Imagens áreas da Avenida Paulista, em São Paulo, na noite do dia 30 de outubro de 2022, captavam uma mulher alegre e saltitante em cima de um trio elétrico rodeado de uma multidão. Sua persona já era conhecida e sua animação genuína eram um retrato do sentimento compartilhado pelos brasileiros que a cercavam. Ao seu lado, um marido cuidadoso a alertava sobre a agitação e pedia cuidado, temendo uma queda.
A mulher animada, de roupa vermelha, cabelos castanhos soltos e um carisma quase tangível, era Rosângela Lula da Silva, a Janja, o nome daquele momento. Ao seu lado, o marido e recém-eleito — pela terceira vez — presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Eles estavam ali para comemorar, junto aos eleitores, o resultado do segundo turno acirrado entre Lula e Bolsonaro.
Na ocasião, Lula discursou sobre a vitória para os apoiadores que lotavam a via. Naquela comemoração, Janja não falou ao microfone; permaneceu apenas ao lado do marido, parada e sorridente.
Aquela imagem da primeira-dama era o que, a partir daquele dia, apoiadores, membros do governo, opositores e observadores esperavam para o futuro. Uma típica primeira-dama: importante, mas nem tanto; famosa, mas nem tanto; protagonista, mas nem tanto.
Os episódios subsequentes quebraram as expectativas que as alas mais conservadoras da política e da opinião pública haviam colocado sobre Janja. Como prometido, ela chegou para ser uma primeira-dama diferente das anteriores e logo seu nome se tornou um dos mais comentados na política nacional.
O comportamento ousado a colocou no centro de episódios polêmicos que efervesceram a opinião pública. E os ataques escalaram. Em dois anos de mandato de Lula, a popularidade de Janja caiu quase pela metade, segundo pesquisa realizada pela Quaest. Conforme os dados levantados, em fevereiro de 2023, 41% dos eleitores a avaliavam positivamente. Esse número caiu para 22% em dezembro de 2024.
A queda drástica na popularidade acendeu um alerta para apoiadores e oposição. É realmente possível que as ações da primeira-dama atrapalhem os planos de poder do marido? As críticas direcionadas a ela estão dentro do limite respeitável, naturais da exposição, ou o que Janja sofre diariamente se configura como machismo?
O POVO+ convidou jornalistas e pesquisadoras da atuação feminina na política para analisar a natureza e a intensidade das críticas direcionados a Janja e concluíram: os desacertos da primeira-dama servem de condutores para o machismo.
Marina Solon, jornalista e doutoranda em comunicação pesquisando violência contra mulheres, explica que as críticas direcionadas a Janja passam a se configurar como machismo quando vão pela via do gênero.
“Tentam desqualificar a presença dela no espaço de poder justamente por ela ser mulher. Então ela é tida como inconveniente, inábil; qualquer erro dela é tratado como algo que não ocorreria com um homem, como se fosse algo intrínseco ao seu gênero”.
A pesquisadora lembra de episódios em que a primeira-dama chegou a ser rotulada por sua aparência e virou alvo de zombaria.
Um exemplo disso ocorreu quando o deputado federal Carlos Bolsonaro (PL), em tom machista, comparou a vestimenta da primeira-dama Janja com a capa de um botijão de gás. O deputado, em uma rede social, questionou a escolha da roupa da primeira-dama. “Michael Jacobs”, ele escreveu em alusão ao roteirista da série de TV Família Dinossauro. O nome serve de trocadilho com o do badalado estilista Marc Jacobs.
Para Raquel Machado, professora de Direito Eleitoral da Universidade Federal do Ceará (UFC) e coordenadora do grupo Ágora, que integra o Observatório de Violência Política contra Mulheres, Janja não está sofrendo apenas machismo. “São preconceitos que combinam a violência de gênero com preconceitos ideológicos”, comenta.
Socióloga, feminista e devota de Iansã, divindade das religiões afro-brasileiras, Janja representa a diversidade em um país cheio de preconceitos. Nas redes sociais não é difícil encontrar ofensas pessoais e sexistas e, principalmente, desinformação e fake news que, em um fenômeno circular, geram mais violência.
Jornalista, doutoranda em Comunicação pela UFC e integrante do podcast As Cunhãs, Hebely Rebouças avalia que a falta de clareza sobre o papel da primeira-dama é um incentivador de ataques.
“A posição de primeira-dama não tem uma definição formal. Tradicionalmente na história política, as primeiras-damas ocupavam um lugar de cuidado. Elas tinham alguma inserção nos governos de seus maridos, mas sempre em lugar de coadjuvante”, comenta.
“Estudos na Ciência Política sobre as primeiras-damas — e estes nós temos muito mais nos Estados Unidos do que em outros países — sempre dão ênfase à ideia de que a ausência desse papel oficial de representação política das primeiras damas coloca tensões para esse lugar”, é o que explica Monalisa Soares, professora da UFC e coordenadora do Laboratório de Estudos sobre Política, Eleições e Mídia (Lepem).
Ao longo da história política do Brasil, algumas primeiras-damas desempenharam papéis sociais, ficando à frente de ações beneficentes ou jogando luz em causas minoritárias. Durante muitos anos, a imagem das primeiras-damas esteve sempre atrelada ao assistencialismo.
Primeiras-damas mais recentes, incluindo Janja, deram continuidade as ações sociais atribuídas as mulheres dos presidentes. Apesar de importantes, as atividades não se configuram como cargo, não têm remuneração nem função administrativa no governo. No entanto, o dinheiro para execução dos trabalhos voluntários sai da verba destinada ao poder executivo, ponto que gera debates.
