As relações humanas mudaram e com isso novas organizações familiares também. O que era considerado tradicional, o chefe de família, a cônjuge e os filhos, agora é um dos modelos familiares que vão desde núcleos unipessoais a famílias monoparentais.
Com isso, a mulher assume um novo papel dentro do lar e, atualmente, no Brasil, a maioria é chefiada por mulheres.
As mães estão na liderança de 50,8% das famílias, segundo a pesquisa “As dificuldades das mulheres chefes de família no mercado de trabalho 2023 -IBGE/PnadC”, do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).
Em números, o percentual representa 38,1 milhões de famílias que têm a mãe como principal provedora do domicílio e dos filhos.
Em termos de renda média do trabalho da família, na média, as casas de casais com filho receberam os maiores valores, de R$ 4.987.
Os menores valores foram registrados entre os domicílios monoparentais com chefia feminina (R$ 2.833) e unipessoais femininos (R$ 2.913).
Os arranjos mais vulneráveis são os da chefia feminina com filhos sem cônjuge, principalmente porque a renda do trabalho do domicílio e a renda per capita foram as menores entre os arranjos analisados. Esse tipo de arranjo somou 11,053 milhões de famílias.
É o caso da microempreendedora Gisele Cavalcante Lins, 43, que reside em Fortaleza, no bairro Serrinha, com os quatro filhos - um casal de gêmeos, Guilherme e Gustavo, 21, Gabriel, 14, que é autista, e Willians, 12.
Desde muito cedo, por influência do pai, gostou de trabalhar com vendas. Por volta dos nove anos, o ajudava, em um comércio próprio, a separar as mercadorias para os clientes.
Desde então, não parou mais. Aos 11 anos começou a fazer e vender trabalhos artesanais e na adolescência passou a realizar vendas diretas de Natura e Avon. Depois vendeu o estoque do pai e usou como impulso para ter seu negócio de moda e beleza.
Aos 21 anos foi mãe dos gêmeos. Já tinha perdido um bebê antes. O casamento não deu certo e Gisele assumiu sozinha os cuidados com os filhos e com o lar, em um momento no qual tinha acabado de assumir um financiamento.
Ela conta que, aos 25 anos, a tia mostrou um panfleto do Crediamigo, projeto de crédito do Banco do Nordeste e a orientou a fazer.
“No começo não acreditei, achei que era mentira, mas ela insistiu e fui atrás. Tinha medo de fazer pela questão do grupo, as outras pessoas não pagarem e eu ter de assumir. Mas fiz com minha tia e mais duas amigas. De lá para cá venho fazendo sempre”, detalha.
Durante esses quase 20 anos já trocou de grupos do programa, mas se mantém firme. Foram os empréstimos que fizeram com que ela pudesse ter produtos pronta-entrega e comprar máquinas de costura para fazer uma confecção própria, que hoje já não existe mais.
Hoje, com a renda da venda dos produtos de beleza e roupas, paga secretária, assistente para o filho atípico, água, luz, internet, escolas e terapias. “Eu não teria toda essa força e garra que tenho sem meus filhos e se estivesse casada e o esposo fosse o chefe da família”, reflete.
E sobre o alto percentual de mulheres chefiando lares, 50,8%, a economista da Fundação Getulio Vargas (FGV), Carla Beni, vê um grande problema, já que elas estatisticamente ganham menos.
“E quando você entra no mapa da inadimplência do Serasa as mulheres hoje já passaram os 50% da inadimplência. Veja que a situação é difícil para a mulher, porque ela chefia o lar, ela ganha menos e ela está mais inadimplente. O peso dela é muito maior, vide as políticas públicas, como Bolsa Família e Minha Casa, Minha Vida, serem no nome da mulher”, analisa.
Carla complementa que isso também se aplica desde a liberação do microcrédito, pois a mulher tem uma capacidade maior de esticar o seu orçamento, porque ela tem uma preocupação maior com os filhos.
A economista da FGV ainda cita, como exemplo, o trabalho da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), que foca em duas grandes frentes de políticas públicas para desenvolvimento de mobilidade social. Uma relacionada ao mercado de trabalho e a outra à primeira infância.
