A reportagem a seguir trata de temas como suicídio e transtornos mentais. Se você tem passado por problemas ou sente que precisa conversar, não se isole; você não está só. Na noite de Natal, Ano Novo ou em qualquer um dos 365 dias do ano, ligue 188 ou saiba onde mais pode buscar ajuda no fim do texto.
Há quanto tempo você não desabafa? Luíza (nome fictício para preservar a identidade da fonte) passou um ano inteiro. No Natal de 2020, depois da ceia em família, deitou-se na rede onde costumava dormir e, enquanto lembrava de vários acontecimentos, pôs-se a chorar.
Ela acumulou uma série de perdas durante a pandemia de Covid-19 — familiares, amigos e relacionamentos se foram. Foi um ano particularmente duro e, embora ainda estivesse cercada de vida, se questionava sobre o sentido de tudo aquilo de ruim que lhe aconteceu.
Ao notar que estava em uma crise muito forte, entendeu que precisava de alguém com quem pudesse conversar. Mas quem? Aquele havia sido, sobretudo, um ano solitário. Então lembrou de um serviço de apoio que ouviu falar na faculdade durante o setembro amarelo: o Centro de Valorização da Vida (CVV).
Discou 188 e logo percebeu que iria demorar — uma mensagem dizia que a fila estava longa; era noite de Natal. Luíza notou que não era a única. Resolveu tentar pelo chat do site e, com um pouco de paciência, conseguiu ser atendida.
Ela recorda até hoje o nome da pessoa com quem conversou e o que leu depois de um longo desabafo sobre os descaminhos que lhe conduziram em 2020: “O que você quis dizer é que as grandes perdas minimizam as perdas menores, mas são perdas do mesmo jeito, não é?”, disse Marcilio.
“Me senti entendida, como se ele tivesse conseguido sintetizar o que eu estava sentindo naquele momento. Foi o pontapé para que eu fosse atrás de terapia no ano seguinte, quando consegui emprego. Eu já sabia que precisava, mas nunca pude priorizar por questões financeiras”, conta.
“A gente se sente incoerente com as pessoas ao redor, porque todos estão naquele clima de felicidade. Você se compara com outras pessoas, se cobra por não estar animado, acaba entrando em um espiral que é difícil de sair. Mas aprendi que a dor é algo muito individual, muito particular”, descreve.
Três anos depois, Luíza reflete sobre o que chama de “viver em ondas”: “num momento você está lá em cima; em outro, lá embaixo. Acho que é impossível estar feliz o tempo todo, mesmo que nas redes sociais todo mundo queira mostrar uma vida perfeita. Existem os momentos felizes e os tristes, e acredito que todos nós vamos oscilando nessas ondas”.
“Não deixei de sentir, só dói menos. Continuo encarando essa época como algo muito mais comercial do que sentimental, mas hoje minhas feridas já cicatrizaram um pouco e tento aproveitar esse momento da melhor forma possível, tirando de mim esse peso de ter que parecer feliz quando eu não estou. É o fim de um ciclo mas também o começo de outro”, observa.
Mais um ano começa: para uns, tempo de esperança e expectativa; para outros, apenas mais uma mudança no calendário.
Luíza e boa parte das pessoas de todo o Brasil que aguardavam na fila de espera do CVV junto com ela se enquadram na chamada “síndrome do fim do ano”, também conhecida como “Dezembrite” — quando a empolgação é tomada por melancolia, angústia ou sentimentos que destoam do que se espera para dezembro. Historicamente, nesse período a procura pelo serviço aumenta, em média, 20%.
Especialistas em saúde mental alertam que é comum haver uma alta no número de casos de pessoas em elevado grau de sofrimento, depressivas e com ideações suicidas ou de autolesão no último mês do ano.
Por isso, centrais de ajuda se organizam para ficar de prontidão — principalmente nas noites de Natal e Ano Novo.
O que leva a esse estado, que não é considerado um transtorno e nem possui um diagnóstico reconhecido, são contextos que podem atingir qualquer pessoa.
É o que explica o psicólogo Ivan Nogueira, coordenador das práticas de cuidado do Movimento Saúde Mental Bom Jardim (MSM).
