A causa do aquecimento global já é bem conhecida. A emissão de gases de efeito estufa (GEE), entre eles o dióxido de carbono (CO2), tem acelerado o aquecimento do planeta como nunca antes visto na história. As fontes dessas emissões são variadas, mas envolvem a industrialização: no Brasil, a agricultura, o desmatamento e o setor de transportes foram os três principais emissores de CO2, de acordo com dados do Our World in Data.
Para mobilizar os países a reduzir a emissão de GEE em suas respectivas indústrias, estabeleceu-se um mercado de crédito de carbono. Criado pelo Protocolo de Quioto, em 1997, o mecanismo “concede” uma licença de carbono a cada tonelada de CO2 (ou equivalentes) reduzida.
Nesse sistema, países que têm reduzido a emissão anual ganham créditos e podem vendê-los a outras nações que não têm logrado atingir as metas. Outra parte do mercado também gira em torno de troca de tecnologia para que os excedentes reduzam as emissões, já que os países signatários do Protocolo de Paris (vigente) devem garantir que as metas sejam atingidas.
“Foi justamente essa perspectiva econômica que fez o debate da redução de gases de efeito estufa ganhar seriedade”, reforça o pós-doutor em Economia do Clima e do Meio Ambiente Luan Santos, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e coordenador do grupo Finanças e Investimentos Sustentáveis (Gfis). “Porque as empresas não querem saber de algo se isso não é monetizado, se isso não gera um número. No mercado, as coisas precisam ser tangibilizadas de alguma maneira.”
"Aquilo que não tem preço na sociedade capitalista é alvo de ataque."
Existem várias corretoras de mercado de carbono, como a European Climate Exchange, a Carbon Trade Exchange (sediada na Inglaterra) e a Toucan Protocol (Alemanha). Todas funcionam como bolsas de valores, logo há um preço único que pode ficar tanto valorizado, quanto desvalorizado — a depender da oferta e da procura.
Fora do mercado regulado, existe também o mercado voluntário. Nele, os créditos são adquiridos por projetos de redução de emissão, por meio do Mecanismo de Desenvolvimento Limpo (MDL). Geralmente, são projetos de relação bilateral entre empresas, aprovados no Brasil pela Comissão Interministerial de Mudança Global do Clima.
O mercado voluntário é o mais encaminhado no Brasil. O País foi o terceiro do mundo com mais MDLs desenvolvidos, atrás apenas da China e da Índia. “Vários estudos mostram o potencial do Brasil como um dos maiores players internacionais para oferta de crédito de carbono no mundo”, destaca Luan.
Por outro lado, apesar da forte presença brasileira no cenário voluntário, o mercado regulado nacional ainda está engatinhando.
No começo de outubro, a Comissão de Meio Ambiente (CMA) aprovou por unanimidade o Projeto de Lei 412/2022, responsável por regulamentar o mercado de carbono no Brasil. Ou seja, a partir dele o Brasil teria um mercado regulado — assim como a Inglaterra e os Estados Unidos, por exemplo —, para além do mercado voluntário.
Com o Sistema Brasileiro de Comércio de Emissões de Gases de Efeito Estufa (SBCE), o Brasil poderia precificar as próprias metas de redução de emissão de CO2, o que é inviável pelo voluntário. Estariam sujeitas ao SBCE empresas e pessoas físicas que emitirem acima de 10 mil toneladas de gás carbônico equivalente (tCO2e) por ano. Esses operadores devem monitorar e informar suas emissões e remoções anuais de GEE. Quem emitir mais de 25 mil tCO2e também deve comprovar o cumprimento de obrigações relacionadas à emissão de gases.
Segundo o professor Luan, a aprovação do PL reacendeu um importante debate sobre o mercado de carbono no País. “O setor privado estava aguardando os movimentos mais regulatórios. Ninguém vai querer fazer nenhum esforço enquanto não tiver um ambiente jurídico regulatório minimamente seguro”, comenta.
O PL não veio sem poréns. Por enquanto, a governança desse mercado regulado é indefinida, o que poderia ser um ponto de tensão e de fragilidade jurídica. “Essa questão da governança tem que ser resolvida antes de virar uma lei de fato, ou existe a possibilidade do PL virar uma lei sem ser implementada. Eu, como pesquisador jurista, sou a favor de que a composição desse órgão seja estabelecida em lei, porque na hierarquia jurídica é algo mais concreto e seguro”, afirma Leonardo.
Além disso, o agronegócio foi deixado de fora do mercado regulado, apesar de ter papel relevante na emissão de GEE. “O mérito das emendas reflete o que se observa nos principais mercados regulados de carbono em que a agropecuária não é incluída na regulação, sobretudo pela importância do setor para a segurança alimentar e pelas muitas incertezas ainda existentes na metodologia de estimativa de emissões”, defendeu a senadora Leila Barros (PDT-DF), presidente da CMA e relatora da matéria.
Segundo a parlamentar, o mais acertado é incentivar a “difusão de técnicas de agricultura de baixo carbono” enquanto se trabalha no desenvolvimento de métricas que contabilizem adequadamente as emissões do setor.
