Certa letra do compositor Luiz Assunção (1902 - 1987) lamenta o adeus à Praia de Iracema. Os versos saúdam as memórias de um tempo longínquo de casais apaixonados sob a luz do luar, atrapalhados por um mar enciumado que tudo devasta: "Praia dos Amores/ Que o mar carregou". O causo revestido de romance dita a história de um bairro pequeno de extensão - o terceiro menor de Fortaleza -, mas que carrega consigo constantes adaptações.
Diferente das outras 120 zonas da capital cearense, é uma das regiões cuja cronologia está registrada, inclusive por meio de expressões artísticas: na música, na literatura, na arte visual - sempre há o que falar. Originária Praia dos Peixes, uma vila de pescadores, ganhou o título de Praia dos Amores em meados do século XX.
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A designação que perdura até hoje surge em 1925, inspirada na personagem do escritor José de Alencar (1829 - 1877) e definida após votação popular, um marco que completa 100 anos neste mês de maio. Duas décadas depois, passa a ser o local mais importante da Cidade até ser vítima de alteração no movimento das correntes marinhas. Começou, então, o que seria conhecido como o início da decadência da região, uma régua volátil que persiste.
"Quando o mar invade a praia, o bairro já foi desvalorizado. Foi rápido o processo de ser ocupado, da estética de um patrimônio construído ali. O que ficou foi o Estoril", desenvolve Roselane Bezerra, doutora em Sociologia pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e autora do livro "O bairro Praia de Iracema entre o 'adeus' e a 'boemia'" (2009).
As décadas seguintes são marcadas pela boemia de bares como Cais e Pirata, a pavimentação de uma nova imagem. "A Praia de Iracema abriga diferentes fases, entre o apogeu e a decadência. Nos anos 1960, o Estoril vai estar vivendo o regime de opressão e começa a ser frequentado por públicos de intelectuais, as discussões políticas existiam, aquela relação artística começa a se consolidar. (Era) mais boêmio do que artístico, frequentada por muitos músicos. Esse público mais diferenciado, durante o regime de opressão, tinha ali como um lugar de liberdade".
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Segundo a socióloga, a relevância do bairro é construída por meio desse "viés simbólico" ligado a todos os fomentadores e mobilizações de conexão com expressões artísticas da capital cearense. "Se você olhar o território de perto, com uma lupa, vamos ver muitos problemas ao longo dos anos. Do descaso de poder público, são muitos altos e baixos. Mas, simbolicamente, ela tem esse glamour. Essa imagem da Praia de Iracema vai além da própria realidade de decadência", flexiona.
Ednardo canta as variáveis na canção "Longarinas", de 1976. "Uma a uma, coisas vão sumindo/ Uma a uma, se desmilinguindo/ Só eu a ponte velha teimam resistindo". Nas artes visuais, Roselane sublinha a presença do Grupo Aranha. De lá para cá, o bairro ganhou o Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), equipamento cultural mais reconhecido em Fortaleza conforme a pesquisa Cultura nas Capitais, divulgada no início deste mês. É constantemente apontado como um espaço de contradições, variando entre ciclos de abandono e eras de vivacidade. É, como classifica Roselane, ambígua.
"O que faz com que o apelo artístico permaneça (na Praia de Iracema) é essa representação do que foi construído ao longo de todo o século XX. A gente tem uma imagem consolidada que é muito cara para Fortaleza, podemos dizer até querida", conecta a doutora da Sociologia. Depois de mergulhar em recortes musicais do local, o Vida&Arte delineia aqueles que continuam remodelando o retrato de um dos principais cartões fortalezenses.
Uma figura remete imediatamente ao Cais Bar, findado em 2003. O painel de caricaturas é a primeira imagem conectada ao estabelecimento. A criação do artista visual e caricaturista Valber Benevides, chargista do O POVO durante a década de 1990, estampava artistas como Michael Jackson, Gal Costa, Milton Nascimento e Fagner.
"Até então não tinha sido feito com caricaturas em locais mais livres", explica. Quem passava no calçadão, podia ver o muro que contemplava dois painéis: o do Cais Bar, fixo; o do outro lado, porém, era utilizado para murais mais efêmeros, para ocasiões singulares como a Copa do Mundo, que podia ser modificado mais vezes.
