Quando Chihiro finalmente senta no banco do trem, acompanhada de um ratinho, uma mosquinha e o Sem Rosto, finalmente respiramos. Ela observa pela janela enquanto o trem viaja, o sol se põe e os viajantes turvos aos poucos chegam aos seus destinos. A busca de Chihiro está além do pôr-do-sol, na última parada, e não resta nada para fazer além de esperar.
É assim que o diretor Hayao Miyazaki, co-fundador do Studio Ghibli, nos propõe a contemplação. É o ma, palavra japonesa que simboliza o espaço negativo. Uma espécie de momento entre as ações, uma brecha pela porta fechada, o vazio. Não há nada ali além do mundo.
Em todos os filmes, entrevistas e fotos, Miyazaki parece lançar luz para o ma como o ponto cardeal da existência humana; a necessidade de parar, respirar e viver. “Olha como ela parece despreocupada”, diz o artista ao admirar a gata Ushiko, mascote do Studio Ghibli, em uma cena do documentário Estúdio Ghibli: Reino de Sonhos e Loucura. “Ela não tem cronogramas.”
Hayao Miyazaki nasceu em 1941 em Tóquio, no Japão imperial. Segundo de quatro irmãos e filho de Yoshiko Miyazaki (mãe) e Katsuji Miyazaki, ele cresceu apaixonado por aviões. Não era por menos: o pai era diretor da Miyazaki Airplane, fabricante dos lemes dos caças de combate japoneses durante a Segunda Guerra Mundial.
Crescer durante a guerra inevitavelmente marcou Miyazaki. Mostrou que a beleza pode ser corrompida — como os belos aviões transformados em armas — e que a infância nem sempre é intocável.
“Aviões são mais bonitos quando estão no ar. Eu queria ver um Zero (avião de caça Mitsubishi A6M "Zero", projetado no Japão durante a Segunda Guerra) pilotado por um piloto japonês, não um americano”, confessou Miyazaki em entrevista ao The Asahi Shimbun.
Os aviões de Miyazaki
“Incluindo a mim, uma geração de homens japoneses que cresceram durante um determinado período têm sentimentos muito complexos sobre a Segunda Guerra Mundial, e o Zero simboliza a nossa psique coletiva.”
“Eu sou um pacote de contradições. O amor pelo armamento é muitas vezes uma manifestação de traços infantis em um adulto”, concluiu o diretor, publicamente anti-guerra.
Em duas ocasiões a família de Miyazaki precisou ser evacuada: para Utsunomiya em 1944 e depois para Kanuma, em 1945, após a última cidade ser bombardeada quando Miyazaki tinha quatro anos de idade.
A vivência da guerra e a culpa pela família ter lucrado com a construção dos aviões com certeza moldaram a personalidade do diretor. Mesmo criando obras inspiradoras e belas, Miyazaki cresceu como um homem cético.
“O futuro é claro. (O Studio Ghibli) vai acabar, já consigo prever. Qual o sentido de me preocupar? É inevitável”, é uma das frases mais marcantes de Hayao durante o documentário Estúdio Ghibli: Reino de Sonhos e Loucura.
Ferrenho defensor da animação tradicional, sem computação gráfica e sem inteligência artificial, Miyazaki previa que o trabalho do Ghibli — gerido por ele com mão de ferro na exigência pela perfeição — seria financeiramente insustentável.
Ele mesmo tem uma relação de amor e ódio com o processo criativo. “Eu nunca me sinto feliz no meu dia a dia. Fazer filmes só traz sofrimento…”, declara no documentário. Mesmo assim, a existência de Hayao só fez sentido com a arte: “Eu não consigo nem acreditar que realmente quero fazer mais um”, continuou, com um meio sorriso.
Não à toa, ele anunciou a aposentadoria pelo menos quatro vezes — e não cumpriu nenhuma. A primeira foi em 1997, com 56 anos, após Princesa Mononoke. Mas logo em seguida ele dirigiu A Viagem de Chihiro (2001), pelo qual ganhou um Oscar de Melhor Animação em 2003, e prometeu parar. Continuou dirigindo vários filmes, até decidir que encerraria a carreira com Vidas ao Vento (2013).
Dez anos depois, em 2023, ele reaparece com o filme O Menino e a Garça (2023), animação biográfica que também venceu o Oscar de Melhor Animação em 2024.
A defesa da animação tradicional, o posicionamento anti-guerras e a valorização da empatia e do diálogo como ferramentas para superar desafios são reflexos da veia ambientalista de Hayao Miyazaki.
Em todas suas produções, a natureza surge como um ente vivo e mítico constantemente agredido pela humanidade — e capaz de responder com a mesma intensidade.
Em Nausicaä do Vale do Vento, as florestas morreram e os humanos temem e combatem o Ohmu, um animal gigantesco parecido a um inseto. Ele é visto como monstro, mas Nausicaä é a única a entendê-lo como a chave para a solução dos problemas socioambientais de seu mundo.
Em Princesa Mononoke, Miyazaki versa sobre o falso maniqueismo entre humanos e natureza, e como o ódio e a descrença nos impede de viver em harmonia. No filme, fica claro que boas pessoas, ou pessoas com boas intenções, também são capazes de destruir o meio ambiente.
“Quando você fala de plantas, uma floresta ou outro sistema ecológico, as coisas ficam fáceis se você decidir que pessoas ruins destruíram elas. Mas não é isso que os humanos têm feito. Não são pessoas ruins que estão destruindo as florestas; (na verdade) são pessoas trabalhadoras”, comenta em entrevista à Tokuma Shoten em julho de 1997.
