De Cabo Verde, um pequeno país formado por dez ilhas e com menos de 600 mil habitantes, saiu um dos principais nomes da história do kitesurf e que se tornou figura frequente em solo cearense. Da Ilha do Sal à terra do sol, Mitu Monteiro rodou o mundo para competições e eventos do esporte, inspirou conterrâneos com feitos inéditos e foi pioneiro em uma modalidade de kite, o que turbinou a relevância no mundo dos esportes marítimos.
Antes de chegar a este patamar, porém, não foram poucas as dificuldades na trajetória de Oteniel Jorge Monteiro, de 39 anos. Sal é uma das ilhas de Cabo Verde, onde o atleta nasceu e cresceu antes de aventurar em outros mares, mais precisamente na pequenina vila de Santa Maria, um recinto de pescadores.
Mitu foi criado pela mãe, que se desdobrava entre a rotina em casa e no trabalho para superar as dificuldades financeiras e sustentar o filho. Com o passar dos anos, ele conheceu o mar e virou figura frequente na praia. Os barcos de pescadores despertaram a atenção do jovem, que se interessou e ganhou ali as primeiras noções sobre como lidar com as águas e a direção do vento.
No esporte, os primeiros passos foram no surf e no windsurf. O kite era um desejo distante por conta dos custos com materiais. Mitu trabalhou, economizou dinheiro por alguns meses e, com ajuda da mãe, usou 150 euros para comprar a pipa e uma prancha encontrada por um pescador. Antes, chegou a improvisar tábua de madeira e até um isopor para cair na água.
A utilização de uma prancha de surf para se aventurar no kite posteriormente virou a modalidade strapless, inventada por ele. Entre os apaixonados pelo esporte mundo afora, o atleta é reverenciado como "lenda" e "mito". Mitu Monteiro se considera velejador desde os 17 anos. Oito anos depois, em 2008, conquistou o título mundial. Ficou com o vice em outras quatro oportunidades (2010, 2011, 2012 e 2019).
"Quando eu comecei, não era porque queria fazer strapless, era por necessidade. Não tinha prancha de kite e usava o surfe para praticar. Agora virou uma modalidade e eu fui o pioneiro. É legal. Às vezes estou competindo em uma modalidade que eu criei, nem dá para acreditar", recorda.
Do mesmo país, por sinal, saíram outros atletas de destaque no kitesurf: Airton Cazzolino, também campeão mundial, Titik Lopes e Djô Silva, por exemplo.
Após anos de competições, o cabo-verdiano hoje viaja pelos continentes dando aulas, em geral acompanhado pela família - a esposa Nicole e os três filhos, Michael, Matthew e Malakai. Inclusive, o mais velho, Michael, já tomou gosto pelo kitesurf e disputa torneios na Europa. Em paralelo, Mitu e Nicole comandam os negócios, que envolvem uma marca própria de materiais esportivos, uma escola de kite e um bar na terra natal.
Entre agosto e setembro deste ano, a família Monteiro esteve na Praia do Preá, no munício de Cruz, próximo à paradisíaca Jericoacoara, para descansar e formar futuros kitesurfistas. Entre as aulas e o lazer com os filhos, Mitu atendeu a reportagem do O POVO por cerca de 20 minutos para falar sobre a carreira no esporte e a trajetória de vida.
"Quando eu comecei, era uma brincadeira, depois virou minha paixão, meu trabalho e minha vida também, porque com o kite viajo muito, levo minha família junto. O kite tocou muito na minha vida e mesmo na educação também, porque o esporte também educa. Eu posso só agradecer a Deus por dar essa possibilidade. Foi graças ao kitesurf que eu cheguei aonde estou agora", destacou.
O POVO - Você nasceu em Cabo Verde, teve dificuldades no início e conseguiu virar campeão mundial. Como o kitesurf entrou na sua vida?
Mitu Monteiro - Eu sou de Cabo Verde, da Ilha do Sal. Em Cabo Verde são dez ilhas. Quando eu comecei, já via e queria começar há muito tempo, só que não podia porque é caro. Não podia comprar o material. Eu trabalhei seis meses, minha mãe deu uma ajuda também, então comprei minha primeira pipa. Depois comprei uma prancha que um pescador encontrou no mar, a prancha quebrou, fabriquei uma prancha de madeira... Era só pela paixão que eu tinha pelo mar.
