As tonalidades alaranjadas, típicas do pôr do sol, permeiam as lembranças da artista Narah Adjane. Elas evocam o período do curso de Artes Visuais no Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (IFCE), quando descia para a praia com os colegas nos momentos de lazer. "A gente curtia, conversava e se sentia muito pertencente à Cidade. É um espaço de memórias, de entender que é um local de encontro. A galera de todas as regiões consegue chegar à praia e sentir acolhimento, independente da classe social, é muito democrático", reflete.
O local virou fonte de inspiração, desejo para os então estudantes terem os próprios trabalhos projetados. Tamanha foi a surpresa de Narah ao ver, após quase uma década, uma criação estampar o cenário tão comum dos primeiros anos da juventude. Ela é uma das mulheres que compõem a Travessa do Graffiti, em frente ao restaurante Verdura. O convite para o mural surgiu a partir da 10ª edição do Festival Concreto, realizada em dezembro de 2024.
"Foi muito massa, mas muito desafiador, é uma parede muito extensa. Acredito que seja o meu mural mais extenso que esteja vivo, que ainda está de pé", relata ao lembrar da produção executada em quatro dias. Algumas referências ajudaram a alcançar o resultado: a primeira é o disco que intitula a obra, "Praiero" (2015), da primeira formação da banda Selvagens à Procura de Lei. "Ouvia muito. Para mim, estar lá, era me sentir dentro do álbum".
A pintura foi materializada com a personagem característica de Narah, uma mulher não identificada que aparece como "Praieira" em três versões diferentes. Em uma delas, ela cita a música do rapper fortalezense Emiciomar: "Pode crer, boto fé, tô interado/ Vai dá bom, tô ligado, bom demais, tu é doido/ Tá roxeda, vet, se for sal, vai ser sal/ E se for pedo? Ai dentro, ó os papo".
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A letra é "a cereja do bolo" deste primeiro painel no bairro. Vinda do Conjunto Ceará, Narah defende a possibilidade de levar artistas periféricos para um local historicamente elitizado. "Moro do outro lado da Cidade, onde geralmente faço minhas produções. Pintar na Praia de Iracema e poder referenciar artistas periféricos também é muito massa", opina. Desta forma, a muralista continua um propósito iniciado com o projeto Ruela, fundado em 2018.
O coletivo de artes visuais, conforme diz a idealizadora, busca expandir a técnica para além do trajeto artístico já consolidado entre os bairros mais tradicionais, a exemplo do Centro e Benfica. "Era onde todo mundo queria pintar, mas existe uma potência em outros lugares, inclusive no Conjunto Ceará, onde moro até hoje", ressalta. Ao longo destes sete anos, o Ruela promove eventos como o Deusa dos Muros, ação cultural destinada a mulheres que querem entrar na arte urbana.
Fortalecer o trabalho feminino num meio tão masculino engrandece o objetivo da também arte-educadora. Como pontua, ter esta escala de visibilidade em um corredor só de mulheres é conseguir que elas sejam vistas - e lidas - em dimensões ainda maiores. "Vale destacar que mulheres fazem trabalhos incríveis (na arte pública) e que é um trampo grande. Além do físico, tem muita técnica. Aquele espaço (Travessa do Graffiti) é muito simbólico para essa luta, é muito mágico. Ver mulheres como referência era algo que na minha época não rolava. Agora, é uma etapa na história do grafite que a gente consegue ver muitas ocupando a Cidade", argumenta.
Incentivo à arte
A Travessa do Graffiti, onde o trabalho de Narah está exposto, é uma das ações promovidas durante a 10ª edição do Festival Concreto, realizado entre 22 e 30 de novembro de 2024. Desde 2013, o movimento desenvolve obras em diálogo com o espaço urbano. O Concreto somou mais de 1.036 artistas, além de 249 locais de intervenção. A última edição desenvolveu um corredor cultural na Praia de Iracema com nomes do Chile, México e Portugal.
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Outras propostas similares ajudaram a colorir o bairro. Em 2019, o Festival Além da Rua propôs mudanças em 19 muros, alguns que persistem até hoje. Um deles é o do artista Nodoa (foto da pág. 2). Em 2022, as artistas Bruna Serifa e Rafa Mon subiram novos murais por meio de ação do Instituto Cultural Iracema.
A arte como meio para transformar o viver
Há caminhos que são trajetos certos para o artista e produtor cultural Douglas Vasconcelos, mais conhecido como Doug Graffiti. As paredes nas quais alguns estreiam são as principais telas dele, responsável por 80% das expressões imagéticas visíveis nos corredores da Praia de Iracema. Foram incontáveis horas acompanhado das cores dos sprays a fim de inventar texturas, se tornando personagem ativo na mudança das vistas quase acrômicas do concreto para o multicolorido.