“E na primeira infância são dois grandes grupos. O primeiro é o equilíbrio da mulher chefiando os lares, que tem o grande desafio de conciliar a criação dos filhos com o mercado de trabalho. Junto com isso entram políticas públicas nas creches, porque os grandes estudos já mostram que, quanto mais o Estado investe em creche, isso diminui a evasão escolar e a desigualdade social”, destaca e diz que alguns países da Europa pagam pensão para a mulher quando ela se separa para ter um complemento de renda.
Em sua visão, no Brasil faltam políticas públicas específicas e transversais para mães solo que decidem ter seus filhos dessa forma ou, no caso de uma separação, arcar com as despesas e precisar desse apoio.
A doutora em economia e membro da academia cearense de economia, Silvana Parente, também destaca essa evolução das mulheres chefiando os lares. Ela chama atenção para o número de divórcios que tem aumentado no Brasil nos últimos anos. E, ainda, os modelos de famílias estendidas que chegam a reunir até dois núcleos numa mesma família.
“A maioria dessas mulheres é mãe, trabalhadora, empreendedora e assume essa responsabilidade de chefiar os lares em virtude da sobrevivência das famílias e condições de vida no lar", destaca.
No Ceará, o Governo do Estado criou, por meio da Agência de Desenvolvimento (Adece), o Ceará Credi, programa que concede crédito e capacitação para microempreendedores.
Desde sua criação em 2021 até 8 de maio deste ano, auxiliou via financiamento mais de 39.459 mulheres chefes de família. Isso corresponde a 56% do total de mulheres auxiliadas pelo Ceará Credi.
O valor médio de empréstimo foi de R$ 2.494,77 e o montante emprestado no período é de R$ 121.545.034,59. Entre as mulheres que tomaram, 723 foram vítimas de violência.
Assim como a realidade de outras mães solo espalhadas pelo Brasil afora, Suliane Santos, 43, conta que logo no início foi tudo muito difícil para poder criar o Gabriel, 23, a Suane, 22 e a Ruane, 21.
Ela sempre trabalhou fora em atividades e locais variados, como supermercado e callcenter, até que o diagnóstico de fibromialgia a obrigou a se afastar do trabalho. Porém, ainda havia a necessidade de uma renda.
“Hoje eles já estão criados e já sabem se virar sozinhos, mas quando eles eram menores eu tinha que arcar com todas as despesas da casa. Alimentação, aluguel... Me vi nessa situação, aos 38 anos, mas tinha que ter uma renda e eu não tinha como trabalhar fora, de carteira assinada. Foi quando surgiu a possibilidade de ser empreendedora”, relata.
Junto com um casal de amigos, teve a ideia de fabricar sandálias e criar a sua marca, usando o próprio nome. No começo, vendia para os amigos e divulgava nas redes sociais. Por falta de habilidades com as ferramentas, os filhos ajudavam com as fotos e as publicações.
Há cerca de dois anos ela conheceu um programa da Prefeitura de Fortaleza chamado Nossas Guerreiras, que facilitou a sua compreensão de como lidar com o seu negócio e viabilizou crédito para que ela pudesse investir na sua marca.
“Hoje sou microempreendedora com muito orgulho. Ganhei o prêmio Empreender 2023 do Sebrae, que também me possibilitou fazer vários cursos de qualificação. Hoje me considero uma mulher guerreira, vitoriosa e tenho muito orgulho da minha história”, emociona-se.
O valor que tomou de crédito foi todo aplicado em matérias-primas para confeccionar as sandálias. “Ele foi o meu capital de giro inicial e está rodando”, diz. Suliane saiu de uma renda de um salário-mínimo, em 2020 no supermercado, para R$ 3 mil como microempreendedora desde 2023.
A mãe se envaidece quando diz que os filhos estão encaminhados. Gabriel trabalha em uma farmácia e faz faculdade, e Suane estuda Medicina veterinária. Ambos moram com ela e ajudam nas despesas da casa. Já Ruane se casou e trabalha como atendente em uma empresa de plano de saúde.
Aos 52 anos, Maria dos Santos é microempreendedora no Conjunto Palmeiras, bairro em Fortaleza, e produz em sua própria residência artigos para casa. Sozinha criou seus três filhos, João Augusto, 23, Lívia Maria, 20, e Giovana Loreto, 17.
“Tive meus filhos sem casar, assumi essa responsabilidade e eu criei eles com o meu trabalho, trabalhando muito mesmo. Não tinha horário para vender minhas coisas, a hora que o cliente procurasse eu atendia”, relata.