Fui sempre muito ligado ao mar. Comecei a velejar, tinham muitos "gringos" (estrangeiros) que iam a Cabo Verde, me viam velejando e falam: 'Cara, você tem potencial incrível, tem que competir'. Às vezes eu achava que o cara só queria agradar. Nunca tive essa possibilidade de competir. Depois, fizeram um campeonato em Cabo Verde, em 2003, eu participei e fiquei em quinto lugar. Já vi que tinha alguma coisa. Comecei a tentar participar dos outros campeonatos. Não foi fácil, porque tem sempre muitos obstáculos: patrocinador, às vezes tirar o visto para viajar... É sempre muito complicado, mas eu nunca desisti. Sempre corri atrás, lutando, continuava treinando.
Fiz algumas competições na Itália, que não era minha disciplina, porque era freestyle, fiquei bem classificado. Em 2008, tive a oportunidade de seguir todas as etapas do campeonato. Na primeira etapa, fiquei em segundo lugar; depois, nos outros, fiquei sempre em primeiro lugar, então já ganhei o meu título mundial. Quando eu ganhei o título, já foi como uma porta que abriu para mim e para o meu país, porque vários outros campeões que também vieram de Cabo Verde, da mesma vila.
Às vezes as pessoas perguntam: 'Como é possível um país tão pequeno, uma vila tão pequena, já ter quatro campeões mundiais?' Tem alguma coisa aí. Eu vejo esse mesmo potencial aqui no Ceará, porque os meninos... Você dá um pedaço de papel e já estão velejando, quebrando. Tem muito potencial aqui também, eu vivi essa experiência.
OP - Para quantos países você já foi graças ao kitesurf e quantos idiomas você fala?
Mitu - Se eu for contar agora, nem tenho ideia, mas já viajei muito. Já estive nos Estados Unidos, fui para o Havaí, estive no Canadá, Peru, vários países da Europa — nem vou dizer os nomes porque são muitos —, na Austrália, Maurícias, África também viajei para vários países... Já estive em várias partes. Na Polinésia Francesa, que é do outro lado do mundo, legal também.
Eu falo seis idiomas e é legal, quando você está no lugar, perceber o que as pessoas estão falando. Eu adoro. Sempre fui curioso para tentar aprender os idiomas. Em Cabo Verde, a língua oficial é português, mas tento botar um pouco de sotaque brasileiro. Tento sempre aproximar mais do país aonde eu vou, e isso abre muitas portas. É importante você ter uma boa comunicação. E é graças ao kite que eu falo todos esses idiomas, você tem que se comunicar com as pessoas, e isso ajuda muito.
Quando você começa a falar com as pessoas em italiano, inglês, francês... Eles adoram que você fala a língua deles. É uma vantagem grande. Não é só esporte, você vai aprendendo muitas coisas da vida também. Eu tenho três filhos e tento passar a mesma coisa para eles. Meu filho de 10 anos já está falando cinco idiomas, porque vai abrir muitas portas. É importante para a carreira de um atleta.
Às vezes as pessoas perguntam: 'Como é possível um país tão pequeno, uma vila tão pequena, já ter quatro campeões mundiais?' Tem alguma coisa aí. Eu vejo esse mesmo potencial aqui no Ceará, porque os meninos... Você dá um pedaço de papel e já estão velejando, quebrando. Tem muito potencial aqui também, eu vivi essa experiência
OP - E quando foi a primeira vez que você veio ao Ceará?
Mitu - A primeira vez que eu estive no Brasil foi em Cumbuco, fui participar de um campeonato. Depois, por vários anos, não voltei. Com o Surf Sem Fim e o Rancho do Peixe, eles me convidaram para visitar. Aceitei o convite, vim a primeira vez e já adorei. Quando voltei, comecei a falar para a minha mulher: 'Olha, esse lugar é irado, muito massa', contei a história, mostrei as fotos, e ela começou a se apaixonar também. No ano seguinte, voltamos com a família, nosso filho tinha 4 anos, e ele fez um downwind conosco, acho que foi 400 quilômetros, mais ou menos, de toda a costa do Ceará. Aí foi massa. Porque imagina, você, com o kitesurf, conseguir viajar toda a costa... Foi muito legal.
Meu filho até hoje, com 10 anos, fala dessa experiência, que ele nunca esqueceu. Não era só kitesurf, mas teve toda uma mistura, e isso foi legal. É uma experiência que todo mundo tem que ter. (...) Você vai encontrar muitas paisagens diferentes, cultura, pessoas... Às vezes eu paro falando com os pescadores, eles contam as histórias deles, eu gosto de pescar também. Você aprende muito. É uma experiência única estar nesse país.
