Não é de hoje que assédio, silenciamento, comentários sobre a aparência e outras formas de opressão estão presentes na vida das mulheres brasileiras. Mas em meio às disputas políticas de um período eleitoral marcado por polarização e violência, essa realidade se torna ainda mais grave e invade o caminho daquelas que se movimentam para ocupar posições de poder: é a violência política de gênero.
A participação feminina na política, que ainda avança de maneira tímida, é resultado de uma luta histórica para que as reivindicações das mulheres sejam ouvidas e atendidas. Apesar disso, a voz das que conseguem chegar ao púlpito ainda enfrenta descrédito, questionamento e intimidação.
Na última sexta-feira, 21, a deputada federal eleita Marina Silva (Rede-SP) foi hostilizada e xingada de “vagabunda” por simpatizantes do presidente Jair Bolsonaro (PL) enquanto jantava em um hotel em Minas Gerais. O fato, que a ex-ministra relatou ter registrado boletim de ocorrência, aconteceu depois que ela participou de caminhada com o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), candidato no qual declarou apoio ainda durante o primeiro turno.
Ontem após jantar com dirigentes da Rede no restaurante do hotel Radisson Blu (BH), fui xingada por simpatizantes de Bolsonaro. É a velha tentativa grotesca de coagir a ação política das mulheres. É a violência política de gênero se espalhando pelo país em tempos bolsonaristas.
— Marina Silva (@MarinaSilva) October 22, 2022
Na sequência, foi a vez da ministra Cármen Lúcia ser alvo de ataques misóginos: em um vídeo publicado nas redes sociais, o ex-deputado federal Roberto Jefferson (PTB) a chamou de “bruxa de Blair” e a xingou comparando-a “prostitutas” e se referiu a ela com palavras chulas.
O bolsonarista registrou as ofensas após a magistrada votar a favor da punição à Jovem Pan por declarações distorcidas sobre Lula (PT). Durante a audiência de custódia que confirmou a sua prisão em flagrante, nesta terça-feira, 25, Jefferson voltou a ofender a magistrada em seu depoimento.
“Fiz um comentário mais duro contra o voto escandaloso da ministra Cármen Lúcia. Quero pedir desculpas às prostitutas pela má comparação, porque o papel dela foi muito pior, porque ela fez muito pior, com objetivos ideológicos, políticos. As outras fazem por necessidade”, disse.
O ministro Alexandre de Moraes, presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), determinou a remoção do vídeo das redes sociais e declarou, em nota, que o órgão “tomará todas as providencias institucionais necessárias para o combate a intolerância, a violência, o ódio, a discriminação e a misoginia que são atentatórios à dignidade de todas as mulheres e inimigos da democracia, que tem, historicamente, em nossa ministra uma de suas maiores e intransigentes defensoras”.
Em discurso, a ministra agradeceu o apoio e afirmou que o Brasil passa por “tentativas de subversão ou erosão democrática”: “Vários de nós passamos, nesses últimos tempos especialmente, por agruras que vão além de qualquer civilidade”.
A senadora Simone Tebet (MDB), que disputou a Presidência da República, denominou os episódios de Marina Silva e Carmén Lúcia como violência política de gênero, o que é considerado crime pela legislação brasileira desde 2021. Tebet reconhece bem esse delito, já que recentemente também foi vítima dele.
“Os xingamentos e ameaças direcionados à ministra Cármen Lúcia, e em tom semelhante à política Marina Silva, refletem o uso da violência política de gênero como instrumento para restringir, violar, os direitos políticos e institucionais dessas mulheres”, assevera a advogada Roberta Eugênio.
Co-diretora do Instituto Alziras, organização sem fins lucrativos focada em ampliar e fortalecer a presença de mulheres na gestão pública, ela ratifica que atos como esses afetam mais do que a honra ou imagem das citadas autoridades, “revelam uma chaga aberta e indigesta da política brasileira: a misoginia como instrumento de violência e reafirmação da política como não lugar para mulheres”.
Esses tipos de ataque, sublinha Roberta, ecoam em direções diversas, repercutindo como um aviso para a sociedade sobre qual tratamento é dispensado às mulheres que detenham poder. “O que precisamos definitivamente assumir é que a violência política de gênero ultrapassa a vítima e atinge todos nós, é uma violação à democracia e às instituições do estado”, defende.
A advogada Raquel Machado, especialista em Direito Eleitoral e professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal do Ceará (UFC), chama a atenção para o fato de que os adjetivos utilizados “não se referiam à qualidade da atividades delas, e sim um palavreado grosseiro e agressivo que se relaciona ao simples fato de elas serem mulheres ou ao estereótipo do que seria ser uma mulher”.
Para a coordenadora do grupo Ágora, que integra o Observatório de Violência Política contra a Mulher, isso fragiliza o espaço público. “Todas as instituições devem se posicionar a favor da presença das mulheres e buscar ações de reconhecimento, com um acolhimento que dê voz e passe do discurso para as ações”, pondera.
O Observatório dispõe de uma cartilha sobre violência política de gênero que busca orientar mulheres a se protegerem e identificarem situações de violência política em seus cotidianos.
A cartilha explica que, além da violência física, como estupro e agressões, existe a violência não física, como a simbólica, com uso de linguagem excludente e objetificação das mulheres; a moral, como calúnia e difamação; a econômica, como o não acesso a recursos e ausência de investimento em campanhas femininas; além da psicológica, como intimidação e ameaça.
