A canção do cantor Djavan com participação da saudosa Cássia Eller, Milagreiro, do álbum de mesmo nome de 2001 remete às festividades de fim de ano. “Agora vamos ter os girassóis / Do fim do ano / E o calor vem desumano / Tudo irá se expandir / Crescer com as águas / Quiçá, amores nos corações”, cantam.
Por outro lado, a promessa do Natal e do Réveillon pode ser vivenciada por algumas pessoas com sentimentos opostos ao clima efusivo da época, como angústia, ansiedade e/ou depressão.
A condição é chamada de “dezembrite” ou “síndrome do fim de ano”. Apesar disso, é um termo informal e a psicologia não reconhece na Classificação Internacional de Doenças de Transtornos Mentais e Comportamentais (CID F).
Segundo Juçara Mapurunga, psicanalista, psicóloga e professora da Universidade de Fortaleza (Unifor), o seu efeito é conhecido em estudos. “Todos passamos por um ritual de transição: fim de um ciclo e outro que vai começar. Diante disto, é comum sentir angústia e nostalgia e, ao mesmo tempo, entusiasmo com tudo o que está por vir", explica.
"Fatores como avaliação do ano que está finalizando, incluindo promessas frustradas, insucessos, perdas e metas inalcançadas podem gerar crises e as pessoas entram em um processo de ansiedade e/ou depressão”, sublinha. Para a especialista, o mês de dezembro abriga um aumento de casos danosos à saúde mental.
De acordo com a professora, para atenuar os sintomas da dezembrite, o primeiro passo é se dar conta que o fim do ano não é o fim de sua vida e que a próxima fase é uma oportunidade de fazer o que ainda não foi feito.
“Tentar se perdoar sobre as coisas que não saíram da forma como era desejado, lembrando que não existe completude e que devemos valorizar o que conseguimos fazer, até mesmo se foi o nosso possível”, tranquiliza.
Conforme a psicanalista, é preciso manter uma rotina de alimentação, sono e exercícios físicos antes das festas. Já durante as celebrações, ingerir álcool com moderação e dar menos importância para falas inconvenientes; diminuir o nível de autocobrança e dizer não, quando for necessário; e não fingir que está tudo bem só para agradar são alguns dos conselhos.
Segundo Juçara, o quadro pode ser grave se já houver outros transtornos mentais, assim como a constância do problema. Nesses casos, o fim do ano pode ser experimentado como um luto, criando-se um ciclo doentio de melancolia, caso o problema seja ignorado, aponta.
A estudante de publicidade e propaganda da Universidade Federal do Ceará (UFC) Marina Mendonça, de 21 anos de idade, é uma das afetadas pela síndrome desde a adolescência. No entanto, não conhecia a nomenclatura antes da entrevista.
O fator cronológico e a confraternização social com familiares são seus gatilhos. “Você acaba percebendo muitas nuances que você não percebia, porque não reuniu aquela gama de pessoas antes. Vem de uma sensação de o tempo estar passando e eu continuo aqui ainda. Acaba se perdendo temporalmente mesmo como uma sensação de inadequação ao tempo em que se vive”, reflete.
Apesar de notar que tem dezembrite, não abordou o tema com seu analista, mas animou-se em tratar o assunto na próxima consulta. Contudo, ela sente que as datas de fim de ano marcam um sentimento nostálgico e um medo do futuro pela angústia de achar que as semanas são imensas e os anos rápidos demais.
A universitária crê que ser filha única de mãe solo colabora para o quadro. Assim, costuma celebrar o Natal com ela e alguns familiares que, segundo Marina, são distantes. Mas divide o sentimento positivo de encontrar pessoas que não via há tempo como um outro lado.
Para a futura publicitária, paralelamente, o Réveillon vem de um contexto alcoólico, geralmente, com os amigos. “Aquele primeiro dia do ano parece que não queria que existisse. Você já entra no ano novo mal”, queixa. Para ela, a compreensão do problema é fundamental.
Em entrevista exclusiva ao O POVO, o psicanalista e professor da Universidade de São Paulo (USP) Christian Dunker define o interesse pela síndrome como um pressentimento acumulado e pela preocupação de uma fase que exige um maior cuidado próprio com as relações e as decisões que, muitas vezes, acontecem neste período.