Chegou a ter sua casa assaltada enquanto estava fazendo um bico de bordadeira em um ateliê e os filhos na escola. “Levaram toda a minha mercadoria. Isso ficou marcado na minha trajetória”, recorda-se.
Ao longo da vida, Maria sempre exerceu mais de uma atividade, pois conta que se preocupava que se uma não desse certo, teria a outra fonte de renda para sustentar seus filhos.
“Nunca fiquei com uma coisa só porque tinha esse medo de não ter para suprir as necessidades do mês, as coisas, os pagamentos. Porque, assim, na perfumaria você compra para trabalhar com pronta entrega e é preciso ter o dinheiro para pagar os boletos”, sinaliza.
Atualmente, Maria toma crédito para microempreendedor com o Banco Palmas, pois avalia que os juros são baixos e dá certo pagar com suas atividades. E faz isso há quase vinte anos. Começou no Banco do Nordeste, depois na Caixa Econômica e hoje utiliza o banco social criado na própria comunidade.
Com orgulho, conta que está construindo sua primeira casa própria. Já os filhos, seguem bons rumos. Os três fizeram curso técnico. O mais velho se casou, faz faculdade e “está bem encaminhado”. A filha do meio trabalha na área da Saúde. Já a mais nova está terminando um curso de química e vai para a faculdade.
“Não teria conseguido se não fosse a grande ajuda do meu Senhor, me orientando e me dando graça, força e abrindo as portas. Não foi tranquilo, porque é pesado para uma pessoa ter que arcar com todas as responsabilidades de uma família, mas, olhando para trás, vejo que não doeu tanto”, finaliza.
O protagonismo feminino na relação com os cuidados com a família, com os filhos, acrescentada da ausência da figura masculina em muitos lares, faz com que muitos programas sociais sejam destinados às mulheres como é o caso do Bolsa Família, em que mulheres são responsáveis em 81% das concessões, além do Auxílio Gás e do Minha Casa, Minha Vida.
Assim, paras as "chefas", o aporte financeiro de linhas de créditos bancários, como o Crediamigo e o Crediamigo Delas, do Banco do Nordeste, ou programas de políticas públicas sociais, como os realizados pela Prefeitura de Fortaleza, que acabam sendo a única forma de empreender para arcar com as despesas da casa e dos filhos.
Somente em 2023, o Crediamigo desembolsou R$ 10 bilhões, dos quais 66% foram concedidos para elas.
A atuação no Ceará é bem característica de como se comporta o programa como um todo, tendo atingido um desembolso de R$ 3 bilhões em 2023. Neste ano, até maio, R$ 1 bilhão foi injetado na economia cearense.
O superintendente do Crediamigo, Helton Chagas Mendes, informa que, desde o início, há mais de 25 anos, o Programa Crediamigo é constituído em sua maioria por clientes mulheres e que grande parte dessas empreendedoras possui jornada dupla, conciliando a sustentabilidade do seu negócio com os cuidados do lar e filhos.
"Nossas ações contemplam crédito especializado e acompanhado, no qual o agente de crédito vai até essas mulheres, atendendo em seus lares ou empreendimentos. Temos também uma parcela significativa de clientes mulheres com atividades de subsistência. São empreendimentos tidos como a única fonte de renda de suas famílias. Isso redobra nossa responsabilidade, tanto com o acompanhamento da aplicação do crédito como propiciando assessoria especializada e capacitação”, analisa o executivo.
O Crediamigo disponibiliza produto especialmente destinado a mulheres ou a quem se declara mulher, que é o Crediamigo Delas. O produto apresenta condições especiais como taxas de juros que estão dentre as menores do mercado.
Possui também em seu mix de produtos linha de crédito voltada para capacitação em cursos de formação, tanto para empreendedora como para pessoas que trabalhem em seu empreendimento.
“Temos agenda constante com o Governo Federal através do Ministério das Mulheres, cumprindo um plano de ação da pasta para consecução de políticas públicas voltadas para esse público”, afirma Mendes.
Já a Prefeitura de Fortaleza reconhece a importância desse grupo na dinâmica socioeconômica da Cidade e oferece uma série de programas desenvolvidos visando oferecer suporte e oportunidades para esse público.
