“Ambientalistas alertam para perigo de expansão”. A manchete é do ano de 2004. Fortaleza, com 2.256.236 habitantes, crescia para o leste. A Sabiaguaba, bairro que na época contava com cerca de 2.907 moradores, era considerada uma grande “área vazia”, perfeita para a expansão urbana.
No objetivo de impulsionar o turismo e reduzir o tempo de locomoção entre a Praia do Futuro e a Sabiaguaba, decidiu-se pela construção de uma ponte, iniciada em 2003.
Entre críticas, argumentos, denúncias e embargos de obra, a ponte de concreto subiu. Fincou 12 pilares no rio Cocó, aterrou cerca de 30 hectares de mangue e, inevitavelmente, impactou em uma década um ecossistema que levou milênios para se formar.
Há cinco mil anos, as curvas da Sabiaguaba eram outras. As dunas móveis moldavam o horizonte de uma Fortaleza inimaginada, quando a atual Duna da Baleia provavelmente ainda estava em formação (ou sequer isso), e o mar avançava as linhas de praia hoje habitadas.
Nessa paisagem paralelamente familiar e estranha, existindo durante a Última Transgressão — quando o nível médio do mar atingiu até cinco metros a mais do que a altura moderna — tocaram os pés humanos.
Sabemos pouco sobre esses ancestrais. Nós os conhecemos por rastros, expostos pela areia, de pedras lascadas, cachimbos, fogueiras e conchas.
Foram as construções da Ponte da Sabiaguaba e das rodovias estaduais CE-010, CE-025 e CE-040 que possibilitaram a descoberta de pelo menos sete sítios arqueológicos na região.
Para conseguir o licenciamento ambiental, os empreendimentos são obrigados a apresentar o Estudo Prévio de Impacto Ambiental (EIA) e o Relatório de Impacto Ambiental (Rima), que incluem pesquisas arqueológicas.
No começo dos anos 2000, arqueólogos liderados por
Das fogueiras, coletou-se uma amostra para fazer a datação com Carbono 14, que voltou com a estimativa de 4.600 anos
Nem tudo pode ser concretamente afirmado sobre esses povos. Pela característica das dunas, é difícil saber se a fogueira coexistiu com os outros vestígios, já que os achados arqueológicos podem ter sido revirados revirados com a dinâmica da areia, misturando passado e presente.
Sítios arqueológicos da Sabiaguaba
O que é possível afirmar, diz a mestre em Arqueologia Luci Sousa, é que em algum momento houve uma indústria
As evidências estão por todo lado: lascas de pedras decoram a areia até onde a vista alcança. Para olhos sem instrução, parecem pedrinhas comuns, mas os treinados identificam os sinais. São finíssimas, pontiagudas; parecem pedaços soltos de uma peça maior.
“É uma indústria muito particular porque ela possui uma quantidade muito grande de material”, destaca a arqueóloga. “Tanto que a gente conseguiu coletar 16.278 artefatos líticos de um único sítio, de um quadrado pequeno, e ainda ficou uma quantidade absurda no campo.”
O sítio é entendido como indústria porque há uma “cadeia operatória”, explica Luci. Os vestígios sugerem que naquela região pode ter ocorrido toda a cadeia de processamento, corte e perfuração de moluscos com artefatos líticos.
Expostos pelas dunas, os materiais ecoam um passado de habitantes habilidosos, que provavelmente encontraram no estuário riqueza biológica e alimentar.
O rio Cocó fluía tranquilo ao encontro do mar, sem estradas, sem prédios, sem asfalto. Areia e árvores misturavam-se no horizonte. Não é preciso voltar cinco mil anos para imaginar a cena; bastam 50.
Após uma tarde inteira passeando pelas dunas, observando pássaros e tocas, mergulhando os pés em lagoas naturais em formação e ouvindo o silêncio do vento e do mar, voltamos para a redação em um carro por aplicativo.
Conversa vai, conversa vem, a coincidência: o motorista, de 62 anos, desanda a rememorar a Sabiaguaba de 47 anos atrás. Ele diz que chegou à Sabiaguaba com 15 anos, quando a região da padaria Portugália (na rua Professor Otávio Lobo, ao lado do Parque do Cocó) era só “morro de dunas”.