Para mim, estar aqui no Preá é sempre um enorme prazer. Eu sinto como minha segunda casa. Quando eu treinava para campeonato, ficava muito tempo aqui, um mês, e digamos que é um dos melhores lugares do mundo para praticar kitesurf, principalmente strapless: tem vento forte, água quente, a logística também é perfeita, porque fica logo à frente da praia. É legal.
Eu comecei a praticar kite quando tinha mais ou menos 17 anos. Já fazia windsurf, surf também. Quando eu comecei, era uma brincadeira, depois virou minha paixão, meu trabalho e minha vida também, porque com o kite viajo muito, levo minha família junto. O kite tocou muito na minha vida e mesmo na educação também, porque o esporte também educa. Eu posso só agradecer a Deus por dar essa possibilidade. Foi graças ao kitesurf que eu cheguei aonde estou agora.
OP - Da dificuldade acabou surgindo um pioneirismo, já que você inventou a modalidade strapless no kitesurf. Como surgiu?
Mitu - Agora, a nova modalidade é strapless, que você usa uma prancha de surfe sem alça. Quando eu comecei, não era porque queria fazer strapless, era por necessidade. Não tinha prancha de kite e usava o surfe para praticar. Agora virou uma modalidade e eu fui o pioneiro. É legal. Às vezes estou competindo em uma modalidade que eu criei, nem dá para acreditar. No começo não tinha YouTube, redes sociais, não dava nem para ver o que os outros estavam fazendo. Cada "gringo" que chegava a Cabo Verde e me via velejando com essa prancha: 'Caramba, muito legal' (com expressão de espanto).
A primeira viagem que eu fiz, na Itália, fui para um lago e cheguei com a minha prancha. As pessoas olhavam para mim um pouco estranho: 'Você tá louco? Prancha de surfe, vai fazer o que em um lago?'. Aí, quando eu começava a velejar, dar esses pulos, as pessoas se amarravam. É uma disciplina interessante. Às vezes perguntam: 'Você tem cola no pé?', porque essa prancha fica grudada no pé, faz manobra.
Tive também a oportunidade de fazer uma travessia por todas as ilhas de Cabo Verde com um kite. São dez ilhas e fiz em 20 dias, fui de uma ilha para outra. Foi um sonho realizado, porque desde a infância meu sonho era ir de uma ilha para outra com uma prancha, podia ser windsurf, vela, mas tinha que ser com uma prancha. Tive a oportunidade de criar esse projeto, fazer todas as ilhas, então foi um sonho realizado. Vivi quase a mesma emoção quando ganhei o título, porque toda a população estava junto.
No começo era uma coisa minha, um projeto meu, mas no final era de toda Cabo Verde. Tinham pessoas esperando na praia, quando eu chegava todo mundo queria falar comigo, jogar para cima. Foi muita emoção. E essa emoção ajudou a finalizar o projeto, porque tiveram alguns momentos que estava difícil. Como eu sabia que tinham pessoas na praia já há horas esperando, eu disse: 'Vou tentar um pouco mais' e já conseguia chegar ao objetivo. Na minha vida, a cada dia são várias emoções. Você vai para a água, vê uma tartaruga... Acontecem sempre várias emoções na minha vida.
OP - Isso acabou impulsionando o reconhecimento mundial que você tem no esporte. Muita gente te chama de "lenda", "ícone"...
Mitu - Eu acho legal. Acho que é também graças ao meu caráter, sou muito tranquilo, na boa, falo com todo mundo. Às vezes estou andando na rua e as pessoas me param, querem perguntar, vem criança... Às vezes minha mulher até fica chateada. Tem o cara que está bêbado, quer falar comigo, e eu paro, aí ela fica: 'Temos que ir porque vamos jantar'. Só que quando está bêbado, já fala mais na emoção, fica mais livre.
Então, eu gosto. Tento sempre fica com os pés no chão, compartilhar minha experiência. No mundo em que estamos, se cada pessoa deixa uma coisa boa, uma mensagem, troca muito. Às vezes só em falar com uma pessoa, uma pequena frase, muda a vida de uma pessoa, dá uma motivação e ela começa a pensar diferente. Basta fazer um pouco para ser grande. Eu fico contente com a consideração que as pessoas têm por mim e continuo igual, fazendo meu melhor e compartilhando essas emoções.