Coordenados pela Secretaria de Desenvolvimento Econômico (SDE), os programas Nossas Guerreiras, Costurando o Futuro, Meu Carrinho Empreendedor e Fortaleza Capacita são alguns exemplos.
Somente o Nossas Guerreiras oferece capacitação profissional, consultorias e acesso ao crédito de até R$ 3 mil para mulheres de baixa renda, maiores de 18 anos e que desejam empreender. Até hoje, o programa já beneficiou 11.607 mulheres e liberou mais de R$ 40 milhões.
De acordo com o secretário da SDE, Rodrigo Nogueira, essas políticas públicas são de extrema importância, já que muitas das mulheres estavam sem renda.
“A pandemia foi muito dura para todo mundo e muitas das mães cuidam dos seus filhos sozinhas, algumas até com quadro de depressão. Com esses projetos elas tiveram uma nova chance de recomeçar, de se capacitar e, lógico, ter sua renda e recurso independente do Governo Federal e de outros auxílios”, analisa o titular da pasta.
Nogueira informa que o Costurando o Futuro proporciona oportunidades de capacitação e inserção no mercado de trabalho com ênfase nas habilidades de costura e confecção.
A iniciativa já beneficiou mais de 30 mil pessoas, sendo 95% mulheres, nos bairros Bom Jardim, Vila União, Jangurussu, Vila Velha, José Walter, Cristo Redentor, Conjunto Ceará, Barra do Ceará, Vicente Pinzon, Canindezinho, Mondubim e Pici. Além de uma unidade móvel que oferta cursos para iniciantes.
A expectativa é realizar, até o fim de 2024, a doação de mais de mil máquinas. Vale destacar que, atualmente, o projeto está com um edital aberto para doação de 500 máquinas de costura.
As inscrições podem ser feitas até o dia 20 de maio. A iniciativa conta com recursos do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF).
O Meu Carrinho Empreendedor apoia mães chefes de família que buscam iniciar ou expandir pequenos negócios de rua. Já foram entregues 471 unidades e recentemente, concluiu-se um edital no qual beneficiará mais 110 empreendedoras.
E o Fortaleza Capacita, em parceria com o Sebrae, fornece capacitações para empreendedores. Desde junho de 2021, já qualificou mais de 65 mil profissionais e a expectativa é encerrar 2024 com 120 mil empreendedores habilitados.
Outra entidade que apoia as chefes de família é o Sebrae. Felipe Cidrão, analista da Unidade de Competitividade do Sebrae Ceará, ressalta que a entidade valoriza o empreendedorismo feminino e reconhece as mães chefes de família como um grupo importante que demonstra notável capacidade de balancear responsabilidades familiares com as demandas empresariais.
"Vejo as mães empreendedoras como forma de empoderamento feminino, permitindo que as mulheres ocupem espaços de destaque e protagonismo no mundo dos negócios. Além disso, as mães empreendedoras são consideradas fontes de inspiração para outras mulheres e têm um papel ativo na transformação da realidade local, criando oportunidades de inovação e empregabilidade", declara.
Para ele, habilidades desenvolvidas pelas mães, como organização e gestão do tempo, são vistas como transferíveis e benéficas para o empreendedorismo.
Atualmente, o Sebrae promove programas que apoiam mulheres empreendedoras, oferecendo flexibilidade e recursos para ajudá-las a enfrentar os desafios nos negócios.
Um deles é o programa Sebrae Delas que desenvolve e fortalece a cultura empreendedora entre mulheres, oferecendo apoio abrangente que inclui treinamento e ferramentas necessárias para o sucesso nos negócios.
"Além disso, promovemos uma série de ações para incentivar, apoiar e capacitar mulheres, ajudando-as a superar desafios específicos como a falta de recursos e o equilíbrio entre trabalho e vida familiar. O Sebrae Delas foca em aumentar a probabilidade de sucesso de negócios liderados por mulheres, destacando a importância de uma rede de apoio e mentorias específicas para elas", explica.
A 5ª edição do Pulso dos Pequenos Negócios do Sebrae apontou que as mulheres continuam pedindo menos empréstimos do que os homens, mas melhorou o seu índice de aprovação dos pedidos. Em novembro de 2023, 25% das mulheres pediram empréstimos e desse total, 45% conseguiram, 14% estão aguardando respostas e 41% não conseguiram.