“É muito comum reviver situações que ocorreram ao longo do ano, como perdas, separações, conflitos familiares, avaliação do ano, balanço das conquistas e novas possibilidades para o ano que vem”, elenca.
Alguns sinais de “Dezembrite”
Nogueira ressalta: “é normal que isso aconteça com qualquer pessoa, mas devemos ficar em alerta com idosos, pessoas que estão vivenciando luto recente, que estão desempregadas ou perderam o emprego recentemente, pessoas que receberam diagnósticos de doenças graves ou que estão em tratamento, dependência química e transtornos mentais”.
O psicólogo adiciona que as equipes do MSM são preparadas para acolher essas demandas crescentes, que são principalmente de ansiedade, angústia, tristeza e luto.
“Nesse período, intensificamos nosso acolhimento, a escuta e nossos cuidados individuais e coletivos, com dinâmicas, musicoterapia, arteterapia, meditação, aromaterapia e rodas de terapia comunitária”, demonstra.
“Como esse período influencia mudanças comportamentais que podem resultar na dificuldade de concentração, dor de cabeça, palpitação, insônia, alimentação e abuso de substâncias como álcool e drogas, é importante reforçar o cuidado com alimentação, exercícios e atividades prazerosas que ajudem a liberar endorfina e reduzir os níveis de estresse, além de buscar uma rede de apoio”, orienta.
A psicanalista Tamires Marinho complementa que outras motivações podem contribuir para se estar mais vulnerável durante as festas de fim de ano.
“Pode ser uma situação traumática vivida nessa época, problemas familiares, situações de luto, condições de estrangeiridade, quando você está numa cidade onde você não conhece ninguém, e até questões políticas, pois vivemos um processo de dilaceração das famílias nos últimos anos eleitorais no Brasil”, cita.
“O fim de ano passa a ser um tópico de quase todas as pessoas que fazem terapia, mesmo entre as que amam o Natal. Pessoas LGBTQIAPN+ por conta das perguntas sobre relacionamentos, pessoas gordas por conta da indiscrição de comentários sobre o corpo”, exemplifica.
Marinho, que é psicanalista decolonial e mestranda em Antropologia pela UFC/Unilab, observa uma cobrança relatada por pacientes que são mulheres negras.
“Elas são muito cobradas em relação à família, manutenção da aparência, relacionamentos, profissão, sexualidade. A gente está falando principalmente de situações constrangedoras que acontecem nessas reuniões de família ou de nem sequer ter com quem dividir essa data, com quem performar essa noção de familiaridade, de laço familiar”, relata.
“Se você tem algum problema com essas datas, tente fazer algo que não as transmita como tão importantes assim, porque afinal de contas são só mais um dia no ano e só vai ter um significado se nós damos. Então ressignifique, tente tirar um dia para o autocuidado, encontrar amigos, conversar com alguém que não fala há muito tempo, se leve para passear, faça terapia se for necessário, construa grupos de apoio”, aconselha.
Por não ser considerada uma manifestação grave, de acordo com o psiquiatra Arildo Lima, médico psiquiatra do Centro de Atenção Psicossocial (Caps) em Fortaleza, quem apresenta sintomas ansiosos relacionados à síndrome deve procurar, inicialmente, uma Unidade Básica de Saúde (UBS).
“A unidade vai saber acolher, vai saber resolver e, se for preciso, encaminhar para o Caps. Os Caps são porta aberta, não necessitam de encaminhamento, mas eles são equipamentos para casos mais graves, persistentes e crônicos”, explicita.
Na avaliação do psiquiatra, há estratégias de manejo que podem ajudar: "amigos, família, a própria religião, equipe de trabalho, tudo isso é importante para dar suporte e fazer com que o indivíduo não desenvolva essa síndrome”, ratifica.
O telefone toca, mas não é possível saber quem está do outro lado da linha, o que vai falar ou se vai falar. O que se sabe é que, seja uma conversa reticente ou cheia de pontos e vírgulas, quem liga para o 188 está em busca de ajuda, escuta, acolhimento.
Os minutos de troca podem separar um momento de crise de um extremo fatal e são, muitas vezes, o único espaço de compreensão sem julgamentos que se encontra para aliviar as angústias e os sofrimentos — um peso que pode se tornar maior no fim do ano, quando essas questões costumam ser revisitadas.
