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Mulheres e corpo: as disputas no espelho e os anseios da perfeição
Reportagem Seriada

Mulheres e corpo: as disputas no espelho e os anseios da perfeição

Beleza, juventude, envelhecimento são os temas abordados no quarto episódio da série O que pensam as mulheres. A artista Dami Cruz atendeu ao convite do OP+ para refletir sobre a conquista do envelhecimento acompanhada da dificuldade de ter direito de "parecer velha". Em uma conversa sobre padrão de beleza e corporalidade, a artista trans defende que fazer as pazes com o corpo também é ter saúde mental
Episódio 4

Mulheres e corpo: as disputas no espelho e os anseios da perfeição

Beleza, juventude, envelhecimento são os temas abordados no quarto episódio da série O que pensam as mulheres. A artista Dami Cruz atendeu ao convite do OP+ para refletir sobre a conquista do envelhecimento acompanhada da dificuldade de ter direito de "parecer velha". Em uma conversa sobre padrão de beleza e corporalidade, a artista trans defende que fazer as pazes com o corpo também é ter saúde mental
Episódio 4
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Padrão mesmo é uma mulher comum

O corpo das mulheres é uma constante disputa. Os padrões de beleza flutuam ano após ano, com trends, produtos e as mil e uma possibilidades de intervenções estéticas plásticas. Para além da pressão estética, o corpo feminino também vira campo de batalha quando se discute direitos reprodutivos e a própria definição de gênero.

Se uma mulher rejeita a maternidade (ou melhor, a gestação em si), ela não é "mulher de verdade". E se uma pessoa se entende uma mulher trans, pior ainda, diz a sociedade. A artista cearense Dami Cruz, mulher trans, discorre sobre padrão de beleza, envelhecimento e a máquina que vende corpos impossíveis para as mulheres.

 
Oryporan

Dami Cruz

Estilista e artista

Figurinista, aderecista e cenógrafa cearense, com 40 anos de experiência em criação e execução de figurinos para as artes cênicas e o audiovisual. Dentre seus trabalhos no teatro destaca-se “A Raposa das Tetas Inchadas”, do grupo Teatro Novo. E no audiovisual, os filmes “O Quinze” de Jurandir de Oliveira, “A Lenda do Gato Preto” de Clébio Viriato, entre outros.

 

O POVO+ - Quando se fala das experiências das mulheres no mundo, a conversa sempre acaba entrando na questão do corpo. Mas o que esse corpo significa de fato?

Dami Cruz - Tem uma coisa imposta no meio disso tudo que é um ideal de beleza construído, fabricado e que nunca responde à realidade de quase ninguém. E nós, mulheres trans, ficamos perseguindo essa referência para ter uma passabilidade trans. O que é isso? É o tanto que eu pareço com a mulher, o tanto que eu convenço para as outras pessoas que eu sou uma mulher cis na minha aparência. Essa cobrança é muito forte, porque muitas de nós às vezes até se mata por conta disso. Não no sentido de suicídio, mas de ficar aplicando produtos químicos, silicone, às vezes de forma clandestina, para ficar mais parecida com uma mulher cis.

E na minha idade, eu tenho 65 anos, fica também essa cobrança da pele que já não é mais a mesma. ‘Ah, ela tá tão estranha, envelhecida… Toda despencada.’ Quer dizer, as cobranças são muitas em cima da figura da mulher, e no caso das mulheres trans a cobrança é muito pesada.

Dami Cruz é figurinista e estilista, tendo suas peças autorais em peças teatrais e outros projetos(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Dami Cruz é figurinista e estilista, tendo suas peças autorais em peças teatrais e outros projetos

OP+ - Existe um medo muito grande de envelhecer, ou melhor, de transparecer que você envelheceu. E eu lembro de uma entrevista sua para o Vida&Arte em que a senhora comenta que a expectativa de vida cis está crescendo, e a trans caindo. Como a senhora vê esse envelhecimento do corpo?

