"Estive preso e fostes me visitar". A passagem bíblica orientava a pastoral carcerária e o então cardeal dom Aloísio Lorscheider quando da visita que, há 30 anos, acabou em sequestro, dele e de outras 10 pessoas, por mais de 24 horas. A ocorrência expôs as condições do sistema penitenciário e transformou a atuação religiosa dentro dele. Muitas questões mudaram nas três décadas que se seguiram, mais segurança, mais estrutura, mais segregação... muitas outras não.
Era uma terça-feira, 15 de março de 1994, no Instituto Penal Paulo Sarasate (IPPS), desativado em 2013. O equipamento era localizado em Aquiraz, na Região Metropolitana de Fortaleza (RMF), e a visitação da pastoral carcerária era comum. Denúncias de deficiências físicas, maus-tratos, péssimas condições de higiene e falta de assistência médica levaram um cardeal, dois bispos auxiliares e um vigário episcopal — além de um grupo de políticos e jornalistas — a se reunirem com os detentos.
Depois de passar pelas celas, o grupo foi para o auditório e, após os presentes identificarem uma movimentação estranha, uma das cenas que ficaria na história do Ceará e na memória dos envolvidos, pelos próximos 30 anos e mais: o detento Carlos de Souza Barbosa, o Carioca, imobilizando dom Aloísio com uma faca no pescoço. Iniciava-se ali uma negociação entre os detentos e as forças de segurança do Estado.
Depois de 13 horas, com todos os reféns trancados em uma sala de 9x9 metros, houve a fuga em um carro-forte que tinha como destino o Sertão Central, mais precisamente a fazenda dos pais de Carioca, que ficava em Quixadá. Foram 12 horas de estrada, medo, ameaças, calor e, segundo dom Aloísio disse à época, "esperança". Alguns reféns foram liberados no caminho, mas o então cardeal fez questão de ser o último. Assim foi. Na semana seguinte, o representante da Igreja Católica lavou os pés dos detentos do IPPS.
O POVO conta mais uma vez o que aconteceu naquele dia, ouve quem fez parte das ações e questiona sobre as mudanças nesses 30 anos, dentro do sistema penitenciário, na vida das pessoas e na relação entre a religião, o cárcere e seus atores.
"Naquela época não havia a presença de órgãos como Ministério Público (MPCE), Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Defensoria Pública, que fizessem a fiscalização permanente no sistema", pondera o médico Mário Mamede, que na época era deputado estadual.
Depois da factualidade — do sequestro e do Jornalismo (o então fotógrafo do O POVO, João Carlos Moura, estava entre os reféns) —, as manchetes que seguiram aquela semana de março tentavam atribuir motivações e responsabilidades.
"Secretário da Justiça critica trabalho da Pastoral", "Governador culpa ociosidade dos presídios", "Feridos no tiroteio estão em fase de recuperação", "O refém preferido deles era d. Aloísio", "Pastoral carcerária continuará no Paulo Sarasate", "Denúncias de violências no IPPS são antigas" e "Livre, dom Aloísio perdoa presidiários".
Entre as denúncias dos presos e a confirmação da situação, o então governador, Ciro Gomes, afirmou que não concordava com as insinuações de que a rebelião tivesse acontecido em consequência da superlotação. Atribuía a uma possível ociosidade dos detentos. Já o responsável pela secretaria de Justiça do Estado, Antônio Tavares, disse que era preciso refletir sobre o apoio que se dá ao presidiário e ao "bandido".
"Embora sempre se falasse em péssimas condições físicas dos estabelecimentos prisionais, não atribuo aquela rebelião específica ter acontecido por esse fato, mas sim, na ânsia que o preso tem de ganhar a liberdade. E com a influência que sofreram de um preso vindo de outro estado, onde essa modalidade de fuga com reféns era comum", destaca a defensora pública Sandra Dond. No dia 15 de março de 1994 ela foi até o IPPS para dar apoio a outras defensoras públicas que ela achava estarem na rebelião. Ao chegar ao presídio, acabou sendo apontada como "mãe dos presos" e negociadora.
Sandra lembra que informou ao governador Ciro Gomes os crimes cometidos por Carioca, pois já o havia defendido, e a partir dali se tornou um ponto de intercessão entre a Polícia e os presos rebelados, levando alimentação, trocando informações e conduzindo médico para atendimento aos feridos.