A carga pode vir de vários lugares: da ausência de um amigo, da perda de um familiar, do sumiço do animal de estimação, do vazio existencial, da solidão, da vontade de se livrar de dores que parecem ser insuportáveis de se conviver com.
“É possível perceber que o período traz uma carga emocional maior nas pessoas. É uma época em que se busca fazer um balanço de como está a vida e muitas vezes o saldo traz tristeza, frustrações e outros sentimentos que remetem à melancolia”, explica Rejane Felipe, coordenadora geral do Centro de Valorização da Vida (CVV) em Fortaleza.
Ela expressa que “os casos de solidão decorrentes de abandono também parecem ficar mais evidentes. O final de ano é o final de um ciclo e causa um impacto negativo ao perceber-se sozinho, enquanto outras famílias estão se reunindo”.
“Durante esse período há uma maior demanda pelo serviço. Nós buscamos fazer uma força tarefa entre os voluntários, solicitando fazerem horas extras de plantão, pois a fila de espera costuma crescer”, expõe.
Atualmente com 52 voluntários no posto de Fortaleza, o trabalho desempenhado pelo Centro, indica Rejane, é feito em rede: “Estar em rede significa dizer que existe uma central única de telefone que transfere a ligação para os locais que estão disponíveis. Uma pessoa que liga do interior do Ceará pode ser atendida por qualquer localidade onde tenha um posto do CVV no País”.
Essa busca por respostas ou desafogo fez com que o volume de ligações recebidas no terceiro trimestre de 2023 fosse de quase 700 mil contra 651 mil do período anterior.
“Muitas vezes isso é tudo o que a outra pessoa espera: ser ouvido, numa sociedade em que não se tem mais tempo para ouvir o outro”, afirma.
Volume de ligações atendidas pelo CVV de setembro de 2022 a setembro de 2023
Em um dos relatórios nacionais de atividades da iniciativa, o texto destaca: “Muito mais que analisar minutos e horas, devemos entender a questão qualitativa. Muitas vezes, um atendimento mais curto pode ter sido muito mais eficaz”.
“Lidamos com pessoas que querem e precisam conversar. Por isso, não temos como saber, a partir do tempo de duração de uma chamada, se ela foi mais ou menos eficaz, se a pessoa se sentiu mais ou menos acolhida. O mais importante, acreditamos, é a oferta da disponibilidade. Uma questão qualitativa, não quantitativa”, diz o documento.
“A complexidade do serviço prestado pelo CVV requer uma análise que vai além da questão numérica, muitas vezes mais ostensiva a um primeiro olhar. Podemos exemplificar com os casos — não incomuns — nos quais a ligação dura menos de 1 minuto. A pessoa em sofrimento se sentiu suficientemente acolhida pelo simples fato de existir alguém do outro lado da linha? Vale refletir sobre o quanto esse quase-minuto seria menos importante do que os casos de conversas longas”, sinaliza o levantamento.
Tempo de atendimento por faixas em minutos (setembro de 2023)
Os cinco estados brasileiros que mais utilizaram o 188 no trimestre, em números absolutos, são: São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e Bahia — o que é algo esperado em função de serem algumas das unidades da federação mais populosas do País.
Tendência que tem se mantido ao longo dos últimos relatórios, exceto pelo destaque de que, no mês de setembro, o Ceará ultrapassou a Bahia em número de ligações e ficou como o quinto estado em volume de chamados para o CVV.
Quanto à origem das ligações, os cinco DDDs que mais contataram o CVV em abril são 11 (São Paulo capital e região metropolitana de São Paulo), 21 (Rio de Janeiro capital, região metropolitana do Rio de Janeiro e Teresópolis), 31 (Belo Horizonte, região metropolitana de Belo Horizonte e Vale do Aço), 19 (Campinas e região metropolitana) e 85 (Fortaleza e região metropolitana).
Número de chamadas para o CVV por estado em setembro de 2023
Rejane, que também é coordenadora da regional Nordeste do CVV, explica que “essa questão de um estado atender mais que o outro tem diversas variáveis, e uma delas é o número de voluntários, numa lógica de que, se há mais voluntários, há mais disponibilidade para fazer atendimento”.
