O medo permeia os pensamentos dos profissionais da educação que retornaram às escolas com a liberação das aulas presenciais de turmas até o nono ano do ensino fundamental. A necessidade de uma fonte de renda, sobretudo para quem é provedor de família, faz com que muitos aceitem o risco, ainda que sintam insegurança. A vacinação dos profissionais de educação tem ocorrido nas últimas semanas, o que acelera a discussão sobre o retorno das demais séries e também da rede pública, ainda sem aulas nas escolas.
Educadores compartilharam de forma anônima suas experiências e seus temores. Por temor de represálias das instituições em que trabalham, pedem para não ser identificados. Para eles, as recorrentes notícias de mortes de colegas são amplificadoras do medo.
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"É uma insegurança muito grande, os protocolos não são reais. Vemos com muito receio, porque não é só a gente, são as famílias que dependem de nós. Com a nossa morte, não é só a morte no sentido da pessoa, mas também a morte no sentido do provedor", relata um dos profissionais de educação que possui duas décadas de experiência.
Até o último domingo, dia 6, 1.442 profissionais da educação, da rede pública e privada, foram acometidos pela Covid-19. O Data.doc - Núcleo de Dados do O POVO - traçou um perfil desses trabalhadores, e identificou que — a partir de uma amostra de 535 casos, que representa 37% do total em profissionais da educação.
Os professores da educação básica (ensino fundamental e médio) correspondem a 90% dos casos confirmados da doença na categoria. O levantamento foi realizado na base do IntegraSus - plataforma da Secretaria da Saúde do Estado do Ceará (Sesa) que reúne informações sobre a Covid-19.
Além de protocolos frágeis, os dados não representam a realidade. Devido ao mau preenchimento dos campos e à não obrigatoriedade do registro da Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego (CBO-MTE), não é possível ter o número exato de professores acometidos pela doença, e muito menos mapear as escolas de origem. Os registros referentes a casos da doença, por unidade de educação, são restritos à doença em alunos da rede, pelo menos é este o dado disponibilizado pelo Estado em suas plataformas.
Dos 184 municípios, foram encontrados registros em 79 cidades. Com relação aos óbitos de professores e demais profissionais da educação, também só foi possível ter um recorte da situação. A reportagem identificou 12 mortes, mas apenas em três casos foi possível localizar a cidade de origem das vítimas, sendo duas de Fortaleza e uma da cidade de Capistrano. As vítimas tinham de 50 a 69 anos, e trabalhavam na educação superior e na básica.
O cenário exposto no levantamento feito pelo O POVO ainda é desconhecido pelos educadores. Mas a insatisfação pela ausência desses dados faz parte da rotina pandêmica, que abarca também a indignação com o tratamento que a categoria recebe diariamente por parte das instituições de ensino. Para o educador que relatou sua angústia no início da reportagem, as instituições demonstram preocupação apenas com os alunos.
"Como professores de escola privada, percebemos que não existe nenhuma preocupação com a gente em relação ao psicológico ou à saúde como um todo. Na verdade, as escolas só se preocupam com o cliente, que é o aluno", desabafa.
Além do agravante financeiro e da preocupação com as medidas sanitárias, lidar com a morte de colegas durante o período da pandemia também não tem sido fácil. Dentre os mais de 21 mil mortos pela Covid-19 no Estado, estão também professores.
Embora não se possa ter um retrato real de como a doença vem atingindo a categoria, o levantamento feito pela reportagem mostra que a Covid-19 nos profissionais de educação é mais prevalente na população negra e em mulheres. Dos 535 casos identificados pelo Data.doc, 64% são pretos ou pardos, ou seja, 343 registros. Em segundo, vêm as raças branca (24%), amarela (3%) e indígena (1%). Em 46 casos (9%) não foi possível identificar a raça, pois não havia registro.
Os números são desconhecidos até mesmo pelo sindicato patronal, que pressiona por uma volta ao modelo presencial. Questionado se há algum levantamento que contabilize o número de profissionais de educação que já foram contaminados ou morreram em decorrência da Covid-19, ou se existe preocupação com um possível aumento de casos, o Sindicato de Educação da Livre Iniciativa do Ceará (Sinepe-CE) informou não possuir estatísticas de todas as escolas. Segundo o Sindicato, a Secretaria Municipal de Saúde de Fortaleza (SMS) é quem recebe os dados de casos suspeitos e confirmados de todas as escolas.
Para o doutorando em Administração Pública na Fundação Getúlio Vargas, especialista em transparência e integridade, Fabiano Angélico, tomadas de decisões sem a análise de dados concretos são prejudiciais.
"Hoje em dia tem muita informação disponível que pode ser utilizada, mas não é assim que se toma uma decisão, é preciso um conjunto de evidências. Não é com um único estudo. Se você faz um estudo na França dizendo que cloroquina funciona lá, não pode transportar isso para o Brasil, existem cenários diferentes. Você precisa de uma base e, principalmente, de dados locais. Informações sobre a sua cidade, sobre o seu bairro, de preferência, para tomar uma decisão mais acertada, por isso essa transparência é crucial", diz.