Dami - Na verdade, é quase uma comemoração quando tem uma pessoa trans com a minha idade. A gente fica sendo festejada. ‘Como assim resistiu?’ No meu caso, eu resisti a uma ditadura militar, porque eu era uma gay bastante afeminada, e ainda quis ser artista; depois eu resisti a uma epidemia de HIV/Aids, aí depois eu resisti a uma pandemia de Covid-19 que foi no mundo todo, e, nisso tudo, eu consegui vencer toda uma onda de preconceito.

Quer dizer, esse negócio de envelhecer… Na verdade, eu nunca paro para pensar sobre isso. Eu só sei que eu estou velha porque as pessoas me dizem: ‘Ai, eu te admiro tanto, você chegou aqui!’. Eu fui a um encontro no Museu da Imagem e Som (MIS) e tinha uma menina com 30 e alguma coisa já se achando velha, outra com 40 e alguma coisa também já como uma pessoa madura. Quer dizer, essa menina já tava passando um pouco dessa expectativa de vida das pessoas trans que é de 36 anos.

Eu não tenho nem muito tempo para pensar sobre essa coisa da beleza, porque eu sou artista e tenho muitas ideias, muitos planos e projetos. É claro que o meu corpo já não é mais o que eu tinha há 30 anos, mas essa não é minha preocupação principal. De vez em quando, sim, eu olho no espelho e fico bege: ‘Ai, tá muito murcha, a cara tá muito caída’ (risos). Mas eu não fico pensando sempre que eu estou envelhecendo, envelhecer não tem me feito mal.

Eu acho que eu agora escuto mais, falo menos. A gente quando tem uns 20, 30 anos, quer dar a opinião sobre tudo. Hoje eu já fico mais quieta, entendendo mais. Acho que isso é que a maturidade está me trazendo.

 

 

A voz dE.L.A.S: artigos de opinião

 

 

 

 
 

OP+ - E o que a senhora acha sobre performar esse corpo padrão que a sociedade fica imaginando e desejando? Será que é suficiente para definir uma mulher?

Dami - Eu acho que esse padrão que as pessoas resolveram não existe. Um padrão mesmo é uma mulher comum. Inventou-se essa palavra ‘padrão’ como ideal de beleza e isso é uma coisa, para mim, do sistema capitalista. É um comércio, porque a pessoa vai perseguir esse padrão e vai começar a consumir um monte de coisas que o resultado não é 100% nunca, porque já mudou. Quando você começa a perseguir esse padrão é porque você já não tá perto dele.

Se você está bem, se você sabe que seu corpo está tudo ok, você continua vestindo os vestidos na mesma numeração que você sempre existiu, então não tá precisando mexer em nada. Mas quando você começa a perseguir um outro ideal, é porque o seu já saiu, já não é aquele. Quando eu digo querer levantar o meu rosto porque eu acho a minha pele caída e plácida, eu tô perseguindo uma juventude que eu já perdi.

O Ney Matogrosso tem uma música que diz assim: Já fui novo, sim / De novo, não / Ser novo pra mim é algo velho. Então, eu já fui nova e agora parece que eu não posso ser velha, ninguém vai deixar, entendeu? É claro que eu quero ser uma velha bonita. Claro que eu quero ser uma velha arrumada, maquiada, com um bom batom, mas eu não preciso ter a aparência que eu tinha a 30, 40 anos atrás. Isso eu nem perseguiria.

FORTALEZA, CEARÁ, 09-02-2024: Projeto E.L.A.S. Dami Cruz é figurinista e estilista, tendo suas peças autorais em peças teatrais e outros projetos. Dami também fala sobre sua relação com seu corpo, que também é casa. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)     (Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS FORTALEZA, CEARÁ, 09-02-2024: Projeto E.L.A.S. Dami Cruz é figurinista e estilista, tendo suas peças autorais em peças teatrais e outros projetos. Dami também fala sobre sua relação com seu corpo, que também é casa. (Foto: Fernanda Barros/ O Povo)

OP+ - A gente fala bastante sobre preconceito envolvendo o corpo, gordofobia, capacitismo, são todos os termos que já estão entrando no nosso vocabulário de um jeito ou de outro, principalmente na internet. Mas será que a gente avançou no acolhimento desses diferentes corpos ou tá muito na teoria ainda?