A familiaridade com os tons foi estreitada por volta de 1995, ao participar de oficinas e cursos de pintura na comunidade do Poço da Draga, por vezes promovidas por artistas que ocupavam galpões próximos à avenida José Avelino. Ele relata que muito da arte propagada no bairro durante o período era feita por hippies e andarilhos que acomodavam as produções em estruturas. As formas ganharam outras transmutações com a chegada da cultura do grafite, oriunda do movimento hip-hop estadunidense da década de 1980, no Nordeste, por volta do início dos anos 2000.
Um dos pioneiros da área no Ceará, Doug desenvolveu trabalho na comunidade com pinturas nas ruas e ainda recorda o primeiro painel grafitado. Conquistado com "muita dificuldade" devido ao preço dos materiais, o mural foi implantado onde hoje está situada a Escola São Rafael. "O grafite cearense tinha várias carências, mas (foi) resistente. Através do projeto a gente conseguiu desenvolver um painel muito bacana para a época que foi feito. Como não tinha como trazer um veículo de mídia para registrar, ficou na memória", conta.
Por morar nas redondezas, o artista convidava colegas para criarem as próprias intervenções e somarem ao movimento. "Foi ocupando verdadeiramente o espaço de uma forma desenfreada e sem ação do poder público", dimensiona Doug. "Naquela época, discutir o que era grafite era muito mais difícil porque não existia. Houve uma resistência muito grande, porém uma resistência e persistência nossa de estar ocupando estes espaços. Hoje se torna mais viável estar na rua e as pessoas entenderem que ali tem um trabalho de arte. Vão observar, tentar entender", elucida.
Cerca de 30 anos depois, o lugar que comemora 100 anos neste mês de maio conta com vários painéis feitos de maneira independente, outros antigos que ganham traços refeitos para preservar e manter viva a cultura. Os espaços são tomados por essa linguagem de protesto que dialoga em diferentes técnicas e estilos, sem incentivo ou retorno financeiro. "Nós atendemos uma necessidade da localidade. A gente vê a necessidade de uma intervenção artística, vai e ocupa, sem uma autorização ou permissão para poder agir. Muitas vezes são terrenos abandonados, casas que não são cuidadas, com estrutura que tem várias carências. A gente transforma", alega. "Nós ocupamos e o resultado daquilo ali a sociedade engole. Tem muitos trabalhos que são diferentes, alguns trazem dúvida, satisfação, reflexão".
Neste sentido, projetos e políticas culturais públicas podem contribuir para destinar recursos aos artistas e angariar materiais. O contato com esferas, desenvolve o produtor ao mencionar a Secretaria de Turismo e Secretaria de Cultura de Fortaleza, auxilia a retirar o estigma de marginalização do grafite. A linguagem pode ser incluída em iniciativas de arte urbana para "trazer melhorias" e permitir que espaços se transformem, contanto que a arte "venha a assumir naturalmente o que sempre foi nas ruas".
"Os projetos vêm para abrilhantar, mas não trazem essa característica forte do grafite de rua. Se for algo domável, apesar de ser a mesma ação, a intenção se torna diferente. A ideia (do grafite) é fazer acontecer e manter a história viva. O projeto facilita a cultura, mas o grafite, em si, é o independente de cada artista na rua", sintetiza. As práticas, de acordo com Douglas, conseguem reconfigurar a realidade dos moradores. Além do impacto visual, as intervenções influenciam na relação e identificação com o território.
"Nós começamos a transformar o Poço e a nossa comunidade ficou mais frequentada. Consequentemente, a Praia de Iracema se contempla do trabalho. Os painéis às vezes trazem uma mensagem e impactam diretamente aquele espaço. Quando você transforma um lugar que é muito sujo, pouco frequentado, dá aquela repaginada, traz vida através de cores e palavras", argumenta. O olhar positivo sob a riqueza cultural da Praia de Iracema esbarra na vontade de expansão das atividades artísticas sendo expandidas. "É muito frequente, o que é bom, mas Fortaleza inteira carece disso".
Douglas é o idealizador do projeto Beco in Cores, promovido com apoio da Secretaria de Cultura do Ceará (Secult-CE). Quatro edições já foram realizadas, sendo três no Poço da Draga e a última, finalizada em abril, na comunidade do Titanzinho, localizada no Serviluz. A versão mais recente, intitulada Serviluz em Cores, carregou o conceito de "acupuntura urbana" ao agir em pontos estratégicos para ocasionar mudanças simbólicas e afetivas. A proposta é modificar as paisagens urbanas por meio de pinturas.
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"São locais que são mal vistos dentro da comunidade. A ideia é mudar esse esteriótipo de lugar perigoso com arte e cultura. A gente foi transformando os locais mais obscuros
das comunidades", estabelece Doug.
"O importante é o impacto"
A rota para compreender o "artivismo" por trás das expressões discutidas paira em um sítio na Lagoa Redonda, lar do casal de artistas plásticos Hélio Rôla e Efímia Meimaridou. Sentados no ateliê do também médico e professor emérito da Universidade Federal do Ceará (UFC), eles contrastam a adquirida tranquilidade da casa arborizada com os relatos de quando moravam na Praia de Iracema. Os momentos remotos se tornam mais palpáveis quando Hélio abre uma das edições do livro "Desplugue Iracema" (2002), de autoria própria, e lê em voz altas os seguintes trechos: "Alta noite/ O bar ganha o mundo/ Tropicaos, garrafas aos cacos/ Som além da conta/ Copos de plásticos, plástico aos montes/ Bêbados mijando na rua/ Pei, pei, pei/ De repente, alguém embaleado no pescoço, cambaleia e cai de papo para o ar".
