O corpo das mulheres é uma constante disputa. Os padrões de beleza flutuam ano após ano, com trends, produtos e as mil e uma possibilidades de intervenções estéticas plásticas. Para além da pressão estética, o corpo feminino também vira campo de batalha quando se discute direitos reprodutivos e a própria definição de gênero.
Se uma mulher rejeita a maternidade (ou melhor, a gestação em si), ela não é "mulher de verdade". E se uma pessoa se entende uma mulher trans, pior ainda, diz a sociedade. A artista cearense Dami Cruz, mulher trans, discorre sobre padrão de beleza, envelhecimento e a máquina que vende corpos impossíveis para as mulheres.
Estilista e artista
Figurinista, aderecista e cenógrafa cearense, com 40 anos de experiência em criação e execução de figurinos para as artes cênicas e o audiovisual. Dentre seus trabalhos no teatro destaca-se “A Raposa das Tetas Inchadas”, do grupo Teatro Novo. E no audiovisual, os filmes “O Quinze” de Jurandir de Oliveira, “A Lenda do Gato Preto” de Clébio Viriato, entre outros.
O POVO+ - Quando se fala das experiências das mulheres no mundo, a conversa sempre acaba entrando na questão do corpo. Mas o que esse corpo significa de fato?
Dami Cruz - Tem uma coisa imposta no meio disso tudo que é um ideal de beleza construído, fabricado e que nunca responde à realidade de quase ninguém. E nós, mulheres trans, ficamos perseguindo essa referência para ter uma passabilidade trans. O que é isso? É o tanto que eu pareço com a mulher, o tanto que eu convenço para as outras pessoas que eu sou uma mulher cis na minha aparência. Essa cobrança é muito forte, porque muitas de nós às vezes até se mata por conta disso. Não no sentido de suicídio, mas de ficar aplicando produtos químicos, silicone, às vezes de forma clandestina, para ficar mais parecida com uma mulher cis.
E na minha idade, eu tenho 65 anos, fica também essa cobrança da pele que já não é mais a mesma. ‘Ah, ela tá tão estranha, envelhecida… Toda despencada.’ Quer dizer, as cobranças são muitas em cima da figura da mulher, e no caso das mulheres trans a cobrança é muito pesada.
OP+ - Existe um medo muito grande de envelhecer, ou melhor, de transparecer que você envelheceu. E eu lembro de uma entrevista sua para o Vida&Arte em que a senhora comenta que a expectativa de vida cis está crescendo, e a trans caindo. Como a senhora vê esse envelhecimento do corpo?
Dami - Na verdade, é quase uma comemoração quando tem uma pessoa trans com a minha idade. A gente fica sendo festejada. ‘Como assim resistiu?’ No meu caso, eu resisti a uma ditadura militar, porque eu era uma gay bastante afeminada, e ainda quis ser artista; depois eu resisti a uma epidemia de HIV/Aids, aí depois eu resisti a uma pandemia de Covid-19 que foi no mundo todo, e, nisso tudo, eu consegui vencer toda uma onda de preconceito.
Quer dizer, esse negócio de envelhecer… Na verdade, eu nunca paro para pensar sobre isso. Eu só sei que eu estou velha porque as pessoas me dizem: ‘Ai, eu te admiro tanto, você chegou aqui!’. Eu fui a um encontro no Museu da Imagem e Som (MIS) e tinha uma menina com 30 e alguma coisa já se achando velha, outra com 40 e alguma coisa também já como uma pessoa madura. Quer dizer, essa menina já tava passando um pouco dessa expectativa de vida das pessoas trans que é de 36 anos.
Eu não tenho nem muito tempo para pensar sobre essa coisa da beleza, porque eu sou artista e tenho muitas ideias, muitos planos e projetos. É claro que o meu corpo já não é mais o que eu tinha há 30 anos, mas essa não é minha preocupação principal. De vez em quando, sim, eu olho no espelho e fico bege: ‘Ai, tá muito murcha, a cara tá muito caída’ (risos). Mas eu não fico pensando sempre que eu estou envelhecendo, envelhecer não tem me feito mal.