Ocorre que as indústrias incluídas no mercado regulado devem fazer um inventário de fontes de emissão. “O agro nesse ponto é um pouco mais delicado, porque é uma atividade muito heterogênea. (A métrica para emissão) para gado é uma, para soja é outra, pra cana é outra… É muito complicado na parte operacional, e as métricas ainda não são uma coisa muito sólida, muito pacificada na academia e na técnica”, explica o doutor em Direito Ambiental Leonardo Munhoz, pesquisador no Observatório de Bioeconomia da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
“Vamos lembrar que as metodologias hoje disponíveis são do mercado europeu e americano, portanto são de países desenvolvidos industriais em clima temperado. O Brasil vai ter uma chance de ouro em criar suas metodologias para uma agricultura de clima tropical”, pontua.
Na opinião do professor Luan Santos, o agronegócio estar temporariamente de fora do SBCE é um “problema”. “O agro é muito complexo, então existem críticas, sim, com relação às metodologias para fazer inventários, mas também existe para transporte, também existem para a indústria”, compara.
Para ele, as implicações políticas e econômicas de se incorporar o agronegócio no mercado regulado também parecem influenciar a decisão. “Nós somos um país muito pautado nas exportações de commodities, e as exportações do agro movimentam muito a nossa economia. Então existe uma preocupação muito grande de gerar algum tipo de política climática que vai impactar exportações, porque isso vai impactar variáveis macroeconômicas como a inflação e o PIB”, explica.
Ainda assim, Leonardo indica que atualmente nenhum outro mecanismo de mercado regulado inclui o agronegócio. “Mas o agro pode mitigar por via de boas práticas agrícolas, como a restauração de pastagem e de floresta e a manutenção de áreas de proteção permanente (APP). Ou seja, você vê que essa mitigação do produtor rural está ligada não só ao mercado de carbono, mas também à implementação do Código Florestal”, afirma o pesquisador.
O novo Código Florestal (Lei 12.651 de 25 de maio de 2012), se adequadamente implementado, será responsável pela redução de 40% das emissões de GEE provocadas pelo desmatamento. Isso é possível porque a legislação obriga os proprietários rurais a resguardar entre
Alguns casos também devem manter Áreas de Proteção Permanente (APP), relacionadas a áreas com serviço ecossistêmico prioritário, como margens de rios, encostas, topos de morros, altitudes elevadas, veredas e manguezais.
“O Código Florestal é único, nenhum outro país tem um código florestal. A figura da reserva legal da vegetação nativa só é exigida no Brasil, nos outros países no máximo tem APP, e ela não é obrigatória, não é um dever do produtor nos Estados Unidos, Austrália, Canadá, por exemplo”, comenta Leonardo Munhoz.
"O produtor rural tem um papel muito grande na preservação de vegetação nativa, mas o problema do Brasil é a implementação das leis."
O processo de monitoramento e fiscalização é dificultoso no País, principalmente quando há desmonte de órgãos ambientais, como ocorreu no durante o governo Bolsonaro. Uma década após a publicação, o novo Código Florestal ainda não alcançou a implementação real.
De 2013 a 2022, os dados do MapBiomas indicam aceleramento da perda de vegetação nativa no Brasil. Cinco anos antes da aprovação da lei (2008-2012), houve uma perda de 5,8 milhões de hectares. Nos cinco anos seguintes (2013-2018), a perda aumentou para 8 milhões de hectares. Até 2022, foram 12,8 milhões de hectares a mais, um aumento de 120% em relação a 2008-2012.
Ao mesmo tempo, o Termômetro do Código Florestal demonstra que apenas 23,8% dos mais de 6,7 milhões Cadastros Ambientais Rurais (CARs) passaram por algum tipo de análise, dos quais somente 0,49% foram validados.
Mais de 42 milhões de hectares de terras cadastradas como imóveis rurais privados apresentam sobreposição com unidades de conservação, terras indígenas, florestas públicas, áreas quilombolas e assentamentos. “A sobreposição indica um grave problema nos registros do CAR, uma vez que essas terras não são passíveis de cadastro”, orienta o relatório.
No Ceará, por exemplo, 38,3% de imóveis rurais estão sobrepostos a Unidades de Conservação (UCs), a Terras Indígenas (TIs) ou a Quilombos.
Os pesquisadores ressaltam a diversidade de instrumentos disponíveis para o Brasil estimular a redução de GEE no âmbito industrial. A própria bolsa de valores brasileira apresenta indicadores relacionados à boas práticas ambientais, como o Índice de Sustentabilidade Empresarial (ISE), criado em 2005. Foi o primeiro do tipo na América Latina, focado em construir uma carteira de ações das 40 companhias mais comprometidas com a sustentabilidade.
Por sua vez, os Títulos Verdes (ou green bonds) são uma estratégia para estimular iniciativas de sustentabilidade econômica no mercado; a emissão pode vir de empresas, governos e organizações multilaterais.
“Não precisa ser só o mercado de carbono”, reforça o professor Luan Santos. “Estamos pensando em ter isso atrelado a outros instrumentos financeiros que possam ajudar no alcance das metas que foram colocadas de descarbonização, de transição energética… Como é que a gente pode juntar tudo isso, para em conjunto alcançar as metas? Essa é a pergunta a ser feita.”