O escrito descreve o contexto que motivou os primeiros movimentos muralistas na capital cearense, explicado em matéria publicada pelo O POVO em 30 de maio de 1992. A reportagem do jornalista Ricardo Jorge mencionava um "amontoado de lixo" no cruzamento das ruas dos Tremembés e dos Potiguaras, perto de onde Hélio e Efímia residiam com os filhos. Para deslocar atenção para o problema, eles caiaram um muro e pintaram: "Não coloque lixo nesse local". Efí, como também é conhecida, recorda que a ação resultou de um incômodo e intencionava causar medidas positivas. Outras pinturas surgiram depois com a participação de Eduardo Eloy, Alano de Freitas, Maurício Cals e Kazane, que vieram a integrar o Grupo Aranha.
O coletivo muralista foi uma resposta orgânica aos problemas gerados pela realidade da região a partir da década de 1970. Outra publicação do O POVO, divulgada em janeiro de 1989, noticiava o protesto feito em mural que dizia "Praia de Iracema, sim. Poluição sonora, não", ligado ao projeto SOS Iracema. A reivindicação fazia referência à poluição sonora e de solo instituídas, consequências da vida noturna, então modificada pela chegada do Pirata Bar, de Júlio Trindade, em 1985. A sequencial concentração de estabelecimentos similares, como o Cais Bar, alterou a dinâmica da vizinhança e a concentração trouxe impactos como altos barulhos até a madrugada, assim como aumento de lixo nas ruas. "Fazíamos pintura, primeiro para conscientizar. De repente, caiu a ideia: arte pública. Vamos botar no muro para as pessoas que passam", frisa Efímia ao salientar o envolvimento dos moradores.
"Não foi iniciativa nossa de dizer: 'Vamos fazer um grupo e começar'", acrescenta Hélio. A disposição natural dos integrantes marcaram os trabalhos que reivindicavam por uma convivência mais pacífica entre as famílias e a chamada "nova boemia" da Praia de Iracema, impulsionada como propaganda turística e reforçada pelo apelo social e cultural dos frequentadores. "A ideologia mais forte era a boemia, tinham pessoas importantes da Cidade. E viam isso como uma tal de requalificação da Praia de Iracema por conta do turismo, que começou a ter um destaque naquela época", remonta o professor.
As movimentações também eram disparadas por Hélio com xilogravuras e textos enviados por Correio, enquanto as ideias em larga escala eram produzidas em casa e no ateliê, fixado à época em um dos armazéns próximo à rua José Avelino, no limiar com o Centro. Estes galpões depois foram ocupados por amigos do casal, como o artista Zé Tarcísio, que posteriormente ligaram a região com as oficinas de outros nomes, a exemplo de Leonilson (1957 - 1993). "Os bairros têm seus movimentos de convívio. E, lá na Praia de Iracema, se saiu com as artes porque esse artista morou lá, teve seu ateliê e outros vieram e ocuparam aquelas partes", costura a também pesquisadora.
Já os painéis continuaram se expandido, assim como os assuntos tratados por eles. Chegaram a parques, universidades e restaurantes, sempre com o objetivo de manter a unidade de cada participante. Para além dos protestos contra a poluição sonora, ficaram estampadas denúncias em relação à saúde pública e homenagens a figuras cearenses.
Ambos consideram que o período gerou experiências ricas para crescer e "aprender a lutar por um ideal". Sem nenhuma "virtuosidade", como delimitam, viram o Aranha escalar como o primeiro grupo de artistas a levantar barreira "contra a arbitrariedade comercial" na rua, um veículo de conscientização. "A primeira manifestação de um coletivo contra um despautério sócio-ambiental. É uma situação complexa, mas não é única. A sensação de que a vida das pessoas era algo descartável me pegou fortemente. A ponto de chegar um momento e falar: 'por que a gente não vai embora daqui?'. E saímos", continua Efímia.
A relação com Iracema segue em telas do acervo pessoal, como a coleção "Iracema By Night". Os quadros reproduzem cores escuras e imagens agressivas, retrato dos pesadelos perante as violências da realidade vivida. Os dois continuam produzindo - Hélio tem parceria com o artista Wilson Neto - e advocando pelo meio ambiente. Sobre a repercussão da arte política e engajada nas ruas, reforçam que o importante é o impacto. "Influenciamos e somos influenciados. Compreender isso traz conforto, estou mostrando que, no meu entender, estou fazendo algo certo, militando a favor de uma causa", arremata Efímia. "Fazer algum artivismo tendo sua arte como base, a imagem funciona como um centro sedutor", elabora Hélio.