A desigualdade de gênero está impedindo o desenvolvimento sustentável dos países da América Latina e do Caribe. Foi o que concluiu um relatório da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), divulgado em janeiro de 2020. Segundo a comissão, a disparidade entre a divisão sexual do trabalho e a não garantia da autonomia e direitos das mulheres impede que os países avancem economicamente. A afirmação é especialmente válida quando se fala em participação política.
Das 47 cadeiras ocupadas na Câmara Municipal de Fortaleza (CMFor), é literalmente possível contar nos dedos aquelas preenchidas por mulheres: Adriana do Nossa Cara (Psol), Ana Aracapé (PL), Cláudia Gomes (DEM), Enfermeira Ana Paula (PDT), Estrela Barros (Rede), Kátia Rodrigues (Cidadania), Larissa Gaspar (PT), Priscila Costa (PSC) e Tia Francisca (PL).
São apenas nove candidaturas representando a maioria do eleitorado da Capital cearense (56,3%) . Mesmo assim, essa é a maior ocupação de mulheres na CMFor desde 1989, ano do primeiro registro de vereadoras de Fortaleza pelo portal da Câmara.
A sub-representação é reflexo da violência política de gênero, afirma Celecina Veras Sales, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre Gênero, Idade e Família (Negif/UFC). “O objetivo é impedir que as mulheres tenham espaço na vida política”, explica. Para isso, o sistema se utiliza das múltiplas facetas da violência de gênero para menosprezar e impedir a participação feminina no debate público.
Mas a problemática não é apenas municipal. Basta relembrar o assédio sexual sofrido pela deputada estadual Isa Penna (Psol-SP), quando o deputado estadual Fernando Cury (Cidadania-SP) apalpou os seios dela na frente da Mesa Diretora da Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp). Na época do ocorrido, Isa Penna declarou à CNN Brasil que os casos de assédio são “cotidianos” no Parlamento.
Ou então, as ofensas e ameaças que a ex-candidata à vice-presidência Manuela D’Ávila (PCdoB-RS) sofre há anos na política brasileira. Em 2014, um perfil no Twitter a ameaçou de estupro, após a deputada federal participar de um protesto contra o crime. Isso sem contar nos xingamentos diários que Manuela recebe pelas redes sociais.
Há ainda o caso extremo da vereadora estadual Marielle Franco (Psol-RJ), que foi executada no dia 14 de março de 2018, junto com seu motorista Anderson Gomes, no Rio de Janeiro. Três anos após a execução, o crime ainda não foi totalmente resolvido.
A Lei Maria da Penha (nº 11.340/2006) tipifica a violência de gênero em cinco categorias. A violência política de gênero pode ser enquadrada em qualquer uma delas, mas com o objetivo de impedir a presença feminina na política.
Na maioria dos casos, as violências vividas pelas vereadoras, deputadas e senadoras brasileiras são a moral e a sexual - classificadas, respectivamente, como qualquer conduta de injúria, difamação e calúnia e como condutas que "constranjam a mulher a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada".
As constantes violências e ameaças podem desestimular as mulheres a entrarem na política. Por consequência, as demandas femininas são sub ou mal representadas em todas as esferas do poder; como questões voltadas para a segurança das mulheres, direitos reprodutivos, acesso à educação e à saúde, a entrada no mercado de trabalho e remuneração justa. Na CMFor, sete das nove vereadoras defendem questões de gênero ou raça.
Vale lembrar que as eleições municipais de 2020 destacaram outro fenômeno curioso: o Partido da Mulher Brasileira (PMB) conseguiu eleger duas candidaturas, mas ambas são de homens. “Nós queremos defender pautas feministas, mostrar que você não precisa ser mulher para defender isso, assim como ninguém precisa ser negro para se levantar contra o racismo”, reforçou o vereador eleito Wellington Sabóia (PMB), à época da eleição.
No dia 24 de abril, o PMB alterou o nome para Brasil 35. A mudança foi feita durante convenção nacional do partido, no Rio de Janeiro, após conversas com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Até a publicação desta reportagem, Bolsonaro não tem definida uma nova legenda para disputar a reeleição em 2022. Em março de 2021, já especulava-se que o presidente estaria interessado em migrar para o PMB, onde "seria dono".
Em contrapartida, a ocupação de mulheres em cargos políticos nem sempre é sinônimo de avanço nas pautas femininas. Um exemplo é o caso da deputada federal Caroline De Toni (PSL-SC), que propôs o Projeto de Lei (PL) nº 4.213/2020, para retirar a cota de 30% das candidaturas femininas.
Ela afirmou que as cotas representam uma segregação de sexos, pois o baixo número de mulheres na política seria justificado pelo desinteresse. Para a deputada, é indiferente a função ser exercida por homens ou mulheres e ambos os sexos estão sujeitos a sofrer ataques nesse meio.
