Todo mundo já viu, presencial ou virtualmente, alguma cena de crueldade com os animais. Alguém chutando um gato ou um cachorro na rua, alguém jogando sal em sapos e lesmas e até mesmo gente ostentando macacos-prego como pets. As redes sociais estão recheadas com fotos e vídeos desses momentos, conteúdos que enchem os bolsos de quem os produz.
É o que descobriram pesquisadores do Instituto Nacional da Mata Atlântica (Inma) e do Foz Ecoparque, ao analisarem 411 vídeos no YouTube com crueldade a 96 espécies de animais de 39 países. Os resultados foram publicados na revista científica Biological Conservation em outubro de 2023 e a pesquisa foi antecipada pela Agência Bori.
Apesar de alguns serem claramente dolorosos para os animais, há outros em que a crueldade é invisível. É o caso de vídeos e fotos com animais silvestres como pets, que só puderam chegar às casas humanas após serem arrancados de mães mortas por traficantes e, uma vez no novo lar, são por vezes mutilados (como ao terem os dentes arrancados).
Os conteúdos com pets silvestres são definitivamente os mais lucrativos, gerando mais de 700 mil dólares em monetização. No entanto, o valor não inclui toda a cadeia mercadológica envolvida no tráfico de animais silvestres — ou seja, a lucratividade por trás de um macaquinho usando roupas na internet chega à cifra de bilhões de dólares.
De acordo com a Rede Nacional de Combate ao Tráfico de Animais Silvestres (Renctas), 38 milhões de animais silvestres brasileiros são retirados da natureza por ano. O número é enorme, principalmente ao considerar que nove a cada 10 animais traficados morrem antes de chegar ao consumidor final. Isso não impede o comércio ilegal de animais (o terceiro maior do mundo, atrás apenas do tráfico de armas e de drogas) movimentar US$ 2 bilhões por ano apenas no Brasil.
Os conteúdos não são apenas lucrativos, como também passam pela filtragem do YouTube. Dos mais de 400 analisados, apenas 70 foram retirados pela plataforma. Basta uma simples busca para encontrar vídeos com silvestres como pets, de briga de galos, de resgates encenados e de maus-tratos mais claros, como jogar sal em sapos e lesmas. Há ainda a categoria de animal crushing, nos quais animais são esmagados, geralmente por mulheres nuas ou seminuas, para fins de prazer sexual.
“Foram mais ou menos 50 horas de vídeos. Claro que não são 50 horas de pura crueldade… Mas muitos vídeos ali são horrorosos. Eu fiquei em uma quase depressão durante o processo de análise e quase briguei na rua, sendo bem honesto com você, porque eu vi um cara maltratando um cachorro”, conta o biólogo Antonio Carvalho, líder da pesquisa enquanto trabalhava no Inma.
“O artigo não tem nada de sensacionalismo. Nas descrições dos vídeos, a gente traz pura observação do que a gente viu, sem juízo de valor”, destaca. “Mas não é fácil. Não recomendo ninguém fazer esse tipo de trabalho se não tiver uma estrutura emocional muito bem estabelecida, ainda mais se você for apaixonado pelos animais.”
A monetização no YouTube depende dos anúncios apresentados no começo e no meio dos vídeos. Se o anúncio for assistido por completo, sem pulos, paga-se o valor completo, parte indo para o YouTube, parte para o canal que publicou o conteúdo.
Monetizar também depende de fatores relacionados à audiência constante, como alcançar 10 mil visualizações totais nos vídeos do canal, manter ao menos mil inscritos e quatro mil horas visualizadas por ano.
Do outro lado do cálculo, estão as empresas. Os pesquisadores identificaram que 155 empresas estão financiando 114 vídeos com crueldade animal. Foram 79 canais beneficiados com 1,14 milhão de dólares no total, vindos de muitas empresas com histórico de campanhas eco-friendly e pet-friendly.
“Com esse estudo a gente quer mostrar que empresas que têm compromisso com causas ecológicas, ambientais e de sustentabilidade estão financiando vídeos de crueldade no YouTube sem saber”, reforça Antonio. A pesquisa não pode divulgar quais empresas foram identificadas.
Em nota enviada ao O POVO+, o YouTube afirma que irá analisar a pesquisa. Eles reforçam que os conteúdos publicados na plataforma devem seguir as Diretrizes da Comunidade, pelas quais está proibido mostrar conteúdo violento ou explícito com o objetivo de chocar ou causar repulsa nos espectadores, nem material que incentive as pessoas a cometerem atos violentos.
"Isso inclui conteúdo que mostra abuso animal, como rinhas, conteúdo que exalte ou promova negligência, maus-tratos ou danos aos animais, que simule o resgate de animais e que coloque esses animais em situações perigosas", aponta a plataforma.
Segundo a nota, o YouTube conta com uma combinação de sistemas inteligentes, revisores humanos e denúncias de usuários para identificar materiais suspeitos. Para denunciar, o usuário deve clicar nos três pontos localizados abaixo do vídeo suspeito, à direita, e clicar em "Denunciar". Uma janela com várias opções aparecerá na tela.