“Outra variável é o fato de que as ligações não têm um tempo específico de duração, então pode ocorrer de Fortaleza estar recebendo ligações mais curtas do que Salvador. Por estarmos em rede, as ligações são transferidas para os ramais que estão disponíveis”, reforça.
Para a instituição, tão importante quanto oferecer o serviço é conscientizar a população sobre a importância de se prestar atenção aos sentimentos das pessoas mais próximas nesses momentos.
Isso porque, sublinha uma publicação do CVV: “ao nosso redor tudo pode parecer festivo e alegre, mas, internamente, muitas pessoas vivenciam dor e sofrimento que podem ser agravados por essa ‘obrigação de ser feliz nessa época do ano’”.
No livro infantil “A parte que falta” (Companhia das Letras), o poeta, músico e ilustrador americano Shel Silverstein (1930-1999) narra a trajetória de uma figura circular em busca de um pedaço que se encaixe perfeitamente nela para que consiga ser plenamente feliz.
Numa jornada de autoconhecimento, a protagonista percorre altos e baixos enquanto carrega questões existenciais e filosóficas sobre a vida — uma metáfora simples da busca pela felicidade.
Em 2018, ao ter contato com a produção, a youtuber Julia Tolezano, conhecida como Jout Jout, gravou “A falta que a falta faz” para falar sobre a proporção das ausências e o que descreveu como “um belo de um carinho”: “entender a falta, andar com ela, fazer de tudo para preenchê-la, mas saber que ela volta”.
Com mais de 8 milhões de visualizações, o vídeo alcançou uma das maiores audiências do canal e fez o livro infantil ficar em primeiro entre os mais vendidos do Brasil na época. Assista:
Para o psicólogo Rosinaldo Vasconcelos, conhecido como Naldo, que é especialista em clínica psicanalítica e neuropsicologia, os seres humanos são atravessados pela falta.
“Todo ser humano, ao vir ao mundo e inaugurar as vias aéreas pelos seus próprios mecanismos respiratórios, passa a ser dotado de algo fundamental que elucida qualquer condição humana. Quando perde essa condição de plenitude sentida durante todo o processo gestacional e é expulso do paraíso (ventre), há a primeira falta, que traz consigo medo, pavor, desespero, solidão, sensação de abandono e rejeição”, coloca.
“Dessa maneira, podemos considerar que todos nós somos seres faltosos, passando a existir dentro de nós um vácuo. Por isso estamos sempre em busca de tamponar tal lacuna, que nos permeia e nos acompanha até o último dia de nossas vidas”, reflete.
Lidar consigo mesmo e com os outros, conforme aponta o especialista, é lidar com a falta: “Isso, portanto, torna as relações complexas, onde cada um vai exigir do outro ou do mundo aquilo que lhe falta. Eis o grande dilema das crises existenciais”.
Naldo dá o exemplo da falta de um olhar atencioso, um sorriso, um abraço carinhoso, um afago, palavras de afeto, acolhimento, elogios, dentre outros: “O ser humano carrega uma lacuna que vez ou outra tentará ser preenchida. Mas na realidade será apenas mais uma tentativa”.
O psicólogo realça que datas específicas como aniversários, casamentos, Natal e Ano Novo podem gerar reminiscências de abandono, rejeição, vazio, tristeza, solidão, e que “quando essas datas se aproximam, se perde energia e desejo de vida, podendo ter pensamentos ideativos e autodestrutivos. É importante dizer que a pessoa, quando se automutila ou parte para o ato ideativo, não quer dar cabo de sua vida, mas sim da dor e sofrimento”.
Valorização da vida
Caso você precise de apoio emocional, principalmente relacionado à prevenção ao suicídio, procure uma Unidade Básica de Saúde (UBS), os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) do seu município ou entre em contato gratuitamente com o Centro de Valorização da Vida (CVV) pelo número de telefone 188 ou pelo chat disponível no site https://www.cvv.org.br/quero-conversar/.
Em parceria com o Sistema Único de Saúde (SUS), o CVV atua com voluntários que atendem todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo, por telefone, e-mail, chat e voip 24 horas todos os dias.
Em Fortaleza, serviços que ficam disponíveis nesse período próximo às viradas são as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs) e o Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto (HSM), em Messejana.
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