Mas enquanto homens são ofendidos por trabalhos ou posicionamentos, mulheres são atacadas por atributos físicos, atributos intelectuais e estereótipos. Para Monalisa Soares, professora de Ciências Sociais da UFC e pesquisadora do laboratório de estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem-UFC), o principal objetivo desses ataques é desencorajar mulheres na política. “Quanto mais mulheres estiverem disputando ou ocupando esses espaços, mais vamos ver esse tipo de violência acontecendo”, ressalta.
"Atinge fortemente o estado democrático. Até onde vai nossa democracia?"
“A mulher na política sempre tem o lado sexual muito explorado. A política é um campo de competição e de competências, então há muitas tentativas dos homens de desqualificar o discurso das mulheres”, comenta Celecina, pesquisadora da Negif/UFC.
As duas únicas prefeitas de Fortaleza, Maria Luiza Fontenele (PT, quando prefeita) e Luizianne Lins (PT), encararam os desafios de ter a vida pessoal e sexual utilizada para descredibilizar as respectivas gestões municipais.
"Eu tenho uma longa trajetória política. De lá pra cá, são muitos anos. Portanto, são muitos episódios, mas recordo de três bastante fortes e sintomáticos", relembra a ex-prefeita Luizianne Lins. O primeiro, conta, foi quando se candidatou à prefeitura, em 2004, e começaram ser distribuídos e colados em postes panfletos com "montagens de posições eróticas e difamações" a respeito da então candidata.
Outro episódio ocorreu já enquanto gestora, quando dispararam e-mails com conteúdos difamatórios sobre Luizianne. "E o mais recente, nas eleições de 2020 para a Prefeitura de Fortaleza, foi a série de ataques misóginos, machistas e deturpados à minha candidatura e à minha pessoa por parte da campanha do candidato do PDT [José Sarto]", finaliza.
Para ela, a campanha "covarde, misógina e difamatória" de Sarto (PDT) foi consequência do "desespero" que as avaliações positivas dos mandatos de Luizianne causaram na candidatura adversária.
Assim, a forma encontrada para combater a ex-prefeita - que, em algumas pesquisas, aparecia empatada com Sarto - foi "difamando" a imagem da mulher. "Isso configura, claramente, uma forte violência política contra uma candidatura feminina bem avaliada nas pesquisas", defende.
Assista ao capítulo 1 da série Breve História Política de Fortaleza 1985-2020, sobre Maria Luiza Fontenele:
A pesquisadora Celecina reforça que a exclusão das mulheres na política começa nos próprios partidos, quando reduzem ao mínimo a complementação das cotas de gênero. Deve-se considerar também as candidaturas laranjas, esquema criminoso no qual partidos usam a identidade de qualquer mulher para cumprir a cota mínima de 30% de mulheres candidatas, estabelecida pela Lei nº 9.504/1997.
“A Câmara Municipal é o lugar que a vereadora ainda está mais próxima de casa… Mas é mais difícil para deputadas e senadoras”, explica a pesquisadora. Afinal, as mulheres continuam sendo pressionadas a conciliar as tarefas domésticas com a vida política.
por Monalisa Torres*
Stuart Mill, um dos maiores representantes do liberalismo, em meados do século XIX, chamou a atenção para a importância da emancipação feminina e defendeu a necessária participação política das mulheres pelo voto e como representantes políticas. Quem melhor Representaria os interesses das mulheres senão elas próprias?
Depois de mais de 150 anos, ainda são inúmeros os desafios enfrentados por mulheres no que diz respeito ao direito de participação na vida política. Mas em geral, podem ser classificados em duas dimensões: uma estrutural e outra institucional como discutido em artigo sobre a sub-representação feminina na política, publicado no O POVO (14/08/20).
Aqui me aterei ao aspecto estrutural para focar, especificamente, na violência política de gênero durante as campanhas eleitorais.
Do ponto de vista estrutural, os desincentivos a participação feminina vão desde “falta de tempo” para dedicarem-se às atividades políticas, já que “as atribuições da esfera privada” (cuidado com o lar e família) ocupam parte significativa de suas vidas além de serem, muitas vezes, tidas como “incompatíveis” com as funções públicas; até os violentos ataques (verbais, físicos e simbólicos) direcionados àquelas que optaram por participar da política.
"As redes sociais tem se tornado o campo preferido de ataques, cada vez mais violentos, às candidatas."
Em geral, os discursos mobilizados contra candidatas durante campanhas eleitorais costumam mirar no que “supostamente a candidata é”. Ao contrário de avaliarem a atuação política das candidatas ou seu trabalho na ocupação de funções públicas, os ataques centram-se em atributos físicos (aparência), intelectuais e mesmo morais, sempre buscando descredibilizá-las e/ou desqualificá-las.
As eleições de 2020 nos deram exemplos desse tipo de violência. Manuela D’Ávila (PC do B) foi uma das candidatas que mais sofreu ataques, inclusive de apelo sexual. Outros nomes como Marília Arraes (PT) e Luizianne Lins (PT) também foram alvo de discursos misóginos. E não pense que a violência política de gênero distingue campo ideológico. Joice Hasselmann (PSL) também foi vítima de discursos de ódio.
