Com elementos do maracatu, o grande hit de Ednardo foi inspirado no "Romance do Pavão Mysteriozo", um cordel nordestino da década de 1920 que narra a peripécia de Evangelista em busca da condessa, filha do conde, para pedí-la em casamento.

Ednardo lembrou-se de um cordel que leu quando era adolescente, e, segundo o próprio, veio como uma epifania traçar um paralelo entre a situação política brasileira na época da ditadura, que retinha a liberdade enclausurada, como a donzela do cordel, em uma torre inacessível aos brasileiros. A música foi lançada em 1974 e tornou-se amplamente conhecida por ser a trilha sonora da novela Saramandaia, da Rede Globo.

Terral

Em referência ao vento terral, vento quente e seco típico da região nordestina, a faixa mistura elementos do baião e do xote para cantar paisagens tipicamente cearenses.

Lançada no compacto "Ednardo do Pessoal do Ceará", de 1973, a composição levou a repercussão nacional às dunas brancas do Morro Branco, à Praia do Futuro, ao bairro Aldeota e aos faróis novos e velhos do Mucuripe. Além de retratar as diversas Fortalezas existentes em uma só, a canção foi responsável por cunhar a emblemática frase "Sou a nata do lixo, sou do luxo da aldeia, sou do Ceará".

Passeio Público

"Passeio Público" é uma composição dedicada à ativista política Bárbara Pereira de Alencar (1760 - 1832), pioneira revolucionária do Ceará. Em 1817, Bárbara de Alencar participou de uma ação revolucionária no Vale do Cariri, no Ceará, para combater os danos do império português no Nordeste, e foi presa e torturada no mesmo ano por agentes da repressão. Em 1976, ano em que Ednardo lançou "Berro", o Brasil vivia sob a mordaça da ditadura implantada em 1964. Lembrar a história de Bárbara de Alencar - mulher de "sonhos tão loucos", de "sonhos eternos", como o compositor poetiza em versos da letra - foi a forma de Ednardo se conectar, pelo passado, com o presente do Brasil de 1976.

Longarinas

Composta para o disco "Berro" (1976), a canção levanta, entre outros temas, a relação entre a cidade e a sobrevivência de sua memória. O título faz alusão aos pilares da Ponte Metálica da Praia de Iracema, estrutura metálica de sustentação da ponte, desgastada pelo mar, pelo tempo e pelo descaso dos agentes públicos. Ao citar jangadas e expressões típicas do cearensês, como o "desmilinguir-se", o compositor cultua a altivez e a resistência, em uma cidade que, em detrimento de sua memória coletiva, tem suas construções e a antiga Praia de Iracema sendo engolidas pelo mar.

Nosso melhor retrato

Por Marcos Sampaio, crítico de música e editor do Vida&Arte

Nunca considerei Fortaleza uma cidade com boa autoestima. É algo que parte do poder público e atinge as diversas camadas da população. Não visitamos nossa história, pouco valorizamos nossa cultura, ignoramos os artistas que nasceram e querem crescer por aqui. Um museu como o do Ceará está há meses fechado, mas, vamos e convenhamos, não faz muita falta por que não existe interesse em visitá-lo nem por parte da população local, nem por quem cuida do turismo por aqui.

Mas, caso um dia a Cidade seja tomada por uma "sinapse milagrosa", como diria o maestro Márcio Landi, e resolva recuperar sua autoestima, sugiro que ela comece ouvindo a obra de Ednardo. Ele faz parte da trinca heroica recorrentemente apontada como "os principais compositores do Ceará" - composta ainda por Fagner e Belchior. Ou seja, os três que ganharam reconhecimento no Sudeste. Não acho que precisamos da aprovação que vem de fora, poderíamos ser autossuficientes nisso. Mas ele merece todo o mérito que seu ofício puder oferecer justamente por ter corrido o mundo fazendo música, sem nunca deixar aquilo que o faz mais fortalezense.

Na adolescência, por várias vezes dormi nas tábuas da Ponte Metálica, sem saber que elas repousavam sobre longarinas. Antes disso, lembro de uma tia que colecionava cordéis, entre eles o clássico "Pavão Mysteriozo". Na contracapa do disco de estreia, que tomou emprestado o título desse cordel, Ednardo está tocando violão sentado numa rede, algo tão cearense quanto as dunas brancas da beira-mar. O Passeio Público foi sonegado à Cidade por décadas de descaso. Mas, antes da reforma, restauro e revitalização, o compositor já havia preservado a praça em mais uma canção. Certa vez, estava conversando com dois curadores de arte radicados na França que se encantaram com a história da Padaria Espiritual. Curiosos, me pediram referências para saber mais sobre o tema: comecei mandando a música de Ednardo.

Mais pessoalmente, ele entrou na minha vida através de uma fita cassete que misturava canções de Tim Maia, Agepê, Alcione e outros nomes em alta no momento. Eu mal tinha dez anos de idade, mas lembro de me encantar com uma faixa em especial, que mais parecia uma ópera por que começava bem lenta, depois mudava o ritmo, e depois de novo. Era "Dorothy L'amour", na voz aguda de Ednardo, uma obra-prima que ainda hoje tenho como uma das minha preferidas.

Se a obra é um reflexo de quem a compôs, imagino que a cabeça de Ednardo seja uma imensa teia de referências que vão do cinema à filosofia, passando por literatura, teatro e vivências comuns a muitos, como a descoberta do amor, do sexo, do proibido, do Carnaval, da boemia. De tudo isso, ele fez canção. E a canção que melhor retratou o povo de Fortaleza. É até curioso que ele faça aniversário tão perto do aniversário da Cidade. Talvez por que ele seja o melhor presente que Fortaleza já ganhou.

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