“Esse é exatamente o problema da destruição ambiental que estamos enfrentando em escala global. Essa é a complexidade da relação entre humanos e natureza. [...] À medida que fomos perdendo a noção desses seres sagrados (como os kodamas, espíritos da natureza), os humanos de alguma maneira perdem respeito pela natureza. O filme lida com esse processo na sua completude”, conclui.
A posição de Miyazaki não é, necessariamente, de um ativismo latente. Em entrevista à Academia em 2009, ele explicou que não tenta representar a natureza com algum ideal específico, mas refletir sobre qual tipo de ambiente queremos para as presentes e futuras gerações, e se devemos fazer algo sobre isso.
Fato é que, na percepção de Miyazaki, a tradição e a espiritualidade garantem a convivência com o planeta. O ma reaparece nesse conceito de admiração à natureza essencial para a existência humana, quando os principais momentos de pausa em seus filmes envolvem paisagens naturais.
Tanto é verdade que quando o produtor Harvey Weinstein, da distribuidora estadunidense de Princesa Mononoke, ameaçou cortar o filme de 2h13min para 90 minutos, Miyazaki respondeu à altura. Enviou uma katana com os dizeres: Sem cortes.
“Na verdade, meu produtor fez isso. Embora eu tenha ido a Nova York para conhecer esse homem, esse Harvey Weinstein, e fui bombardeado com esse ataque agressivo, todas essas exigências de cortes”, explicou ao The Guardian em 2005, sorrindo logo em seguida: “Eu o derrotei."
Hayao Miyazaki sempre desejou ser artista de mangá, mas cursou Ciência Política e Economia em 1963 na Universidade Gakushuin. Lá, entrou no Clube de Pesquisa de Literatura Infantil e, nos tempos livres, visitava o professor de arte do colegial para desenhar, beber e conversar sobre política.
No mesmo ano de formado, ele foi contratado pela Toei Animation, estúdio de animação famoso por filmes e animes, onde trabalhou como artista intermediário. Foi lá que os anos de efervescência política se materializaram: protagonizou uma disputa trabalhista na Toei e tornou-se secretário chefe do sindicato trabalhista do estúdio em 1964.
Ao lado dele, Isao Takahata, co-fundador do Studio Ghibli e diretor de obras-primas como Túmulo dos Vagalumes (1988) e O Conto da Princesa Kaguya (2013).
Os futuros fundadores do Ghibli lutavam por melhores condições de trabalho aos animadores. Na época, os prazos de entrega “eram apertados e a qualidade irrelevante: pelo menos um animador morreu enquanto trabalhava”, relata a revista Jacobin.
Miyazaki e Takahata lideraram greves e, vinte anos depois, fundaram o Studio Ghibli no desejo de inovar na valorização do trabalho dos animadores. De fato, o estúdio tinha condições melhores que a do mercado geral, mas ainda assim a carga de trabalho era pesada.
Em entrevista ao portal Dazed, em 2016, o produtor Hirokatsu Kihara "Kihara produziu os filmes Laputa: Castelo no Céu; Meu Vizinho Totoro; e O Serviço de Entregas da Kiki" comentou que a sensação é de que “todos (no Ghibli) são substituíveis, incluindo Miyazaki”.
“Durante os três filmes que eu trabalhei, eu fui o confidente do Miyazaki em termos de ideias e conceitos. Dessa experiência, eu percebi que o problema era que o Miyazaki gosta de dar completamente tudo de si e tudo que ele possuía em um filme. Mas, quando você conclui o trabalho, o que sobra?”
A lógica de trabalho intensa, na qual todos os filmes devem ser perfeitos, recai em um Studio Ghibli de pressões e esgotamento. “As pessoas que trabalham no Ghibli saem rápido — e nunca retornam”, conclui Hirokatsu Kihara.
Definido pelo diretor de Ghost in the Shell, Mamoru Oshii, como “um pouco trotskista”, Miyazaki aos poucos se desvencilhou do comunismo. Após concluir a versão mangá de Nausicaä do Vale do Vento, ainda na década de 1990, o animador decidiu “que o marxismo era um erro”, em uma “rejeição filosófica do romantismo operário”, como definido por Owen Hatherley em reportagem para a revista Jacobin.
De qualquer forma, foi o trabalho que definiu Miyazaki. A entrega pessoal irrestrita à animação o transformou em um pai ausente — ele casou-se em 1965 com a animadora Akemi Ota e teve dois filhos, Goro e Keisuke Miyazaki.
Goro atualmente trabalha como diretor e animador no Studio Ghibli, mas continua com uma relação difícil com o pai. “Hayao Miyazaki, para mim, é nota zero como pai, nota máxima como diretor”, escreveu em 2006 em uma postagem no blog pessoal. “Meu pai se jogou completamente no seu trabalho. Quase todos os sábados e domingos ele continuava trabalhando: é por isso que, desde que me entendo por gente, eu mal tive a chance de falar com ele.”
Mesmo adorador de heroínas femininas, o descaso de Miyazaki com a família forçou a esposa a largar a animação e virar dona de casa. Goro chegou a afirmar, em outra postagem no blog, que assistia aos filmes do pai porque queria entendê-lo.
Foi entre as contradições e os vazios que Hayao Miyazaki construiu uma carreira de filmes inquestionavelmente belos. Para nós e para a família, eles continuam a melhor forma de acessar quem é o diretor do Studio Ghibli e entender a mente de um dos maiores animadores do século XX e XXI.