As redes sociais tem se tornado o campo preferido de ataques, cada vez mais violentos, às candidatas. Nesse sentido, é urgente a qualificação das polícias e do judiciário a fim de identificar e coibir discursos de ódio.
O principal efeito da invisibilidade da violência política de gênero é a ausência de legislação que puna e iniba tais crimes o que, consequentemente, acaba desestimulando a participação de mais mulheres nas esferas de poder e decisão política.
*Monalisa Torres é professora da Universidade Estadual do Ceará (Uece) e pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Políticas, Eleições e Mídia (Lepem-UFC)
É importante ressaltar que no Brasil ainda não existe uma lei sancionada que criminalize a violência política de gênero. A Bolívia, por exemplo, conta desde 2012 com a Lei nº 243, que prevê prisão de dois a cinco anos para aqueles que praticarem qualquer tipo de violência contra mulheres candidatas, eleitas ou funcionárias de gabinetes.
A lei boliviana é a primeira do tipo no mundo, criada após o assassinato da deputada Juana Quispe (MAS), em março de 2012. Juana tinha apresentado queixas de assédio e defendia uma lei para proteger as mulheres políticas da violência. O México também conta com uma lei específica desde março de 2020, além de liderar o ranking de paridade política na América Latina.
No Brasil, foi aprovado na Câmara dos Deputados o PL nº 349/15, em dezembro de 2020, que está em processo para seguir ao Senado Federal. A cientista política Monalisa Soares destaca que a lei será uma medida positiva, pois possibilitará não só o combate da violência política de gênero, mas o reconhecimento do problema e o incentivo para que mais mulheres ingressem na política. “A violência sofrida por mulheres no cenário político, inibe que outras mulheres tenham disposição para entrar, o amparo de uma lei pode ajudar nesse processo”, afirma.
“A ausência de mulheres nos plenários, reflete em questões na vida da mulher que poderiam ser evitadas com pautas direcionadas”, pondera Monalisa Soares. Ela ainda reforça que a participação das mulheres é fundamental também pelo potencial já constatado das mulheres nos cargos políticos, destacando um levantamento feito pelo Instituto Vamos Juntas.
O estudo constatou que as mulheres na política são mais eficientes que os homens, ao analisar os anos de 2015 e 2020 e apontar que apesar das mulheres ocuparem apenas 15% das cadeiras do Congresso, elas produzem e aprovam mais projetos de lei do que os homens. Enquanto 36% das mulheres apresentaram mais de 14 projetos por ano, somente 24% dos homens apresentaram a mesma quantidade.
Como reflete Celecina Sales, pesquisadora do Negif/UFC, é importante que exista vontade política para transformar o cenário atual. O Brasil, por exemplo, assinou e, em março de 2020, ratificou a Convenção de Belém do Pará de 1994 - um tratado para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher. Na prática, o País não tem atuado firmemente para fazer cumprir o acordo.
“O momento político que vivemos no Brasil é muito adverso para as mulheres”, lamenta Celecina. Comandado pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o Governo Federal sucateou o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MDH). Para encabeçar a pasta, ele ainda nomeou a ministra Damares Alves, que, reforça Celecina, ainda se prende a conceitos antiquados sobre a função social da mulher.
Para a vereadora Larissa Gaspar (PT), presidente da Comissão de Direitos Humanos e Cidadania (CDHC) da CMFor, a participação das vereadoras, deputadas e senadoras em posições de poder estratégicas também é essencial para reduzir a violência política de gênero. Em Fortaleza, foi apenas no ano de 2009 que a primeira vereadora presidiu uma comissão na Câmara: Eliane Novais (PSB), presidente da Comissão de Constituição e Justiça (2009-2010).
No entanto, até o momento nenhuma presidiu uma das comissões estratégicas, como a Comissão de Orçamento, Fiscalização e Administração Pública(Cofap). No atual mandato, apenas duas comissões são presididas por mulheres, a CDHC e a Comissão de Saúde e Seguridade Social (CSSS) - essa pela vereadora Cláudia Gomes (DEM).
De acordo com levantamento da Inter-Parliamentary Union, a presença feminina nas câmaras municipais e estaduais é de apenas 15,2%, enquanto nas federais é de 12,4%. Veja a taxa de ocupação de mulheres nos parlamentos das Américas e no Caribe:
Apesar das violências, as mulheres continuam lutando para manter e expandir a presença feminina na política. A ideia de que lugar da mulher não é na política é combatido com resistência e desejo de provar o contrário.
É como diria Marielle Franco, em seu último discurso na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, antes de ser assassinada: “Não serei interrompida. Não aturo interrompimento dos vereadores dessa casa. Não aturarei o cidadão que veio aqui e não sabe ouvir a posição de uma mulher eleita.”
A repórter Catalina Leite e a estudante de Jornalismo da Universidade 7 de Setembro (Uni7) Nadine Lima, integrante do projeto Novos Talentos de formação de jornalistas mantido pelo O POVO, comentam sobre a experiência e impressões de produzir a reportagem especial "Violência política de gênero: o risco para a democracia".
Um debate sobre como se configura esse tipo de violência no universo da política