A opção "Conteúdo violento ou repulsivo" permite selecionar a categoria de "Abuso de animais". Selecionado o tipo de violência, o usuário poderá indicar o momento exato em que ela ocorre no vídeo e fornecer mais detalhes que sustentem a denúncia. Feito isso, basta clicar no botão Denunciar e a plataforma analisará o caso.
Outro problema é o envolvimento de crianças e adolescentes na produção dos vídeos. Em 61 produções, crianças assistiam ou participavam dos maus-tratos, sendo instigadas pelos responsáveis a machucar os animais. Jogar sal em sapos e lesmas, matar vespas incendiando a colmeia ou assistir abates de animais enfileirados são os tipos de comportamentos influenciados nas crianças e adolescentes participantes.
A manutenção desses vídeos na plataforma também é um problema ao considerar que o algoritmo sugere conteúdos similares para quem já passou por um vídeo com crueldade animal. “Os pais têm pouquíssimo controle a respeito disso. O que é que seus filhos estão assistindo no YouTube? Tem vários exemplos até muito piores de crianças que são mandadas a fazer coisas por esses conteúdos, como o desafio da Baleia Azul de alguns anos atrás”, comenta o biólogo.
Segundo ele, existe uma rede de canais no YouTube focada em convencer crianças a maltratar animais. “E os vídeos em si aparecendo para as crianças geram um sentimento muito variável, depende do tipo”, explica.
Vídeos de macacos vestindo roupas, como pets, são um exemplo de conteúdo que parece inofensivo, mas esconde uma cadeia de tráfico e sofrimento. “Inúmeras pessoas já viraram para mim e falaram que os filhos adoram assistir isso, que acham legal”, relata. “Se os pais estivessem sensibilizados a esse problema, eles diriam: ‘Filho, não assiste. Esse animalzinho fazendo isso está sendo escravizado, ele vai ficar a vida toda dele fazendo esse tipo de coisa’.”
Por outro lado, vídeos com abates e outros tipos de agressão aos animais podem desencadear outros sentimentos nas crianças. “Vídeos com abates, violência e sangue para caramba estão todos liberados no YouTube. Se a criança começa a entrar nesse ciclo do algoritmo, daqui a pouco ela vai começar a ver coisas absurdas”, alerta o pesquisador.
Para identificar quais vídeos configuraram crueldade, os pesquisadores definiram oito categorias de crueldade, divididas em visível e invisível. “A questão toda do trabalho é a exposição da crueldade com animais para entretenimento online”, reforça Antonio. Se o conteúdo está sendo publicado na internet, sem intuito educacional, ele logo presume o entretenimento da audiência. Uma das categorias que melhor definem isso é a de resgates forjados.
A equipe descobriu uma rede de abusadores de cães e gatos no Vietnã, responsável por dopar os animais e forjar diferentes situações de resgate com os mesmos bichos. São vídeos em seis canais que submetem os animais dopados a cenários diversas, tudo para depois encenar um resgate e pedir doações para a suposta organização resgatadora.
“Os caras resgatavam o mesmo cachorro várias e várias vezes, levavam ao mesmo veterinário. Eles dopam o animal e colocam às vezes preso em um saco amarrado, depois jogava no lixo; ou jogava na beira de um rio… Tem um que eles melam com uma tinta vermelha, colocam o cachorro na frente de um carro e dizem que foi atropelado. Tudo mentira”, descreve.
Já para os animais silvestres, a dificuldade em ver a crueldade vem da ausência de contextos sobre a chegada do animal ao mercado pet e até sobre os direitos dos animais. Como a audiência vê um animal com terrário, comida e água, ela considera o contexto seguro.
“As pessoas acham que são pessoas boazinhas que estão preocupadas com o bem estar do animal, mas é muito pelo contrário. A gente vê muitas ligações entre o tráfico de animais e o tráfico de drogas. Muitas pessoas que fazem tráfico de drogas também traficam animais, porque é mais fácil, não dá cadeia e as leis são mais permissivas. Se ele for preso, só vai pagar uma multa administrativa.”
As recomendações para qualquer vídeo com crueldade animal são: não seguir, curtir ou comentar nos vídeos. Mesmo comentários negativos dão engajamento aos canais. Sempre denunciar à plataforma, seja no YouTube ou em qualquer outra rede social. Se o vídeo for produzido no Brasil, denuncie também para a Polícia Civil e para o Ministério Público.
As denúncias sempre podem ser anônimas e serão beneficiadas com a existência de prints, links do vídeo e a identificação (se possível) dos envolvidos na produção.
Ibama Linha-Verde: 0800 061 8080 (De segunda à sexta, das 7h às 19h)
Disque-Denúncia: 181
Foto: Carmem A. Busko/Wikicommons
Emergência: 190
Cetas Ceará: (85) 3474-0001 | Rua Wilson Pereira, 351 - Guajeru
Foto: Tiago Falótico/Wikicommons