Como acontece a violência política de gênero
Maior parte da população do Brasil (51,8% de acordo com o último Censo, de 2010), as mulheres também são a maior parte do eleitorado nas eleições deste ano, mas ainda estão longe de alcançar a equidade de gênero na política.
Quando se analisam as candidaturas, elas foram apenas 33% (9.415) do total das 28.288 para o pleito de 2022 (a cada dez candidaturas, somente três são de mulheres) — segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). O percentual de candidatas cresceu apenas um ponto percentual em relação à disputa de 2018: saindo de 32% para 33% do total.
Dados da pesquisa “Perfil do poder nas eleições de 2022”, realizada pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), revelam que em oito estados apenas candidatos homens disputaram o cargo de governador: Amapá, Bahia, Ceará, Espírito Santo, Maranhão, Rondônia e Santa Catarina.
Sobre o assunto
Um relatório produzido em 2018 pelo Instituto Alziras apontou que as principais barreiras de acesso e permanência na política para mulheres prefeitas são o assédio e a violência no espaço político — obstáculos que estão em outras esferas e que se refletem na sub-representação.
De acordo com a nota técnica “Mulheres em posição de poder nos Parlamentos do Brasil: Câmara Federal, Assembleias Legislativas estaduais e do Distrito Federal”, divulgada em setembro pelo Observatório Nacional da Mulher na Política (ONMP), no Brasil, desde a década de 1990 vêm sendo articuladas ações nos Poderes Legislativo e Judiciário para potencializar a participação das mulheres na política institucional.
O documento aponta que algumas medidas implementadas com essa finalidade foram as cotas eleitorais, desde 1995, e a utilização dos 5% do Fundo Partidário e do fundo especial de financiamento para as campanhas das candidatas femininas.
Conforme o estudo, essas iniciativas permitiram que o Brasil avançasse; porém, em um ritmo ainda distante da realidade a que se busca chegar, que é “a paridade entre homens e mulheres na política formal brasileira”.
O texto acrescenta que as mulheres também enfrentam dificuldades para ocupar lugares de destaque dentro de seus partidos e posições de notoriedade enquanto exercem os seus mandatos, o que evidencia a necessidade de mais políticas públicas para diminuir a desigualdade e aumentar a representatividade das mulheres no exercício do poder.
Para Jade Romero (MDB), vice-governadora eleita do Ceará, a presença de mais mulheres na política muda a vida de outras mulheres e muda, também, a sociedade como um todo.
“Nós somos maioria do eleitorado, mas minoria na política. Ocupamos menos cargos e muitas vezes, não temos nossa vontade ouvida. Esses ataques buscam nos enfraquecer, primeiro como mulher, depois como agentes transformadoras. Não recuaremos um centímetro do que conquistamos, estamos aqui firmes para empoderar, encorajar e acolher — quando preciso for — em busca de mais mulheres na tomada de decisões”, garante.
Segunda mulher a ocupar o cargo na história do Estado, depois de Izolda Cela (PDT), Romero reitera o compromisso de sua gestão com a formação de um secretariado com paridade de gênero.
“As mulheres tomarão decisões conosco. O nosso grupo fortalece e encoraja as mulheres. Durante a campanha fiz cerca de 80% da agenda sozinha, representando o Elmano, o Camilo, levando a nossa mensagem, mostrando a autonomia e a competência das mulheres para ocuparem os mais diversos papéis de protagonismo”, diz.
Com quatro mulheres, as eleições de 2022 tiveram recorde de candidatas à Presidência, além de duas chapas 100% femininas — a do PSTU, com a operária Vera Lúcia (PSTU), candidata à Presidência, e a vice indígena Kunã Yporã (Raquel Tremembé); e a do MDB-PSDB, com as senadoras Simone Tebet, emedebista, e a tucana Mara Gabrilli.
Na primeira eleição com a lei que criminaliza a violência política contra a mulher em vigor, o Ministério Público Federal (MPF) soma 83 procedimentos abertos desde o início de sua vigência, em 2021.
Apesar de o MPF não ter um recorte específico de casos ligados ao período eleitoral, a lista com procedimentos abertos desde o início da legislação contava com 34 relatos até agosto, número que saltou para 83 durante as eleições, com a adição de várias denúncias, inclusive, de não recebimento de recursos de campanha por candidatas.
Ainda que insuficiente para proteger as candidatas a cargos eletivos em 2022, a legislação brasileira pune assédio, constrangimento, humilhação, perseguição ou ameaça direcionadas às mulheres candidatas e eleitas com um a quatro anos de reclusão e multa.
"É crime eleitoral assediar, constranger, humilhar, perseguir ou ameaçar candidata ou detentora de mandato eletivo, utilizando-se de menosprezo ou discriminação à condição de mulher ou à sua cor, raça ou etnia"
Qualquer pessoa que tenha conhecimento da existência da prática contra a mulher pode, verbalmente ou por escrito, comunicar a ocorrência ao Ministério Público Eleitoral (MP Eleitoral), ao juiz ou a juíza eleitoral e/ou à autoridade policial por meio da página do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
No Portal, basta procurar pelo ícone localizado à esquerda: “Denuncie a violência política de gênero”. O link direciona a um formulário do Ministério Público Eleitoral, instituição que tem as funções de apurar e de dar início aos processos criminais de violência política contra as mulheres.
"Olá! Aqui é Karyne Lane, repórter do OP+. Te convido a deixar sua opinião sobre esse conteúdo lá embaixo, nos comentários :) até a próxima!"
Um debate sobre como se configura esse tipo de violência no universo da política