Eu acho que eu agora escuto mais, falo menos. A gente quando tem uns 20, 30 anos, quer dar a opinião sobre tudo. Hoje eu já fico mais quieta, entendendo mais. Acho que isso é que a maturidade está me trazendo.
“Meu corpo existe além de mim”, um dia li essa frase e passei a entender que meu corpo vai muito além de ser um motivo de “olhares tortos”. Corpos com deficiência raramente são vistos como bonitos e possíveis, muitas vezes nos tornando invisíveis em nossa sociedade, seja de forma estética e acessível.
Já me anulei muito com comentários e piadinhas, já cheguei a me esconder com roupas por exemplo na praia, evitando assim julgamentos, mas não é justo. Daí acordo e vejo que pra nada existe um padrão e tento me mostrar com conforto, segurança e no meu limite e assim, com meu corpo, como paratleta de natação, vou longe nas minhas braçadas.
Através dele, nas piscinas da vida, conheço novos lugares e culturas, pessoas incríveis e inspiradores, um mundo muito mais além de um simples corpo. Em meu mundo paralímpico, sinto leveza em esbanjar meu corpo, somos de uma forma ou de outra iguais, onde uso de uma liberdade completa e audaciosa, pensando em grandes competições e vitórias, o que me traz uma felicidade genuína.
Grandes exemplos de vida encontrei em meu viver, no esporte e na política, como a Vice-governadora, Jade Romero, minha técnica Heloísa Stangier e o Vereador Júlio Brizzi, três grandes incentivadores do esporte paralímpico. Existem diferentes corpos, mas todos são lindos. Afinal, eles nos proporcionam as melhores experiências, é nele onde habito. “O corpo sente o que a mente acredita”.
Clara Carvalho é cearense, acadêmica do 3° semestre do curso de direito e atleta de natação paralímpica na categoria S7. Esporte esse que me proporciona várias oportunidades e vitórias, como participar do Camping Escolar 2019, ganhar medalha de bronze no Campeonato Brasileiro Loterias Caixa 2019, e fazer parte da semana de treinamento junto a seleção paralímpica brasileira.
A frase é parte da música “I’m Creep”, da banda Radiohead. A canção fala traz um eu lírico com baixa autoestima, em que repetidas vezes diz ser estranho demais para merecer a pessoa amada. Apesar de conhecer a música há algum tempo, as letras só me tocaram de fato quando Rocket Racoon (Bradley Cooper) surge em uma das primeiras cenas de “Guardiões da Galáxia Vol. 3” (2023) cantando-as de um modo tão pessoal que a dor do personagem chegava a ser palpável e eu entendi bem a razão dessa intensidade.
Para quem não conhece o personagem, Rocket é um guaxinim que foi submetido a diversos experimentos para adquirir um aspecto humanóide. Por isso, o super-herói dos quadrinhos da Marvel fala, anda sobre duas patas e tem uma inteligência considerada alta mesmo para um ser humano. O bizarro é que para torná-lo humano, o Alto Evolucionário constantemente o desumaniza. É nesse ponto que minha dor encontra um ponto em comum com um personagem de HQs personificado em CGI.
Mesmo sendo um animal (e em teoria não existindo na realidade), Rock traz vivências semelhantes as vividas por pessoas negras. Desde o momento em que ele é feito de cobaia até como isso influencia na sua relação com seu próprio corpo. Por isso, o trauma dele se encontrou com o meu na sala de cinema. Não porque fui submetida a experimentos contra a minha vontade, mas por ser uma pessoa preta que compartilha o histórico de ser desumanizada muito antes de nascer.
A dor de Rock era por simplesmente não ter a sua existência considerada válida. É uma dor que acompanha a população negra, principalmente mulheres. Além de sermos alvos constantes de violência verbal, física, somos hipersexualizadas. Não somos consideradas humanas e nem dignas de amor, como o eu-lírico de “I’m creep”, somos vistas como uma criatura estranha.
Eduarda Porfirio é fundadora e criadora de conteúdo do Quilombo Geek, atua como editora e produtora de conteúdo do portal. Também é repórter do Vida&Arte - O POVO.
