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Chacina da Grande Messejana: após seis anos, ninguém foi julgado ou está preso
Reportagem Especial

Chacina da Grande Messejana: após seis anos, ninguém foi julgado ou está preso

Nem processo criminal, nem ações cíveis foram julgados até o momento. Mães lutam por Justiça e reparação do Estado

Chacina da Grande Messejana: após seis anos, ninguém foi julgado ou está preso

Nem processo criminal, nem ações cíveis foram julgados até o momento. Mães lutam por Justiça e reparação do Estado
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Chega aos seis anos o martírio, mas também a luta dos familiares das vítimas da Chacina da Grande Messejana por justiça. Na virada do dia 11 para o dia 12 de novembro de 2015, 11 pessoas foram assassinadas aleatoriamente em quatro bairros daquela região. Outras sete pessoas ficaram feridas. Até o momento, nenhum dos 34 policiais militares pronunciados foram submetidos a julgamento, que segue sem ter previsão para ocorrer. Após ficarem presos durante a fase de instrução, os acusados foram soltos e aguardam o júri popular em liberdade.

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A última grande movimentação do processo ocorreu em 2019, quando a 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJCE) manteve decisão de primeiro grau de levar os PMs a julgamento. Em nota, o Tribunal informou que diversos recursos foram impetrados após essa decisão. Alguns desses recursos estão em cortes superiores como o Superior Tribunal de Justiça (STJ).

“Após a apreciação de todos os recursos e observadas as possíveis decisões oriundas deles, o Colegiado de magistrados que atua no processo deverá marcar as datas de julgamento para os que tiverem a decisão de pronúncia mantida”. O TJCE ainda ressaltou que todos os trâmites realizados durante o andamento dos processos estão dentro dos prazos estipulados por lei.

Manifestação pelas vítimas da chacina da Grande Messejana(Foto: Tatiana Fortes, em 18/11/2015)
Foto: Tatiana Fortes, em 18/11/2015 Manifestação pelas vítimas da chacina da Grande Messejana

A espera tem prolongado a angústia das mães das vítimas. “A minha cobrança maior é por Justiça”, diz Maria de Jesus da Silva, mãe de Renayson Girão da Silva, morto aos 17 anos. “Já vamos completar seis anos e não vi agora nenhum resultado. Eu queria mesmo era que o Estado reconhecesse esse crime. E eu quero que o mundo conheça quem eram esses meninos, os sonhos deles que foram interrompidos. O que o Estado está fazendo?”, questiona Maria.

Para marcar a data e reforçar as cobranças por Justiça, o movimento de Mães e Familiares do Curió, com apoio de diversos movimentos sociais e ONGs, manteve, desde o dia 1º de novembro, série de atividades em alusão à chacina. Foram feitas lives, podcast e sarau. Também foi realizada audiência pública na Semana Cada Vida Importa, instituída por lei em 2017, justamente, por causa da chacina.

Durante a audiência, ocorrida na segunda-feira, 8, as mães das vítimas voltaram a cobrar do poder público reparação pela matança. Silvia Helena — tia de Jardel Lima dos Santos, de 17 anos, morto na Chacina, e mãe de dois sobreviventes — cobrou uma solução para o caso, até para que “não venha a se repetir novamente, como tem ocorrido diariamente”. “Estamos cansadas do pouco caso do Governo do Estado. Não é só reparação pelo pedido de desculpas. São ações que também nunca ocorreram”, desabafou.

Além da esfera criminal, o caso também corre na seara cível. Ação civil pública (ACP) impetrada pela Defensoria Pública requer que o Estado, entre outros, realize ato público de reconhecimento da responsabilidade, construa um memorial e publique relatório anual com dados sobre mortes ocasionadas pela Polícia.

Em caráter liminar, o Estado foi obrigado, em 2019, a oferecer assistência psicológica e psiquiátrica às vítimas e familiares, mas a determinação não foi cumprida porque o Hospital de Saúde Mental de Messejana não dispõe de atendimento ambulatorial, conforme informado na ação. É requerido então que o Estado custeie o atendimento em rede particular, o que ainda aguarda decisão. O mérito da ação também segue por ser julgado.

Também ações indenizatórias estão em andamento. Em, pelo menos, um caso, o Estado foi condenado, em decisão de 3 de novembro último, a pagar R$ 40 mil por danos morais e pensão alimentícia para a filha da vítima até que ela complete 25 anos. Outras famílias, porém, aguardam decisão.