Segundo Dunker, dezembro é o mês mais procurado por atendimento psicológico. “Temos três momentos de alta exigência para a saúde mental", pontua.
"O Natal, uma festa de família, com retomada de conflitos formativos que ficaram para trás. O Ano Novo, que é uma festa do futuro, onde perspectivamos o que queremos e para onde iremos. E para algumas pessoas, as férias com mudança do modo de funcionamento para suportarmos um presente estendido e com mais contato com nós mesmos. São três tarefas que por si só demandam ajuda”, elucida.
De acordo com o psicanalista, o período comporta também tensões laborais como demissões e balanços empresariais. Além disso, é comum uma avaliação do relacionamento feita por casais, muitas vezes chegando a pensar e anunciar o desejo de separação.
Conforme o professor, as palavras de ordem para lidar são humildade e tolerância. “É muito importante não olharmos para nós mesmos como apenas uma unidade de produção e consumo. Não olhar para si como se fosse uma empresa e sim fazer apreciações críticas transformativas e promessas com uma acuracidade”, indica.
Dunker condena elaborar um balanço em duas horas, chamando de receita para o ano que vem, pois é um esforço que exige meditação, calma e perspectivação lenta do futuro.
“Cuidado com as promessas muito objetivas, porque voltam-se contra você como uma espécie de polícia disciplinadora. É uma relação de dívida. Você está se massacrando, pegando um martelo e dando na sua cabeça”, instrui.
Na esteira disso, a saudade de um ente querido falecido integra uma das motivações para o descompasso com as datas. “O que vai acontecer quando aquela cadeira ficar vazia? Não fugir desse momento, porque é a hora em que lembraremos dessa pessoa de maneira silenciosa, indireta ou pirotécnica", reflete Dunker.
"Contaremos um para o outro, cada um com o seu pedaço de memória, como se fosse o seu presente ofertado e dividido. É um momento de tristeza e alegria. Mas essa mistura de afetos é importante para atravessar e levar aquela pessoa que se foi dentro de nós. Ela precisa se reacomodar. O Natal não vai ser o mesmo e é importante que não seja. Então, regulamos o volume e a extensão da falta”, reflete.
Por sua vez, o psicanalista classifica a solidão como importante de ser vivida, assim como a exaltação maníaca destes períodos. Por consequência, a pessoa excessivamente alegre pode encobrir uma tristeza e ter dificuldade em transformar a solidão em solitude.
Desta maneira, para evitar o desgaste, ele aconselha não realizar determinadas tradições que sejam muito características do finado. “Pode ser fonte para permitir deslocamentos dentro da família. Começa uma briga para descobrir os motivos da porta aberta, do peru não feito ou do arroz queimado. Por que estamos brigando por uma coisa tão pequena? É para esquecermos que a mamãe não está mais”, ilustra.
Segundo Dunker, os sinais preocupantes para atestar um diagnóstico mais grave do ponto de vista mental à dezembrite seriam perturbação do sono, alimentação desregulada, vida sexual demasiadamente ativa ou baixa frequência e instabilidade do humor.
Para lidar com o luto nas atividades, o psicanalista, psiquiatra e professor da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Marcelo Veras orienta não levar-se muito pelo imperativo de ser feliz. Consequentemente, há uma imersão numa cultura que não suporta a tristeza e que nega a morte.
“Você fecha a porta de entrada, mas a tristeza, a morte e as perdas entram pelo basculante da área de serviço”, narra. Para o mundo anglófono, o equivalente ao termo é Holiday Blues (em livre tradução, tristeza de feriado), mas Marcelo diz desgotar do hábito de usar o termo para descrever as dores normais da vida.
Segundo Veras, as redes sociais transformaram-se num prolongamento do narcisismo com poses ensaiadas e a sensação de mostrar sempre bem-estar. Portanto, diz notar um ponto de sofrimento em uma tensão bélica no ambiente virtual. “Nós somos as 60 fotos que não postamos, onde estamos com coentro no dente e aparecendo a barriga”, graceja.
Conforme o professor da UFBA, a saída de um parente do grupo de WhatsApp da família em discussões, na sua maioria, políticas é uma experiência coletiva. Isso indica que a rede social não é feita para escutar o outro e sim para impor a sua presença no mundo.