"Quando deu uma determinada hora, eu chamei o governador e disse que eles não estavam atendendo às exigências e eu não ia ficar mais me expondo, entrando e saindo".
O sequestro no IPPS foi um divisor de águas no funcionamento do sistema penitenciário. O cenário, ao mesmo passo que é completamente contraditário ao atual em alguns aspectos — principalmente sobre o monitoramento dos direitos humanos —, segue igual nas muitas mazelas que se perpeturam pelas décadas.
"Na minha visão mudou muito e para o pior. O sistema hoje é desumanizado, não existe proximidade que permita o resgate daquela pessoa". A fala é de quem acompanha, há 30 anos, de dentro — ou não mais tanto de dentro —, o sistema penitenciário cearense. Ruth Leite Vieira é coordenadora regional da Pastoral Carcerária no Ceará e já atuava no movimento eclesiástico quando houve o sequestro.
As denúncias sobre maus tratos, precariedade e tortura persistem. Para o médico e ex-deputrado Mário Mamede, toda pessoa presa alimenta o desejo de liberdade. "Quando você considera isso é preciso olhar também para as condições de humanidade que muitas vezes não são oferecidas", pondera. Ele destaca a importância de que haja mais oportunidade de trabalho para os apenados, além de assistência psicólogica e social.
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A defensora pública Sandra Dond é reticente ao analisar as condições do sistema penitenciário atual. Ela foi a primeira mulher a dirigir um estabelecimento penal no Ceará, que foi o Instituto Penal Olavo Oliveira (IPPOO).
"Não tenho cátedra para falar sobre [o assunto], pois não é mais minha área de atuação. Mas repito o que sempre escuto, que a política de administração penitenciária ficou mais rígida, menos voltada para a pessoa do preso, visando muito a disciplina dentro das unidades".
O POVO solicitou entrevista com alguma fonte da Secretaria de Administração Penitenciária e Ressocialização (SAP) para falar sobre as mudanças no sistema nesses 30 anos. Até o fechamento deste reportagem, porém, não houve retorno.
No mês seguinte ao sequestro, dom Aloísio Lorcheider voltou ao IPPS para lavar os pés dos detentos. A trajetória do religioso foi acompanhada pelo O POVO, que ainda em julho de 1973 anunciava a chegada do arcebispo gaúcho ao Estado. À época presidente da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), ele se posicionou contra a Ditadura, lutou, esteve envolvido em todas as causas oriundas dos fatores sociais, políticos e religiosos que se imbricavam em um Brasil muito diferente do de hoje.
Crianças, favelados, educação, eleições, seca, inflação, questões trabalhistas, guerra e Igreja. Pelos 22 anos — entre 1973 e 1995 — em que foi arcebispo de Fortaleza e pelos 10 anos em que atuou na Arquidiocese de Aparecida, era sobre esses assuntos que dom Aloísio pregava, conversava, atuava e informava. O envolvimento com as questões que atravessam a religião fez com que ele fosse o principal refém do sequestro de 1994, mas também o real mensageiro sobre o que aquela rebelião significava.
"Naquele momento tivemos a presença de uma pessoa da dimensão pessoal, moral, ética, cívica, religiosa e política que era dom Aloísio. Uma das pessoas mais bonitas que já conheci, do ponto de vista da grandeza humana. Ele representava os direitos humanos porque era parte dessa luta, de forma inseparável", destaca o médico Mário Mamede, que na época do sequestro era deputado estadual e foi um dos reféns.
Dom Aloísio Lorscheider sabia onde e sobre o que falar, se encantava com as demonstrações de fé dos romeiros cearenses e sentava com as autoridades governamentais para mostrar que "defendendo o povo, defendíamos o Brasil".
Mário Mamede lembra que, dias após o sequestro, os reféns se reuniram, no sentido de saber o significado daquele dia para cada um. "Dom Aloísio disse que esperava que aquele acontecimento pudesse trazer alguma contribuição para que as autoridades refletissem que aquela situação — de carência no sistema penitenciário — não poderia continuar".