Com família e amigos, ele ia para a Praia do Futuro atravessando dunas, caminhando “por cima da cidade do Fortal”. Era uma imensidão. Os jovens esquiavam na areia, jogavam bola e a “água corria das dunas”. “Foi a época de ouro”, define.
Rindo, o motorista disse que não queria se identificar: ficava tímido. Mesmo assim, a lembrança de uma Fortaleza e, principalmente, uma Sabiaguaba ainda preservada nos anos 1960 dão o contraste certo para a luta por proteção do que sobrou.
Aporte de sedimentos para praias e estuários
A migração das dunas em direção às margens dos estuários é um processo natural, fornecendo areia para as praias da Sabiaguaba e do Futuro. O bloqueio desse fluxo de areia pode levar à erosão severa nas margens dos estuários e nas praias.
Proteção contra a erosão costeira
O conjunto das dunas móveis e fixas da Sabiaguaba protegem a linha costeira contra enchentes e outros eventos extremos, atuando como uma barreira natural contra a ação do mar e dos ventos.
Habitat para biodiversidade
As dunas móveis abrigam uma vegetação especializada e adaptada. Junto às dunas fixas e semifixas, elas abrigam, protegem e alimentam a biodiversidade terrestre da Sabiaguaba.
Recarga do aquífero
A dinâmica e a composição porosa das dunas móveis contribuem para a recarga do aquífero subterrâneo. As dunas de Sabiaguaba representam os setores de maior qualidade de reposição de água doce para o lençol freático de Fortaleza.
Regulação da dinâmica eólica
As dunas móveis são estruturas eólicas construídas naturalmente pela ação dos ventos. A movimentação e a forma delas são intrínsecas à dinâmica eólica da região, influenciando os corredores de vento.
Amortecimento de impactos
Em longo prazo, a preservação da paisagem costeira, incluindo as dunas móveis, contribui para amortecer as consequências previstas pelo aquecimento global, atuando de forma preventiva para minimizar os impactos.
Ao localizar os pontos mencionados pelo motorista em um mapa, o único resquício de natureza está na geometria do Parque Estadual do Cocó. Com 1.581,29 hectares (ha), ele é o quarto maior parque urbano da América Latina, atravessando Fortaleza do Jangurussu ao estuário, na Sabiaguaba.
A delimitação do Parque do Cocó termina exatamente onde começa a do Parque Natural Municipal das Dunas da Sabiaguaba, que por sua vez está dentro da Área de Proteção Ambiental (APA) da Sabiaguaba.
São duas unidades de conservação (UC) de classificações diferentes. O parque é de Proteção Integrada (PI), significando que há diversas limitações para o que pode ocorrer dentro da UC. Já a APA é de Uso Sustentável (US), permitindo alguns tipos de usos humanos do território.
O encontro das três unidades de conservação
Mesmo protegidos por diferentes instâncias governamentais — o Parque do Cocó é gerido pelo Estado, os da Sabiaguaba pelo Município — e diferentes graus de proteção, ambos formam o mesmo ecossistema.
Formando um só corredor de biodiversidade, as unidades de conservação são riquíssimas em fauna e flora. Naquele mesmo dia em que ouvimos as histórias de uma Fortaleza dunar pelas lembranças do motorista, conhecemos com tranquilidade a natureza da Sabiaguaba com o biólogo Sanjay Veiga.
Frequentador e estudioso da região, Sanjay nos apresentou aos animais e às plantas que ainda resistem na geometria envelopada da unidade de conservação. Conheça o ambiente com a galeria abaixo:
Depois de passear por mandacarus (Cereus jamacaru) habitados por anus-pretos (Crotophaga ani) e sabiás-da-praia (Mimus gilvus), adentramos a pé no Parque das Dunas da Sabiaguaba. Alguns passos à dentro, dois pares de olhos amarelos chamam nossa atenção.
Eram duas corujas-buraqueiras (Athene cunicularia) monitorando a equipe de humanos, prontas para voar e nos induzir a sair de perto do ninho — um buraco profundo na areia, parecido a uma caverna, conferindo a elas o nome comum de buraqueiras.