"No Brasil, estamos pecando muito nisso, nesse enfrentamento à Covid-19 em diversas áreas ou setores que precisam tomar decisões, muitas vezes estão fazendo isso baseados até mesmo em questões ideológicas."
Fabiano destaca que o Brasil tem sido falho no quesito transparência durante a pandemia, o que dificulta a compreensão da legitimidade de certas decisões durante o período, como a escolha de políticas públicas eficazes de combate ao vírus.
"Para um gestor tomar uma decisão, e para que aquela posição tenha legitimidade diante da opinião pública, é que se precisam de dados, evidências e informação. No Brasil, estamos pecando muito nisso, nesse enfrentamento à Covid-19 em diversas áreas ou setores que precisam tomar decisões, muitas vezes estão fazendo isso baseados em um achismo, ou até mesmo em questões ideológicas", destaca.
A SMS esclarece que os números disponibilizados para consulta pública são veiculados pelo Integrasus. Entretanto, a plataforma, no que tange ao acompanhamento da doença no âmbito educacional, prioriza o monitoramento de casos da rede pública, principalmente os de estudantes. Informações referentes aos profissionais da educação se resumem a óbitos e casos confirmados pela doença.
O levantamento do O POVO, a partir da exploração da API do IntegraSUS, conseguiu revelar também o sexo destas pessoas. As mulheres correspondem a 72% (383) dos casos, principalmente em idade produtiva, dos 30 aos 49 anos. Os homens totalizam 152 registros, com predominância correspondente à mesma faixa etária do gênero feminino. Por um erro de preenchimento da base disponibilizada, excluímos dois casos, ambos superavam os 150 anos.
A Secretaria de Saúde de Fortaleza explica que tem acesso apenas aos casos suspeitos ou confirmados, essas informações são utilizadas para monitoramento. De acordo com a SMS, não há uma lista de quais escolas tiveram registros da doença.
Em nota enviada no dia 18 de maio, a Secretaria da Saúde do Ceará (Sesa) informou que 46 escolas de Fortaleza notificaram casos suspeitos ou confirmados de Covid-19 em profissionais da instituição ou em alunos, neste ano de 2021. Dessas, 39 confirmaram casos, cinco descartaram e duas escolas aguardavam o resultado do exame. A Sesa destacou ainda que, havendo casos identificados na escola, a instituição deve entrar em contato com a Vigilância em Saúde do Município imediatamente.
Um outro educador que trabalha em escolas privadas, e já leciona há mais de 20 anos, relata que, além da sensação de insegurança, existe um temor pela perda do emprego, o que impede, muitas vezes, que a categoria consiga lutar pelo que almeja.
"Existe o medo da perda do emprego, querendo ou não, hoje, temos uma sociedade que julga o professor como se o fato de estar online significa não estar trabalhando, e esse assédio moral acontece de várias formas".
O professor considera que o fato de sair de casa para ir ao colégio já o expõe ao risco de contaminação. O educador ainda lamenta a falta de representatividade por parte do sindicato, o que, segundo ele, dificulta uma organização da categoria.
"Existe uma grande hipocrisia por parte das escolas em dizer que a segurança existe, inclusive para os pais, porque não existe. "
Com experiências lecionando em outras cidades e, até mesmo, em outro estado, o professor relata que, por mais que todos os cuidados sejam tomados, é impossível garantir 100% da segurança sanitária no ambiente escolar.
"Existe uma grande hipocrisia por parte das escolas em dizer que a segurança existe, inclusive para os pais, porque não existe. É um aluno que talvez pegue essa doença sem sintomas, e passe para quem está em casa, então os riscos continuam sendo os mesmos. Não tem como se sentir seguro, porque numa maçaneta que alguém pegou ou num espirro que alguém deu, pode acontecer o contágio", relata.
Com mais de 25 anos em salas de aula, outro educador, que também prefere não se identificar, questiona os protocolos adotados pelas instituições de ensino.
"Pra mim, essa retomada quase beira o suicídio, é revoltante. Só existe uma forma segura de retorno, que é a aplicação de vacina, não tem outra forma. Não tem como a escola abrir a boca e dizer que segue todos os protocolos de segurança, porque não segue", desabafa.
"Que protocolos? O álcool em gel? E a higienização das salas de aula? Porque todo mundo se preocupa, e eles falam na questão do aluno, e do professor? E o rapaz que varre o chão?""
O professor destaca ainda que, muitas vezes, os cuidados propagados pelos colégios não se estendem a todos que fazem parte do meio educacional, o que tende a tornar o ambiente inseguro.