Para lidar com a dezembrite, ele orienta a procura por acompanhamento psicológico, segundo ele mais eficiente do que o vício em remédios. Ele indica repensar um pouco a medicalização e não deixar-se capturar tanto pelos diagnósticos.
“As crianças hoje nascem com iPads e iPhones desde os sete meses de idade. Depois não conseguem ficar na sala de aula, então, eles têm Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH)? Na verdade, é a sociedade que está hiperativa. Eles só são o reflexo. A doença é a sociedade dando 300 canais para assistir ao mesmo tempo”, pondera.
De acordo com o psiquiatra, o mito de que festa boa é aquela cara tem que acabar. Para isso, rememora uma estadia na França, onde preparou um salmão com uvas para seus amigos, mas o prato acabou caindo ao chão. No entanto, a pizza comprada logo após substituiu a frustração do alimento perdido.
Tradicionalmente, a temporada natalina é marcada pela interação familiar. Na contramão deste pensamento, as pessoas LGBTQIAPN+ desenvolvem outra concepção de família, segundo o ator e fundador da Outra Casa Coletiva, ONG de acolhimento e de moradia da sigla no bairro Benfica, em Fortaleza.
“A árvore genealógica nem sempre reproduz o ambiente de cuidado, afeto e proteção”, explica. Por isso, transferem a idealização para os amigos. Para ele, o Natal tem o clima mais voltado aos laços sanguíneos do que o Réveillon.
Após expulsão de casa depois que assumiu sua sexualidade, o ator dava uma rápida passagem pela casa de suas avós por preferir passar a data na companhia de seu núcleo mais íntimo.
“Eu lembro que eu fazia na minha casa uma ceia com as minhas amigas trans, os meus amigos gays e as minhas amigas lésbicas, porque eram pessoas que não se sentiam à vontade em outro lugar”, relembra. Atualmente, confraterniza com os moradores da ONG.
Segundo o artista, seria interessante pais de filhos LGBTs aproveitarem os festejos para buscarem uma aproximação, caso a relação esteja comprometida. Celebrar o Natal, para Ari, é importante para romper com o entristecimento e não pertencimento no mundo que pode ser sentido por alguns da sigla.
Ele entende o valor de expor um relacionamento homossexual ao levar o namorado para a ceia ou rebater um comentário homofóbico, assim como compreende quem opta por evitar embates durante o dia 25 de dezembro. “Porque uma pessoa LGBT não precisa ser ativista. Ela precisa entender que o fato de existir já vai impor uma resistência inevitável num contrafluxo”, avalia.
Como resolução de fim de ano, almeja que a política pública à população LGBT seja executada no orçamento municipal, estadual e federal com uma rede de proteção aos vulneráveis.
Por sua vez, o fundador da Outra Casa Coletiva apresenta a dicotomia do Ceará ser o estado que mais mata LGBTs no Brasil há três anos seguidos, de acordo com o Anuário da Segurança Pública, ao mesmo tempo em que é o primeiro a ter uma Secretaria da Diversidade, criada em fevereiro de 2023. “Ao ciclo que começa, espero que consigamos contar mais histórias felizes do que tristes”, finaliza.
Roberto Albano é bombeiro civil, corretor e militar do exército e também… Papai Noel do Shopping Benfica, em Fortaleza, atuando há 20 anos e somando 11 anos somente no centro comercial. “Comecei a rezar a Deus para me tornar um Papai Noel”, menciona.
Segundo ele, o que falta nas famílias é a consciência de amor, as confraternizações de verdade e o fim de brigas. Aos que não gostam da data, julga que a procura da origem da própria família para encantar-se novamente com a cerimônia pode ajudar.
O senhor por trás da roupa vermelha enumera seu currículo multifacetado com curso de brigadista de incêndios, grandes eventos e primeiros socorros. Tudo isso para melhor atender as crianças. Adicionalmente, consegue falar com eles em espanhol, inglês, italiano e português europeu.
“Sejam fraternos. Procure o amor no coração, porque é o que prevalece para as famílias se encontrarem. O Natal é a magia da felicidade e da fraternidade”, elenca para evitar um arrependimento do afastamento, quando um familiar morre.