Para se amar é necessária uma dose de rebeldia. É preciso bater o pé contra narrativas que historicamente tentam nos colocar contra nós mesmas, disseminando padrões inalcançáveis de beleza. A performance da feminilidade padronizada nesse contexto tende a nos convencer a direcionar nossa energia para fora, sobrando pouco ou quase nada para nossa jornada de autoconhecimento.
Como trancista, compreendo que a feitura de um cabelo exige uma criatividade que é motor para criação de um lugar seguro que nos distancia desses estigmas. Começa de forma imaginária, volátil e aos poucos, trança por trança, percebo que a rede estabelecida é concretizada como um refúgio das opressões cotidianas.
Para que eu possa me amar preciso primeiro entender quem sou e ser capaz de olhar para si com carinho vai muito além de apenas se sentir bonita. É sobretudo exercitar o autoamor e a independência, a estética vem depois. Preciso me desvincular do que esperam de mim para descobrir qual é a minha própria expectativa sobre o meu corpo.
Compreendo que é através da relação com o cabelo que consigo olhar para mim, para os que me antecedem e ainda explorar o novo. Descobri que me acho bonita quando conto minha história porque acredito que não há nada mais lindo que a coragem de ser quem sou. Logo, minhas decisões estéticas costumam estar alinhadas à minha ancestralidade, mas também à expectativa de futuro que tenho para mim e para meus semelhantes.
Isabelle Davis é a trancista fundadora do Estúdio Nzinga (2017) localizado em Fortaleza - CE. Trabalha com técnicas diversas do trancismo e também presta consultorias. Natural de Rondônia, a hairstylist faz do cultivo capilar ferramenta de lembrança e criação de rotas estético-imagéticas pertinentes principalmente à diáspora negra afro caribenha na Amazônia Ocidental.
Aqui vão três indicações de livros para refletir sobre corpo e mulheres:
O mito da beleza: Como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres
Em O mito da beleza , a jornalista Naomi Wolf afirma que o culto à beleza e à juventude da mulher é estimulado pelo patriarcado e atua como mecanismo de controle social para evitar que sejam cumpridos os ideais feministas de emancipação intelectual, sexual e econômica conquistados a partir dos anos 1970.
Nomi Wolf confronta a indústria da beleza, tocando em assuntos difíceis, como distúrbios alimentares e mentais, desenvolvimento da indústria da cirurgia plástica e da pornografia.
Autora: Naomi Wolf
Editora : Rosa dos Tempos; 18ª edição (7 junho 2018)
Capa comum : 490 páginas
Nesta autobiografia escrita com sinceridade impressionante, a autora best-seller Roxane Gay fala sobre como, após sofrer um abuso sexual aos doze anos, passou a utilizar seu próprio corpo como um esconderijo contra os seus piores medos. Ao comer compulsivamente para afastar os olhares alheios, por anos Roxane guardou sua história apenas para si. Até conceber este livro.
Autora: Roxane Gay
Editora : Globo; 1ª edição (27 outubro 2017)
Capa comum : 272 páginas
Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação
As acadêmicas feministas desenvolveram um esquema interpretativo que lança bastante luz sobre duas questões históricas muito importantes: como explicar a execução de centenas de milhares de “bruxas” no começo da Era Moderna, e por que o surgimento do capitalismo coincide com essa guerra contra as mulheres. Segundo esse esquema, a caça às bruxas buscou destruir o controle que as mulheres haviam exercido sobre sua própria função reprodutiva, e preparou o terreno para o desenvolvimento de um regime patriarcal mais opressor.
Autora: Silvia Federici
Editora : ELEFANTE EDITORA; 2ª edição (26 junho 2023)
Capa comum : 480 páginas
OP+ - E o que a senhora acha sobre performar esse corpo padrão que a sociedade fica imaginando e desejando? Será que é suficiente para definir uma mulher?
Dami - Eu acho que esse padrão que as pessoas resolveram não existe. Um padrão mesmo é uma mulher comum. Inventou-se essa palavra ‘padrão’ como ideal de beleza e isso é uma coisa, para mim, do sistema capitalista. É um comércio, porque a pessoa vai perseguir esse padrão e vai começar a consumir um monte de coisas que o resultado não é 100% nunca, porque já mudou. Quando você começa a perseguir esse padrão é porque você já não tá perto dele.