"(O mural) Foi uma decisão do dono (do Cais Bar). Um dia, conversando com Joaquim Ernesto, ele quis homenagear os músicos brasileiros e cearenses. Como a quantidade não importava muito, decidimos eleger um cearense, o Fagner, que seria o interlocutor de acontecimentos. Teve até um momento que fiz uma crítica, quando a música 'Borbulhas de Amor' estorou, a gente fez ele de garçom, segurando uma Coca Cola, servindo ao sistema", detalha.
O artista conta que também realizava alterações pontuais. Brincando, diz que, às vezes, alguns artistas "saíam para tomar banho de mar" para que outros pudessem ser colocados no lugar. "Era a surpresa dos frequentadores do bar. Quando chegava a noite, quando a conversa esvaziava, eles começavam a olhar para o painel e perceber as mudanças", complementa. Atualmente, Valber continua trabalhando com caricaturas e faz parte do programa Leiruaite, apresentado pelo cantor Falcão. "Tinha gente que passava a conhecer o cantor e compositor através da caricatura. Teve essa função de elucidar informação cultural", ressalta.
Não são muitos os que transitam pela Praia de Iracema durante o meio do período diurno. Passado o frenesi dos esportistas na manhã e antes do esparecer no entardecer, poderia até ser definido como deserto. Num dia útil qualquer nas horas prévias ao almoço, salvo alguns desavisados em busca de estabelecimentos que demorariam a abrir ou sortudos que conseguem um banho de mar na semana, as narrativas que cercam o imaginário local vinham somente do colorido do concreto.
Resistentes entre alegorias e desenganos, os muros guardam mensagens decifradas em tinta, spray, colagem. Grafites, pinturas, lambes e pixos contam a história do território centenário por intermédio da comunicação mais direta possível: a que acontece na rua e a céu aberto. Essas manifestações estão inseridas no amplo guarda-chuva da arte urbana, que também abrange a performance.
Em Fortaleza, a influência política, econômica e social tornaram a Praia de Iracema um dos pontos-chave para o campo. As intervenções redesenham as cenas e levam artistas, que comumente se distanciam das normas das galerias de arte, a expressaram as próprias visões. Abordam as questões lúdicas, as temáticas cotidianas e, por que não, as problemáticas que circundam o bairro, a exemplo das indas e vindas entre propostas de requalificação, índices de violência, promessas de revitalização e desdobramentos da especulação imobiliária, para citar algumas.
Em artigo publicado no O POVO em novembro de 2023, a professora e antropóloga Glória Diógenes confrontava o olhar crítico acerca destas representações e modelava a metrópole que continuaria a se desenhar. Ao citar realizadores como Acidum Project, duo de Robézio Marques e Terezadequinta, e Narcélio Grud, a co-fundadora da Rede Luso-brasileira de Pesquisadores em Artes e Intervenção Urbana diz: "As inscrições de rua pulsam, na sua gênese, na contramão das práticas instituídas".
É nesse viés de subversão que aproximam o olhar. De quantos modos a região retrata a figura de Iracema? A personagem colore um dos muros da rua Tremembé em azul, verde e amarelo. O desenho, criado por Gabriel Mahatma e Lorinha Alves, é uma das paradas do percurso. Quanto mais perto do oceano, mais detalhes aparecem.
Na rua dos Tabajaras, o artista Márcio Pontes mostra Amelinha, Fagner, Ednardo e Belchior. Poucos metros depois, Spote Ink imprime nas paredes os pássaros e os jovens que se divertem na Ponte Velha, agora em paralelo com La Femme Bateau, escultura de Sérvulo Esmeraldo (1929 - 2017). Ela segue no fim da Ponte dos Ingleses, de onde é possível ver um trabalho de Nodoa revestir a face de um prédio.
É impossível sair ileso desta fusão. Estudo publicado em 2024 na plataforma Fusion indica que a presença de arte urbana influencia em pilares do bem-estar coletivo: processos afetivos (regulação de emoções); processos cognitivos (estimulação sensorial e aprendizado); processo social (experiências compartilhadas); transformação individual (reflexão). A pesquisa converte em termos científicos as reações quando alguém se depara com as demonstrações. Talvez o motivo pelo qual são compartilhadas nas redes sociais e guardadas internamente. Um efeito explicado da forma mais simples na intervenção, até então de autoria anônima, atualmente colada em distintos abrigos da praia homenageada: "Amanhã tu é outro".