“Primeiras-damas com muita influência pública tendem a ter menor popularidade. É como se publicamente a elas coubesse um lugar mais reservado, e isso revela um certo machismo”, explica Monalisa Soares.
Nas eleições presidenciais de 2022, a forte presença de Janja na campanha do marido ascendeu holofotes sobre sua participação na agenda politica de Lula, principalmente na comunicação.
Ela foi responsável por aproximar o futuro presidente às redes sociais e por criar conexões com criadores de conteúdo digital mais progressistas, como o YouTuber Felipe Neto. Foi ela quem insistiu e conseguiu levar Lula para o TikTok, para mais próximo dos eleitores jovens.
No primeiro vídeo publicado pelo marido na rede de vídeos curtos, gravado em um comício eleitoral, Janja canta o jingle Sem medo de ser feliz, utilizado por Lula na campanha de 1992 e reformulado como um presente de casamento. No vídeo gravado por Lula, ela aparece sorridente, animando o público presente, incentivando-os a cantar também.
Não se pode identificar ao certo em que momento Janja começou a perder popularidade, inclusive entre alas da esquerda. É possível que atitudes que repercutiram na mídia tenham gradativamente a transformado em um incômodo para quem a companhava. No entanto, as ações errôneas da primeira-dama seria suficientes para gerar os ataques sofridos por ela?
As atividades de Janja, atual primeira-dama, não se distanciam muito das desempenhadas por suas antecessoras. Contudo, é inegável que sua presença na mídia tem sido mais constante, o que, como aponta a especialista Monalisa Soares, pode atrair um aumento nas críticas.
Para a jornalista Hebely Rebouças, a exposição pública de Janja a torna vulnerável às críticas, mas ela destaca que, em muitos casos, a mídia erra ao dar dimensões exageradas a determinadas situações. “É natural que suas ações sejam noticiadas, mas o problema está no tratamento desproporcional que elas recebem”, observa.
De acordo com as entrevistadas, há uma combinação de fatores que explicam o foco constante em Janja. Além da estrutura tradicionalmente patriarcal da sociedade, que coloca a imagem masculina como central, há também um descontentamento com o papel e as funções que ela ocupa como primeira-dama, intensificadas pelo apelo midiático, o que impulsiona os ataques que recebe.
>> Ponto de vista
Por Regina Ribeiro*
A escritora Danuza Leão causou um rebuliço com a crônica “Entre Aspas” em que chamava dona Marisa Letícia, primeira mulher do presidente Lula, de cafona, aliás o casal. O motivo foi uma festa junina, em 2004, durante o primeiro mandato do petista.
O tradicionalismo do “arrariá” presidencial ofendeu a socialite paulistana, ex-modelo, ex-mulher de Samuel Wainer, poderoso homem da mídia brasileira de meados do século passado, irmã da adorada cantora Nara Leão, ícone da Bossa Nova. Danuza chamou a festa de dona Marisa de “breguice e jeca”. Disse que Lula e o governo eram autoritários por ter pedido aos convidados para irem vestidos a caráter à festa caipira.
A reação foi certa. Houve muitas réplicas. Danuza explicitou seu preconceito de classe, disseram uns. Expôs o que a elite paulista tinha em mente, disseram outros. Ela nunca se desculpou e continuou considerando o governo Lula brega. Nunca poderia imaginar que acharia a Danusa inofensiva diante do que eu vejo acontecer com a socióloga primeira-dama Rosangela Lula da Silva, a Janja.
Bem diferente da dona Marisa, Janja expõe o que pensa, dá opinião no governo e fora dele, frequenta reuniões de Estado, escuta, faz mediações. É tida como “inconveniente" nos arredores políticos do presidente. A campanha de ódio contra a primeira-dama nas redes sociais é injustificável. Mas, não apenas nas redes sociais. O jornal Estado de São Paulo escreveu em novembro último um editorial praticamente mandando Janja calar a boca. Foi um dos piores textos que já li na vida contra uma mulher. Autoritário e misógino. Em janeiro de 2025, já publicou mais dois artigos contra a primeira-dama.
O que mais me constrange, porém, é que boa parte dessa campanha de ódio massiva vem de mulheres. Na última semana, por exemplo, Janja foi comparada à Melania Trump em termos de elegância e estilo. Vi vários posts odiosos, desonestos, desinformativos contra a Janja em perfis femininos. Será que essas mulheres não percebem que quando fazem isso, estão atacando a si mesmas e sua condição feminina? Uma coisa é criticar o trabalho de uma mulher, outra bem diferente é atacá-la na sua condição de mulher.
A gente sabe que existe uma infinidade de perfis falsos por aí sendo alimentados por motivos pouco saudáveis. Será que as mulheres que atacam e xingam Janja nesses perfis desconfiam que tal prática faz grande mal à sociedade como um todo, quando apostam no ódio como possibilidade de existir no mundo?
Até pesquisas de opinião resultam em notícias ruins contra Janja. Desde quando primeira-dama é avaliada em pesquisas neste País? Por que essa mulher incomoda tanto e causa tanta reação? Até o momento, ela tem sido corajosa e firme. Apoiada por muitos. No entanto, percebo que estamos num momento ímpar da civilização (des)humana e acredito que ódio demais não pode resultar em boa coisa.
* Regina Ribeiro é jornalista, colunista do O POVO+ e mestra em literatura pela Universidade Federal do Ceará