De longe, elas nos encaram enquanto Sanjay agacha-se para procurar egagrópilas, o nome técnico dado ao vômito das corujas. Esse material é importantíssimo para identificar a dieta delas, por ser composto de ossos, escamas e pelos que as corujas não conseguem digerir.
De primeira, encontramos uma pata de caranguejo e a mandíbula de um lagarto perfeitamente limpos. Branquinhos, sem resquícios de sujeira. Em outra egagrópila, ossos e escamas ainda recentes.
Enquanto analisávamos os restos, Sanjay levantou o rosto ao ouvir um som conhecido: o de falcões-peregrinos (Falco peregrinus), aves que após o período de reprodução migram do Ártico até a Patagônia.
Conhecidas como as aves mais rápidas do mundo — alcançam 320 km/h em queda livre —, elas chegam à Sabiaguaba prontas para caçar. Na nossa visita, um jovem e um adulto brigavam no ar por uma presa.
Conheça alguns representantes da fauna local
Além do visível, o território resguarda mais habitantes especiais, como a raposa (Cardocyon sp.), canídeo também conhecido como cachorro-do-mato, e o gato-maracajá (Leopardus emiliae), felino silvestre vulnerável de extinção no Brasil.
Em várias oportunidades, Sanjay conseguiu registrar a partir de armadilhas fotográficas a presença de um gato-maracajá na Sabiaguaba.
O geógrafo Pedro Tavares também explica que muitas espécies, durante a cheia do rio do Cocó no período de chuvas, sobem as dunas “em busca de refúgio”. Essa rota é cada vez mais difícil com a urbanização e a pavimentação da região.
Os campos dunares guardam muito mais que areia. Há uma tendência a relacionar areia com a ausência de vida e de função, quando na verdade cada grãozinho carrega uma história e o potencial de nutrir e proteger Fortaleza.
Quem passeia nas dunas da Sabiaguaba pisa no que outrora foi solo marítimo. “A amplitude da maré aqui é de mais de dois metros. Isso significa que uma grande largura da faixa de areia fica exposta durante a maré baixa, e isso permite ao vento, aos poucos, ressecar a superfície e remover os grãos”, explica o professor Daniel Rodrigues, do departamento de Geologia da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Aos saltos, a areia marítima migra para a praia, formando bancos dunares enormes. Na Sabiaguaba, o mais famoso é a Duna da Baleia, como é originalmente chamada pelas comunidades locais, conhecida como Duna do Pôr do Sol por turistas.
Dunas móveis como a da Baleia ajudam a combater a erosão costeira. Isso porque a constante migração de grãos arenosos garante um estoque de areia em várias praias de Fortaleza, não apenas na Sabiaguaba.
Carregadas pelo vento, as areias passeiam de praia em praia, protegendo a cidade da erosão marinha. Sem areia (e sem restinga e manguezais), as praias ficam vulneráveis ao avanço do mar, que tem força para engolir ruas e prédios.
Se essas dunas sumirem, o risco é de toda a Cidade. O fluxo indiscriminado de pessoas e de carros na Duna da Baleia liga o alerta vermelho: se continuar assim, ela pode sumir da mesma maneira que a Duna do Pôr do Sol de Jericoacoara, também uma unidade de conservação.
Tem mais: as dunas são grandes filtros de água doce. Na quadra chuvosa, a areia porosa recebe a água e a acumula não apenas em piscinas naturais, mas em aquíferos que abastecem toda Fortaleza.
“Seria inocente demais achar que a água se acumula e fica só onde está o campo de dunas”, resume Daniel. Prova da qualidade da reserva aquífera das dunas é o interesse econômico em torno delas: entre as dunas e o manguezal, está a envasadora de água Minalba.
No entanto, a expansão imobiliária na região pode acabar de vez com os aquíferos dunares. “As dunas eram sempre vistas como áreas para fazer grandes mansões e empreendimentos”, reflete o geógrafo Jeovah Meireles, professor da UFC e ambientalista que acompanha as tensões na Sabiaguaba há décadas.
