― A senhora está totalmente descontrolada!
Bagunça na CPI. “Não, não, não, não”, alguém repreende. “Machista! Machista!”, grita outro homem. “Meu amigo, você está pensando que está onde?”. “Você é um moleque que não está aí por mérito, está por favores ao Bolsonaro”, diz mais um.
A fala do ministro Wagner Rosário, da Controladoria-Geral da União (CGU), contra a senadora Simone Tebet (MDB-MS), gerou confusão durante a sessão da CPI da Covid-19 no dia 21 de setembro de 2021 e virou mais um capítulo da violência política de gênero no Brasil.
Em uma sala com cerca de 15 homens e apenas três mulheres, o ministro Rosário mandou a senadora reler o processo da CPI, porque ela teria dito “várias inverdades”. “Não faça isso. O senhor pode dizer que eu falei inverdades, mas não peça para eu fazer algo porque eu sou senadora da República!”, revidou Tebet. Mas o ministro continuou, finalizando com um “descontrolada”.
“O caso da senadora Simone Tebet é um caso exemplar de práticas internalizadas nas nossas instituições públicas e que ficam mais visíveis pelo tema da violência política ser endereçado como um problema público”, analisa a advogada Roberta Eugênio, codiretora do Instituto Alziras, organização sem fins lucrativos focada em ampliar e fortalecer a presença de mulheres na gestão pública.
De acordo com Roberta, a violência política de gênero é uma tecnologia utilizada para afastar as mulheres dos espaços de poder, independente de matriz ideológica. A senadora Tebet, por exemplo, ganhou muito destaque na CPI, mesmo não tendo uma cadeira fixa na comissão.
“Não posso afirmar que esse ataque tem como intuito desmoralizá-la, mas certamente essas formas de você tentar minar o poder político das mulheres não são novas”, comenta a advogada.
O POVO tentou contatar a senadora Simone Tebet para comentar o caso, mas ela preferiu se resguardar após o ocorrido. "Os ataques sofridos pelas mulheres na política, assim como em outros setores da sociedade, são covardes e absurdos", critica a senadora Leila Barros (Cidadania-DF), procuradora especial da Mulher do Senado Federal.
Ela definiu a estratégia de "desmerecer" e "rebaixar o trabalho construído" das mulheres parlamentares como "repugnante". "Algumas pessoas ainda não toleram ver uma mulher com argumentos e cientes dos seus direitos", argumenta.
A ideologia partidária é deixada de lado quando o assunto é coibir mulheres: tanto homens de direita, quanto homens de esquerda agridem — verbal, física ou psicologicamente — mulheres aliadas ou não. Foi o caso da deputada federal Joice Hasselmann (PSL-SP), vítima dos próprios pares. E, também, da deputada federal Tabata Amaral (PSB-SP), que foi alvo de uma postagem compartilhada pelo ator Zé de Abreu, conhecido por defender pautas de esquerda.
Na postagem compartilhada e já excluída do Twitter, um usuário comenta uma notícia ilustrada com a foto de Tabata: “Se eu encontro na rua, soco até ser preso”, escreveu. A publicação foi retuitada por Zé de Abreu. A deputada, então, postou na mesma rede social:
“Um cidadão fez uma ameaça de violência física contra mim e, como se isso já não fosse grave por si só, outro cidadão com meio milhão de seguidores retuitou o post. Essa não é a primeira vez que recebo ameaças, mas é raro pessoas rechaçarem elas em massa e de forma contundente como agora.”
A violência política é a razão pela qual milhares de mulheres nem ousam se candidatar pra começar. Escuto isso todos os dias. Ninguém é obrigado a conviver com isso. Tomarei as medidas judiciais cabíveis, mas, de novo, ñ é a justiça sozinha que dará conta de resolver o problema.
— Tabata Amaral (@tabataamaralsp) September 19, 2021
“A violência política de gênero tem como foco as mulheres. Não é uma violência que se distribui a partir dos objetivos ideológicos ou da da agenda política daquele parlamentar”, reforça Roberta Eugênio. “E é exatamente nesse ponto que ela se separa das disputas políticas próprias de uma democracia. Porque, na verdade, ela vai se estruturar com o objetivo de limitar ou de impedir esse exercício político.”
Ainda na série de postagens sobre a ameaça, a deputada Tabata Amaral afirmou que a violência política acabará apenas “quando formos tão respeitosos com nossos adversários quanto somos com nossos amigos”. “Respeito não é reverência, é regra mínima de convivência”, finaliza.
Os dados são da pesquisa A violência política contra as mulheres negras, publicada em dezembro de 2020 pelo Instituto Marielle Franco. Ainda em 2021, o Instituto Alziras deve publicar outra pesquisa sobre o tema.