OP - Você imaginou algum dia que chegaria a este patamar?
Mitu - Eu nunca pensei que ia chegar aonde estou agora. O importante, quando você gosta de uma coisa, é se dedicar. Eu sempre amei o mar, fazer esportes náuticos. Para mim, ir para a praia e olhar o mar era como recarregar as baterias. Já ficava contente, alegre, então isso já era suficiente. Não é fácil alcançar os objetivos. Já tive vários momentos de altos e baixos, mas se você acredita, vai conseguir. Na minha carreira, ao mesmo tempo já tentava criar minha escola, ter algo paralelo.
Tenho um sócio em Cabo Verde também, faz kite. Junto com ele e com minha mulher, ajudam um pouco nos backoffice, gerimos os negócios e também ter tempo para a família também. Tento sempre aproveitar o máximo possível da família. Na vida tem várias fases, e eu estou nessa fase de transição da carreira de atleta para, digamos assim, já mais no free right e também aproveitar mais a família, porque os meninos vão crescer rápido, daqui a pouco já estão grandes. Tento aproveitar esse momento, que está sendo muito especial na minha vida. Se vocês têm um sonho, acreditem, porque um dia vai realizar.
Tento sempre fica com os pés no chão, compartilhar minha experiência. No mundo em que estamos, se cada pessoa deixa uma coisa boa, uma mensagem, troca muito. Às vezes só em falar com uma pessoa, uma pequena frase, muda a vida de uma pessoa, dá uma motivação e ela começa a pensar diferente. Basta fazer um pouco para ser grande
OP - Hoje, após muitos anos de conquista, você se dedica mais às aulas, inclusive no Preá. Como tem sido essa nova fase?
Mitu - Desde o começo, antes que começasse a competir, eu já ensinava. Sempre tive essa paixão de ensinar. Quando eu comecei a competir, quase não tinha tempo para ensinar, porque era mais focado em treinos na água, fora da água, tinha família também, então era complicado ter tempo para fazer tudo. Agora já tenho mais tempo, então posso focar mais ensinando. Estou contente porque estou compartilhando minha experiência, minhas emoções. Você vai sempre deixar alguma coisa.
Às vezes eu faço coach com uma pessoa, e ela começa a falar toda emocionada: 'Incrível, eu não acreditava que conseguia subir na prancha'. Eu adoro isso. Com o nível que eu tenho, eu ensino não só o principiante, vou desde o principiante até quem sabe velejar bem. Às vezes o principiante chega e pergunta: 'Você vai dar aula?'. 'Sim, por que não?'. Ficam até um pouco surpresos. Eu adoro fazer isso. Esse ano viajei muito também fazendo coach, estive no Peru, fui para a Espanha, Itália... A gente diz que vai parar de competir para viajar menos, mas é o contrário: estou viajando sempre mais porque todo mundo convida, quer que eu vá compartilhar minha experiência. É legal, dá para continuar sempre no mundo do kite fazendo algo diferente.
Competi por vários anos e agora estou começando a me dedicar um pouco mais à parte de coaching (dando treinos), ensinando, compartilhando a minha experiência. Essa é a ideia, porque eu adoro ensinar. Quando você ensina as pessoas, você vê o sorriso, para mim já é uma enorme satisfação. Em Cabo Verde tenho uma escola também, um bar restaurante e uma loja com a minha marca. Eu criei minha marca porque às vezes as pessoas chegavam para pedir um autógrafo e iam comprar uma camisa de outra marca. A minha vida é sempre em torno do kitesurf.
OP - Qual mensagem você deixaria para quem se interessa ou pensar em praticar kitesurf?
Mitu - O kitesurf é um esporte muito fácil. Eu aconselho sempre, quando você vai aprender, a buscar uma escola certificada, com profissionais. O kite tem muita potência, então se você não conhece e não sabe administrar, pode ser perigoso também. É bom começar com uma escola certificada. Aqui, no Brasil, vocês têm um potencial incrível. Tem pessoas que pagam para vir nas férias, e vocês têm logo aqui ao lado. Então tem que tirar proveito disso, é uma maravilha natural que vocês têm. Basta pouco para ir para a água. E aproveitar, aqui é um dos melhores lugares do mundo para praticar isso. Tem vento, sol, água quente... Já são fatores muito grandes.
O repórter Afonso Ribeiro viajou a convite do Hotel Rancho do Peixe