Se você está bem, se você sabe que seu corpo está tudo ok, você continua vestindo os vestidos na mesma numeração que você sempre existiu, então não tá precisando mexer em nada. Mas quando você começa a perseguir um outro ideal, é porque o seu já saiu, já não é aquele. Quando eu digo querer levantar o meu rosto porque eu acho a minha pele caída e plácida, eu tô perseguindo uma juventude que eu já perdi.
O Ney Matogrosso tem uma música que diz assim: Já fui novo, sim / De novo, não / Ser novo pra mim é algo velho. Então, eu já fui nova e agora parece que eu não posso ser velha, ninguém vai deixar, entendeu? É claro que eu quero ser uma velha bonita. Claro que eu quero ser uma velha arrumada, maquiada, com um bom batom, mas eu não preciso ter a aparência que eu tinha a 30, 40 anos atrás. Isso eu nem perseguiria.
OP+ - A gente fala bastante sobre preconceito envolvendo o corpo, gordofobia, capacitismo, são todos os termos que já estão entrando no nosso vocabulário de um jeito ou de outro, principalmente na internet. Mas será que a gente avançou no acolhimento desses diferentes corpos ou tá muito na teoria ainda?
Dami - Se for comparar com o que era 40 anos atrás, a gente avançou muito, mas ainda tá muito longe do ideal… Não sei nem se a gente consegue um ideal, mas ainda tem muito o que lutar, o que conquistar. Por exemplo, pessoas trans ainda não têm nenhuma lei que nos proteja diretamente, elas estão ligadas a outras coisas, né?
E isso tudo afeta a nossa saúde mental, porque se eu vou ao médico e ele me trata no masculino, eu já fico com muita vontade de largar aquele consultório. Já é meio caminho andado para o negócio não dar muito certo. E quando eu vou ao médico e a pessoa da área da saúde respeita o meu gênero, já vai mexendo com a minha autoestima. E é claro, isso também colabora para que eu tenha uma saúde mental boa.
OP+ - O que as mulheres cis têm a aprender ouvindo e entendendo a luta das mulheres trans?
Dami - Eu acho que nossas maiores aliadas nessa luta têm sido as mulheres cis. Eu lembro que na década de 80, quando eu comecei a fazer um teatro que chamava de transformista, porque eu usava vestido, peruca, e fazia shows, o nosso maior público sempre foram as mulheres. Elas e um certo público gay, mas as mulheres gays e mulheres cis sempre nos acolheram muito bem. Nós éramos, às vezes, convidadas para as atividades da União das Mulheres Cearenses, porque era em frente ao teatro universitário e a gente era convidada para ser atração. Isso era um jeito também delas acolherem a gente, né?
Sabe, outro dia eu vi uma moça indígena falando para uma moça negra, em um podcast, de que elas tinham que caminhar de mãos dadas, o movimento dos indígenas e o negro, para a vitória ser maior. Eu acho que é assim, as mulheres cis e as mulheres trans precisam caminhar juntas. Não é possível com separações, com discriminação.
Tem aí um movimento radfem, o radical feminista, que tem perseguido as mulheres trans, tem questionado direitos das mulheres trans, e no final das contas tem até mulheres feministas entrando nessa onda. E aí fica muito estranho, porque é muito perto das pautas da ultra-direita, que nem reconhece o feminismo.
Quando essas mulheres, que são progressistas, que são bacanas, resolvem desconhecer, ignorar e até mesmo questionar os direitos das pessoas e das mulheres trans, elas correm o risco de ficar muito perto dessa direita que no mundo todo está perseguindo os direitos das mulheres.
Que tal responder à enquete abaixo e usar o campo dos comentários para discutir sobre a sua experiência com seu corpo? Você tem uma boa relação com seu corpo? Já teve algum momento em que desejou fazer alguma intervenção estética mais invasiva, motivada por influenciadoras digitais ou por propagandas? Vamos conversar nos comentários!
A segunda temporada do especial E.L.A.S. convida cinco mulheres e 15 articulistas para conversar sobre maternidade, trabalho, amor, corpo e menopausa