“A tendência é que essas zonas fortemente ocupadas acarretem no bloqueio da reserva do aquífero”, diz. Isso significa perda da biodiversidade e a necessidade de furar mais fundo para encontrar água — cada vez mais salobra.
Outro serviço que as dunas da Sabiaguaba conferem à Fortaleza é a de corredor de ventos. A Capital tem um fluxo constante de ventos garantido pela anatomia dunar e pela ausência — até agora — de superprédios na região.
No contexto de aquecimento global acentuado e das consequências cotidianas da crise climática, a manutenção das dunas e da paisagem geral da Sabiaguaba vira ponto estratégico para garantir o mínimo de conforto térmico em Fortaleza.
Caso contrário, podemos dizer adeus aos ventos, e olá às bolhas de calor.
A viagem de mais de cinco mil anos pela Sabiaguaba nos dá um recado: o território é tradição, biodiversidade e segurança climática. E está ameaçado.
A especulação imobiliária e o tráfego ilegal de carros, especialmente as caminhonetes 4x4, têm degradado o ecossistema já vulnerável por grandes empreendimentos como a ponte e as CE-010 e CE-025. Tudo aliado à ausência de gestão efetiva das unidades de conservação.
Nesse processo, o habitat de várias espécies de fauna e flora é soterrado pelos pneus de carros, que adentram o parque sem nenhuma fiscalização.
A Sabiaguaba é um importante espaço de nidificação, como é o caso das corujas-buraqueiras e dos tetéus/quero-queros (Vanelus chilensis). Os carros passam esmagando os ninhos, matando no caminho incontáveis vidas.
Da mesma maneira, o avanço irrestrito destrói os sítios arqueológicos que contam a história do Ceará.
“(Por ser uma área rica em sítios arqueológicos) é que a gente tem a necessidade de ser uma área de preservação, de evitar a passagem de veículos”, pondera a professora Luci Sousa. “Porque isso está prejudicando, está destruindo o sítio. Ele está lá há milhares de anos e a ação recente do homem é que está contribuindo com a destruição.”
A Sabiaguaba é uma coletânea de embates socioambientais e econômicos, potencializados pelo abandono do poder público. Apesar de as unidades de conservação da Sabiaguaba terem Plano de Manejo, o documento nunca foi devidamente implementado.
Já o Conselho Gestor está há pelo menos oito meses sem reuniões. No segundo episódio do especial Dunas da Sabiaguaba, entenda as tensões envolta da área de preservação ambiental e tradicional.
Fontes especialistas para a construção deste episódio (ordem alfabética): Daniel Rodrigues, Igor Pedroza, Jeovah Meireles, Luci Danielli Sousa, Pedro Tavares, Sanjay Veiga e Verônica Viana.
FORTALEZA, Prefeitura. Sistema de Monitoramento Diário de Agravos. PMF/SMS/COVIS/CEVEPI *Projeção populacional com base no Censo/2010, IBGE. Disponível em: <https://simda.sms.fortaleza.ce.gov.br/simda/populacao/sexo?ano_pop=2003&modo=bairro®ional=> Acesso em 18 de janeiro de 2025.
FORTALEZA, Prefeitura. Plano de manejo do Parque Natural Municipal das Dunas de Sabiaguaba e da Área de Proteção Ambiental de Sabiaguaba. Fortaleza. Dezembro de 2010. Disponível em: <https://urbanismoemeioambiente.fortaleza.ce.gov.br/images/urbanismo-e-meio-ambiente/planejamento/plano_de_manejo_da_sabiaguaba.pdf>
DA COSTA, Ana Lucia Biondo et al. Reconstituição paleogeográfica do Quaternário no estuário do rio Santo Antônio, Ilha do Maranhão-Brasil. Geosciences= Geociências, v. 38, n. 1, p. 117-130, 2019. Disponível em: <https://www.periodicos.rc.biblioteca.unesp.br/index.php/geociencias/article/download/13058/8806/72684> Acesso em 4 de fevereiro de 2025.
IPHAN. Sistema Integrado de Conhecimento e Gestão. 2025. Disponível em <https://sicg.iphan.gov.br/sicg/pesquisarBem>