"A quantidade de mortes é inacreditável. Quando a escola abre a boca e diz 'nós estamos seguindo todos os protocolos de segurança', que protocolos? O álcool em gel? E a higienização das salas de aula? Porque todo mundo se preocupa, e eles falam na questão do aluno, e do professor? E o rapaz que varre o chão?", indaga.
Os profissionais de educação ouvidos defendem de maneira unânime que o único caminho de retomada que apresenta um nível de segurança aceitável é a vacinação em massa daqueles que fazem parte do meio educacional.
A preocupação financeira se junta à da saúde. "Agora saiu um comercial das escolas particulares, no qual elas dizem que faz 400 dias que os adolescentes não vão às escolas, mas faz mais de 800 que não temos aumento de salário, faz mais de 700 dias que estamos trabalhando", desabafa um dos professores ouvidos.
Diante da situação adversa, o professor relata não saber a quem recorrer para que a categoria passe a ter atenção em suas reivindicações, que vão além dos cuidados sanitários.
"O colega da escola pública pode fazer o movimento e não ser punido. Na escola particular são críticas veladas. O sindicato dos professores não nos representa. Eles assinaram um dissídio com zero por cento de aumento. Tudo subiu, estamos vivendo em uma situação precária. Ganhando um salário de 2019 em 2021, não falta só cuidado com a saúde, mas também com a vida financeira do trabalhador."
João Estevam, um dos diretores do Sindicato dos Professores da Rede Particular do Estado do Ceará (Sinpro-CE) diz compreender a insatisfação dos professores, mas explica que a pandemia tornou o cenário mais difícil.
"O último ano foi de difícil negociação, muitas categorias tiveram reajuste zero. Tivemos pressa de fechar a convenção para garantir as cláusulas sociais. Neste ano, estamos postulando inflação acumulada entre março de 2019 e fevereiro de 2020 (3,31%), bem como a inflação acumulada no período de março de 2020 a fevereiro de 2021 (6,21%)", explica o diretor, ao relatar que as negociações continuam, o que não diminui a insatisfação de parte da categoria.
Sobre a retomada das aulas presenciais, o Sinpro-CE afirma que sempre adotou cautela no assunto, por considerar que a vida é o bem mais importante nessa situação. O diretor afirmou, ainda, que entende a segurança dos protocolos utilizados, mas que nada substitui a vacinação dos educadores.
O Sinepe-CE também foi procurado, mas não respondeu às críticas feitas pelos professores até o fechamento da reportagem.
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Cerca de 25% dos brasileiros estariam protegidos com o ensino a distância, afirma pesquisador
Pesquisas de como coronavírus atinge a comunidade escolar ainda são tímidas. Uma das mais recentes investigou a doença no estado de São Paulo. O professor doutor Fernando Cássio, do Centro de Ciências Naturais e Humanas (CCNH) da Universidade Federal do ABC, participou do estudo realizado por pesquisadores da Rede Escola Pública e Universidade (Repu), que aponta uma incidência maior de Covid-19 entre professores em São Paulo.
O levantamento mostrou que a taxa de incidência de Covid-19 entre professores foi quase três vezes maior do que na população com idade entre 25 e 59 anos no Estado. A escolha da faixa etária da pesquisa é justificada pelo fato de educadores com mais de 60 anos terem mantido o trabalho à distância.
Os dados utilizados para análise foram coletados em 299 escolas estaduais, levantados por professores relacionados ao Sindicato dos Docentes da Rede Paulista (Apeoesp). As informações tiveram como base casos confirmados entre os dias 7 de fevereiro e 6 de março de 2021.
"É evidente que é muito mais arriscado você trabalhar presencialmente na escola, do que fazer isolamento domiciliar. A pessoa está saindo de casa para a escola, se a contaminação acontece no ônibus, na entrada ou em um metrô, não importa. Esses problemas precisam ser discutidos com a sociedade. O Brasil tem 47,3 milhões de estudantes na educação básica, tem 2,2 milhões de professores. Se a gente somar a cadeia produtiva da escola, estamos falando de 25% a 30% da população brasileira que estaria protegida com o ensino à distância", relata Fernando Cássio.
O professor acredita que o fato da abertura não deve ser completamente desconsiderado, mas que o assunto precisa de um debate franco e informado para que as melhores decisões sejam tomadas. (Com Gabriel Borges)
Metodologia e dados utilizados
O Data.doc utilizou dados do IntegraSUS, Censo Escolar 2020 e IBGE. Foram analisados dados agregados para todo o Estado, fazendo o recorte pela Classificação Brasileira de Ocupações do Ministério do Trabalho e Emprego. Do Censo Escolar, utilizamos as populações de professores em cada nível de ensino, e do IBGE, o extrato por raça. Nossos dados são auditáveis. Como forma de garantir a integridade e confiabilidade da nossa análise, disponibilizamos aqui as bases e documentos utilizados na produção deste material.