Edna Carla Souza Cavalcante,46, militante e mãe do Álef de Souza Cavalcante, uma das vítimas morta na chacina do Curió(Foto:  Tatiana Fortes)
Foto: Tatiana Fortes Edna Carla Souza Cavalcante,46, militante e mãe do Álef de Souza Cavalcante, uma das vítimas morta na chacina do Curió

Edna Carla Cavalcante, mãe de Álef Souza Cavalcante, de 17 anos, voltou a lembrar que as mortes da Chacina do Curió só ocorreram por causa da atuação discriminatória da Polícia em zonas periféricas. “Existem duas polícias dentro do Ceará. A polícia do extermínio, que está dentro da favela, dentro da periferia, dentro dos becos, e existe a polícia que trabalha para os magnatas”, afirmou. Ela, porém, ressaltou que não vai desistir de lutar. “Que mãe desistiria de seu filho?”.

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As vítimas: Álef Souza Cavalcante, de 17 anos; Antônio Alisson Inácio Cardoso, de 16 anos; Francisco Elenildo Pereira Chagas, de 41 anos; Jandson Alexandre de Souza, de 19 anos; Jardel Lima dos Santos, de 17 anos; José Gilvan Pinto Barbosa, de 41 anos; Marcelo da Silva Mendes, de 17 anos; Patrício João Pinho Leite, de 16 anos; Pedro Alcântara Barroso do Nascimento Filho, de 18 anos; Renayson Girão da Silva, de 17 anos; e Valmir Ferreira da Conceição, de 37 anos. 

 

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Outros casos de violência policial aguardam resposta

 

Casos de grande repercussão nos últimos anos de violência policial letal no Ceará têm tido até aqui uma apuração lenta. Além da Chacina da Grande Messejana, que aguarda julgamento até hoje, ainda aguardam resposta casos como o de Juan Ferreira dos Santos, 14 anos, morto durante ação policial em uma festa realizada no Morro Santa Terezinha em 2019; Mizael Fernandes da Silva Lima, 13 anos, morto em Chorozinho, enquanto dormia, também por policiais em 2020; Kauã Viana Sales, 12 anos, morto em 2020 após o carro onde estava ser atingido por disparos de policiais no momento em que o pai tentava fugir de um cerco policial; e o duplo homicídio de Francisco Wesley Vieira da Silva e David Lima da Silva, em 2020, em Juazeiro do Norte, em que há indícios de execução contra os dois suspeitos de participar do latrocínio do subtenente da PM Francisco Augusto da Silva.

Todos esses casos seguem em fase de inquérito. Também aguarda julgamento a “Tragédia de Milagres”, tentativa de assalto a banco que resultou na morte de 14 pessoas, incluindo seis reféns e a execução de dois assaltantes já rendidos.

A espera por Justiça também paira sobre outras famílias que denunciaram a violência policial letal. No primeiro semestre deste ano, em, pelo menos, três casos de mortes por intervenção policial, as famílias questionam a versão policial de legítima defesa. Todos eles prosseguem em fase de inquérito, porém.

Marcas de bala em casa no Curió(Foto: FABIO LIMA/O POVO)
Foto: FABIO LIMA/O POVO Marcas de bala em casa no Curió

No caso de Reginaldo Dias de Souza Rodrigues, morto em 29 de janeiro, no bairro Bela Vista, a versão da família é de que o homem foi morto após não ouvir a voz de comando dos policiais, já que tinha deficiência auditiva. Os policiais narram, porém, que ele foi morto após apontar uma arma contra eles.

Já na morte de Francisco Rudson Denesson Paulino dos Santos, de 15 anos, a família sustenta que o adolescente foi morto por policiais quando participava de um aniversário. O caso ocorreu em fevereiro último no bairro Barroso. Os PMs teriam mandado todos os presentes correrem para casa. Rudson obedeceu, mas teria sido perseguido pelos agentes e foi morto quando tentava esconder-se em uma caixa d'água. Os policiais afirmaram que foram recebidos à bala no local e, no tiroteio que se seguiu, encontraram o corpo do adolescente. Na ocasião, um revólver calibre 32 e munições foram apreendidos.

E, por fim, há o caso de Wesley de Sousa Silva, de 17 anos, ocorrido também em fevereiro, no bairro Itaperi. Conforme versão de testemunhas, Wesley trafegava com um amigo em uma moto, durante uma “guerra de ovo” no Carnaval. Os dois teriam tentado fugir de uma abordagem policial por estarem sem capacete, quando Wesley foi baleado nas costas. Os PMs apresentaram uma garrucha calibre 28 como sendo pertencente ao jovem, mas os familiares afirmam que ele só tinha uma caixa de ovos.