Dami - Se for comparar com o que era 40 anos atrás, a gente avançou muito, mas ainda tá muito longe do ideal… Não sei nem se a gente consegue um ideal, mas ainda tem muito o que lutar, o que conquistar. Por exemplo, pessoas trans ainda não têm nenhuma lei que nos proteja diretamente, elas estão ligadas a outras coisas, né?

E isso tudo afeta a nossa saúde mental, porque se eu vou ao médico e ele me trata no masculino, eu já fico com muita vontade de largar aquele consultório. Já é meio caminho andado para o negócio não dar muito certo. E quando eu vou ao médico e a pessoa da área da saúde respeita o meu gênero, já vai mexendo com a minha autoestima. E é claro, isso também colabora para que eu tenha uma saúde mental boa.


 

OP+ - O que as mulheres cis têm a aprender ouvindo e entendendo a luta das mulheres trans?

Dami - Eu acho que nossas maiores aliadas nessa luta têm sido as mulheres cis. Eu lembro que na década de 80, quando eu comecei a fazer um teatro que chamava de transformista, porque eu usava vestido, peruca, e fazia shows, o nosso maior público sempre foram as mulheres. Elas e um certo público gay, mas as mulheres gays e mulheres cis sempre nos acolheram muito bem. Nós éramos, às vezes, convidadas para as atividades da União das Mulheres Cearenses, porque era em frente ao teatro universitário e a gente era convidada para ser atração. Isso era um jeito também delas acolherem a gente, né?

Sabe, outro dia eu vi uma moça indígena falando para uma moça negra, em um podcast, de que elas tinham que caminhar de mãos dadas, o movimento dos indígenas e o negro, para a vitória ser maior. Eu acho que é assim, as mulheres cis e as mulheres trans precisam caminhar juntas. Não é possível com separações, com discriminação.

Dami fala sobre sua relação com seu corpo, que também é casa(Foto: FERNANDA BARROS)
Foto: FERNANDA BARROS Dami fala sobre sua relação com seu corpo, que também é casa

Tem aí um movimento radfem, o radical feminista, que tem perseguido as mulheres trans, tem questionado direitos das mulheres trans, e no final das contas tem até mulheres feministas entrando nessa onda. E aí fica muito estranho, porque é muito perto das pautas da ultra-direita, que nem reconhece o feminismo.

Quando essas mulheres, que são progressistas, que são bacanas, resolvem desconhecer, ignorar e até mesmo questionar os direitos das pessoas e das mulheres trans, elas correm o risco de ficar muito perto dessa direita que no mundo todo está perseguindo os direitos das mulheres.

 

 

Queremos te ouvir!

Que tal responder à enquete abaixo e usar o campo dos comentários para discutir sobre a sua experiência com seu corpo? Você tem uma boa relação com seu corpo? Já teve algum momento em que desejou fazer alguma intervenção estética mais invasiva, motivada por influenciadoras digitais ou por propagandas? Vamos conversar nos comentários!

Expediente

  • Edição O POVO+ Fátima Sudário e Regina Ribeiro
  • Concepção do projeto Regina Ribeiro
  • Reportagem, dados e recursos Catalina Leite
  • Identidade visual Cristiane Frota e Camila Pontes
  • Edição de Design Cristiane Frota
  • Design Camila Pontes
  • Fotografia Fernanda Barros
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A segunda temporada do especial E.L.A.S. convida cinco mulheres e 15 articulistas para conversar sobre maternidade, trabalho, amor, corpo e menopausa