Da convivência com ele, dom Edmilson Cruz, hoje (quase) centenário e também refém há 30 anos, destaca a leveza. "Dom Aloísio era muito competente e me influenciou. Foi uma convivência que não tem nenhum momento de amargura. Nenhum, nenhum. Tem momentos difíceis, como aquele sequestro lá do presídio IPPS. Naquele momento, dom Aloísio estava sentado numa poltrona no auditório. Ele ficou amarrado na cadeira por arame farpado. E os sequestradores exigindo a pressa para saírem, garantindo que em tal lugar deixariam dom Aloísio. Um deles disse "se não nos atenderem, se preparem para o churrasco", contou em entrevista nas Páginas Azuis do O POVO, em fevereiro.
Dom Edmilson lembra ainda que chegou a duvidar se os reféns sairiam com vida e diz que a maior admiração sobre dom Aloísio foi o fato de ele ter voltado ao IPPS para o lavapés, quando beijou os pés de 12 detentos.
"A serenidade demonstrava que não tinha receio de que algo ruim acontecesse de novo. Após a celebração [quando lavou e beijou os pés de 12 detentos], ele pediu para visitar aquele que o ameaçara de morte. 'Carioca' estava em cela solitária e dom Aloísio quis saber se o estavam tratando bem. Antônio Carlos pediu perdão e ele respondeu que já o tinha perdoado. Nem lembrava mais. Brincou com ele e se despediu como se aquele não tivesse sido o articulador do seu sequestro. Vi ali a grandeza espiritual do arcebispo", detalha a jornalista Rita Faheina, que acompanhara a cerimônia.
Natural de Estrela, no Rio Grande do Sul, Aloísio Lorscheider era filho de Jose Aloysio e de Verônica Gerhard Lorscheider, nasceu em 8 de outubro de 1924, foi ordenado sacerdote em 22 de agosto de 1948 e nomeado bispo em 1962, pelo papa João XXIII. Morreu em 23 de dezembro de 2007, em Porto Alegre (RS).
A atuação da pastoral carcerária junto aos presídios cearenses não é mais a mesma. Transformada pelo medo após o sequestro de 30 anos atrás, perdeu espaço ante o intenso avanço das Igrejas Evangélicas. A atuação que dom Aloísio tanto insistiu em colocar em prática, levando cidadania aos mais vulneráveis, hoje se resume a rezar.
"Nunca mais um bispo foi ao presídio. E isso significava exemplo para a igreja local, para os padres e para os fieis. Há a dificuldade de a própria igreja aderir a essa missão, que gera medo nas pessoas. A sociedade procura outras missões, com crianças, idosos, povo em situação de rua... mas não aos encarcerados", detalha a coordenadora regional da Pastoral Carcerária - CNBB - Nordeste 1, Ruth Leite Vieira.
Ruth conta que, atualmente, a Pastoral não é autorizada a entrar no sistema penitenciário com papel e caneta. A restrição, conforme ela, afeta uma das ações prioritárias do movimento eclesiástico, além da evangelização: defesa intransigente da vida e dos direitos fundamentais. Essa era a premissa de dom Aloísio Lorscheider quando falava sobre direitos e obrigações para dezenas de detentos, há 30 anos.
O papel e a caneta mencionados por Ruth cumprem um objetivo: que os componentes da Pastoral possam anotar o nome do preso, de um familiar, e um número de telefone. "Objetivo é que aquela família se vincule e a gente possa fazer o possível para que se retome a dignidade. E a grande dificuldade é que o sistema só nos permite rezar, que também é uma missão, de elevar a experiência. Mas a experiência espiritual, sem o suporte humano, não tem sentido", afirma Ruth.
Enquanto o braço social da Igreja Católica junto aos encarcerados vai tendo seu alcance diminuído, cresce a adesão de cada vez mais detentos às Igrejas Evangélicas. Para Ruth, há dificuldade de expansão dentro das comunidades. "Esse anseio natural, que é próprio do ser humano, de viver a condição espiritual, não é atendido pela Igreja Católica em se falando de presos. 90% não são de nenhuma religião ou são evangélicos", pondera.
O médico e ex-deputado Mário Mamede entende que essa distância foi resultado do impedimento da prática da Teologia da Libertação — abordagem teológica cristã que enfatiza a libertação dos oprimidos. "E as Igrejas Evangélicas, fundamentalistas e pentecostais, avançaram. E têm uma inserção enorme, sobretudo nas comunidades. Prometem a proteção àquelas pessoas que estão albergadas", pondera.
No atual contexto de atuação das organizações criminosas dentro e fora do sistema penitenciário, só a tutela de uma igreja extingue a obrigatoriedade de os detentos pertencerem a uma ou outra facção.