“Acreditar que a vítima estivesse segurando uma arma de fogo com uma das mãos e uma caixa de ovos com outra, na garupa de uma motocicleta em movimento, desafia as leis elementares da física”, afirmou em parecer o promotor Ythalo Frota Loureiro. O caso enfrenta um conflito de competências, já que o primeiro promotor do caso, André Clark Nunes Cavalcante, defende que o inquérito transcorra na Justiça Militar, enquanto Ythalo Frota sustenta que o caso deva tramitar em uma Vara do Júri. O procurador-geral do MPCE deve resolver o impasse. A Defensoria Pública também requer que o caso permaneça na Vara do Júri.

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O POVO encontrou 14 dos 24 inquéritos policiais instaurados para apurar casos de morte por intervenção policial no primeiro semestre deste ano em Fortaleza. Dez dos inquéritos localizados ainda estão em andamento, três foram arquivados e um outro teve pedido de arquivamento já realizado pelo Ministério Público Estadual (MPCE), aguardando decisão judicial.

Além de mortes por intervenção policial, O POVO apurou que a Delegacia de Assuntos Internos (DAI), especializada em crimes de agentes de segurança, tem, pelo menos, mais um inquérito em tramitação de caso de homicídio doloso ocorrido em 2021. Trata-se de um caso ocorrido em fevereiro, que vitimou Lindemberg Alves do Nascimento, no bairro Carilito Pamplona, morto enquanto estava em um espetinho. Os autores do crime foram dois homens em uma moto. As investigações mostram um PM como o principal suspeito, mas o caso segue em andamento.

Manifestação pelas vítimas da chacina da Grande Messejana(Foto: Tatiana Fortes, em 18/11/2015)
Foto: Tatiana Fortes, em 18/11/2015 Manifestação pelas vítimas da chacina da Grande Messejana

 

 

Entenda o caráter de ilicitude de uma operação policial

As mortes por intervenção policial são consideradas sem ilicitude, pois se entende, conforme o Código Penal, que elas ocorrem em legítima defesa ou cumprimento do dever legal. Entretanto, via de regra, inquéritos policiais são instaurados em todas essas mortes para que seja determinado se, de fato, o caso ocorreu conforme a versão policial. 

Movimentação nas horas seguintes à chacina, com policiamento reforçado(Foto: FABIO LIMA/O POVO)
Foto: FABIO LIMA/O POVO Movimentação nas horas seguintes à chacina, com policiamento reforçado

 

 

Mãe de vítimas da Chacina lançam livro

 

O ponto alto da programação elaborada pelas Mães do Curió é o lançamento do livro Onze: Movimento Mães e Familiares do Curió com amor na luta por memória e justiça. A obra foi escrita em conjunto pelas próprias mães de vítimas da chacina em parceria com integrantes de diversas instituições e movimentos sociais. O lançamento do livro ocorre nesta quinta-feira, 11, às 18 horas, na Biblioteca Estadual do Ceará. O evento é para convidados.

Onze traça um perfil das vítimas da chacina, focando em suas histórias de vida e personalidades, contadas por suas próprias mães. O objetivo é permitir que conheça as vítimas da chacina “como seres humanos, com seus sonhos, suas potências, suas qualidades, seus feitos, seus percalços, sua (em grande maioria) breve linha do tempo”, como dito na apresentação do livro.

Edna Carla, mãe do adolescente Alef, teve seu filho morto na Chacina do Curió e atualmente faz parte do grupo Mães do Curió, que dá apoio às outras mães vítimas do crime . (Foto: Fernanda Barros/ Especial Para O POVO)(Foto: Fernanda Barros)
Foto: Fernanda Barros Edna Carla, mãe do adolescente Alef, teve seu filho morto na Chacina do Curió e atualmente faz parte do grupo Mães do Curió, que dá apoio às outras mães vítimas do crime . (Foto: Fernanda Barros/ Especial Para O POVO)

Além disso, o livro ainda faz uma análise dos últimos anos do Estado em matéria de segurança pública. O livro critica a “lógica de guerra” da segurança pública do Estado e também a falta de políticas de prevenção de homicídios. É denunciado que, em 2020, o Estado gastou mais com segurança pública do que com educação e assistência social. “De 2001 a 2019, a execução orçamentária da Segurança Pública do Estado passou de R$ 780 milhões para R$ 2,8 bilhões, um crescimento de 238,4%. Isso denota muitos recursos públicos investidos, com zero eficácia na redução de mortes”.

De tiragem limitada, o livro será distribuído para instituições e parceiros. Apesar disso, o livro conta com versão em áudio, que está disponível no Spotify. O audiolivro pode ser acessado em: https://open.spotify.com/show/0BpCq1aCmY3WBhUZgonmHL

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