Apenas em agosto deste ano foi sancionada a primeira lei brasileira federal para combate da violência política de gênero. A Lei nº 14.192, de 4 de agosto de 2021, “estabelece normas para prevenir, reprimir e combater a violência política contra a mulher”, sendo um passo importante na luta pelos direitos políticos femininos.
No entanto, ainda há muito a ser feito, principalmente no que tange a educação política de mulheres candidatas e partidos políticos. Autora do livro Fictícias: candidaturas de mulheres e violência política de gênero (editora Radiadora, 2020), Roberta Laena, doutora em direitos humanos, comenta que a violência política de gênero ainda é um assunto pouco discutido e que falar sobre ele com os homens é um desafio.
“A violência política é uma reação patriarcal à chegada das mulheres no poder”, define. Afinal, a sociedade construiu o imaginário de que o poder é inerente ao homem. Eles são a maioria nos poderes e nos partidos políticos. E quando o feminino chega para ocupar esses espaços, a estrutura patriarcal se vê ameaçada.
Assim, a estrutura cria formas de burlar avanços que deveriam garantir a inclusão de mulheres na política, impulsionando formas mais veladas de violência política. É o caso das fraudes no sistema de 30% de cotas para candidaturas femininas, em esquemas conhecidos como candidaturas laranjas, mas preferencialmente chamados por Laena como “candidaturas fictícias”.
“Você transforma a mulher em mercadoria eleitoral”, diz. Para ela, as candidaturas fictícias configuram como violência por prejudicarem ou anularem o exercício político delas. “É um recado muito claro que o partido passa: você não serve para política, está aqui só para preencher a cota.”
Também coordenadora da Escola Judiciária Eleitoral do Ceará e integrante da Comissão de Participação Feminina do Tribunal Regional Eleitoral do Ceará (TRE-CE), Laena afirma que os relatos das candidatas e parlamentares brasileiras são sempre os mesmos: Partidos que não transferem “um real” para as candidaturas femininas, mulheres costumeiramente excluídas de reuniões… “Repete principalmente nos municípios de pequeno e médio porte”, afirma.
“E isso não acontece numa negativa direta, o partido não diz que vai ter direcionamento curto porque você é mulher. Mas os dados apontam que as mulheres recebem menos recursos, as mulheres negras ainda menos, e isso tudo indica que os próprios partidos também podem ser agentes de violência política contra as mulheres”, especifica a co-diretora do Instituto Alziras, Roberta Eugênio.
Os dados são da pesquisa As prefeitas brasileiras e os partidos políticos, do Instituto Alziras, publicada em 2020 e relacionada aos mandatos de 2017 a 2020.
Combater a violência política de gênero, portanto, vai além de promover cotas de candidatura feminina (o que não torna essa estratégia menos importante). Na análise de Roberta Laena, é necessário investimento em campanhas educativas, como a que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) lançou neste ano.
Além disso, ela sugere a criação de redes de apoio dentro dos parlamentos, para acolher as vítimas e garantir que as denúncias sejam apuradas rapidamente.
Já a advogada Roberta Eugênio destaca a importância de nomear a problemática, comparando com a violência doméstica. “Há dez anos, a violência doméstica era entendida como um problema do casal. E após muita mobilização pública, com a criação de políticas públicas, não apenas se criaram mecanismos formais para denúncia, mas também se projetou para debater dentro da sociedade o problema da violência doméstica”, exemplifica.
"Serve como um trampolim para que candidatos com pouca expressão, a partir de um discurso de ódio, se vinculem a alguns eleitores que endossam esse discurso de ódio."
A partir disso, a temática ganha força social e impulsiona o aperfeiçoamento legislativo. Somente há dois meses o Brasil instaurou lei relacionada à violência política de gênero; ainda é preciso reforçá-la e prever punições aos agressores. Eugênio destaca como essa violência tem sido utilizada como uma estratégia de “marketing eleitoral”. “Serve como um trampolim para que candidatos com pouca expressão, a partir de um discurso de ódio, se vinculem a alguns eleitores que endossam esse discurso de ódio”, afirma.
Nesse sentido, a própria fiscalização das práticas de violência política precisa virar uma prioridade dos órgãos, que devem adequar suas legislações internas para punir os casos em suas várias facetas.
Somente assim, reflete Eugênio, será compreendido “o verdadeiro peso que a violência política de gênero tem na fragilidade do que chamamos, ou pretendemos chamar, de democracia”.
No dia 18 de outubro de 2021, a Justiça Eleitoral promoveu um seminário com tema "Violência política de gênero no Brasil: realidades e perspectivas". Veja a live:
Um debate sobre como se configura esse tipo de violência no universo da política