De onde vem o medo da guerra? Para alguém no epicentro de um conflito, a pergunta pode soar absurda; como não temer a perda e a ruína? Mas, para quem somente a conhece pelas palavras dos outros, pelas imagens ou pelos livros de história, onde nasce esse medo?
Nas últimas décadas, temos assistido à midiatização de inúmeros conflitos: a Guerra Civil na Síria (2011–presente), o conflito no Iêmen (2014–presente), a guerra na Ucrânia (2022–presente), o embate entre Israel e Hamas (2023–presente), entre tantos outros.
Alguns ganham mais atenção internacional; outros, muito menos. Navegar pelas redes sociais é a certeza de se deparar com alguma atualização sobre os rumos de um conflito ou com a especulação sobre um possível confronto global iminente.
Autores clássicos como Thomas Hobbes e John Locke, ao discutir o estado de natureza e a necessidade do Estado, ligam a criação da sociedade a uma busca por segurança e proteção contra o medo de um estado de guerra de todos contra todos.
Ambos partem do senso inicial de que o medo é inerente ao homem. Característica entendida como um possível fator motriz que está presente e desencadeia a guerra, atuando como um impulso para a luta pela sobrevivência em um ambiente hostil.
No entanto, existe outro tipo de medo presente na atualidade. No estudo Guerra, medo e direitos humanos: uma análise da complexa ordem mundial atual, os autores refletem sobre o medo como ferramenta política.
Sendo utilizada, manipulada e propagada para justificar ações estatais, criar inimigos e manter o controle social, realimentando-se em um ciclo descrito como um “estado de guerra global permanente”.
Por meio dessa percepção, há um conhecimento de que sempre existe um inimigo, um perigo iminente, algo que deve ser combatido e, para tal, a manutenção de práticas e governos se faz necessária.
Assim, guerras moldam países, regimes, culturas e costumes. Presenças do nosso dia a dia que, no automático da vida, nem percebemos. Você sabia que até o tradicional doce brigadeiro pode ter surgido por influência de uma guerra?
O texto O mais popular dos doces brasileiros: história crítica do brigadeiro, publicado na revista do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), explica que a origem do doce é nebulosa, quase mítica, mas elenca algumas possibilidades.
A história mais difundida sugere que o brigadeiro surgiu durante a campanha presidencial do brigadeiro Eduardo Gomes em 1945, ano do fim da Segunda Guerra Mundial. Suas eleitoras, a fim de angariarem fundos e votos, teriam criado o doce para distribuir nos comícios eleitorais.
Em um cenário de pós-guerra, com a escassez de produtos como leite fresco, ovos, amêndoas e açúcar, as “santas mãos pioneiras”, não identificadas nos registros originais, teriam cozinhado o leite condensado com chocolate em pó e manteiga, criando assim o doce batizado em homenagem ao brigadeiro.
O político não venceu as eleições, mas o doce caiu no gosto da população e é até hoje uma das sobremesas mais populares do País. Além da gastronomia, existiram outras inúmeras influências de conflitos na história do Brasil e da ordem mundial atual.
Em um cenário global cada vez mais complexo e interligado, o medo se tornou uma ferramenta poderosa utilizada de forma repetida e insistente para o exercício do poder.
A administração das incertezas e do temor é um fator que transforma a ideia de guerra: ela deixa de ser um conflito entre países e passa a fazer parte do dia a dia, como uma ameaça constante.
Segundo o texto A gente tem medo de quê? Uma discussão sobre guerra, terrorismo e neonazismo, o medo pode ser observado em várias situações: como o medo da fome, da miséria, das doenças, da violência e do desconhecido.
Porém, em tempos de crise, ele é usado intencionalmente por líderes políticos. Isso cria um “estado de exceção” longevo, onde decisões autoritárias se tornam normais, sempre justificadas pela ideia de estarmos em guerra.
Assim, nasce uma realidade paradoxal: a busca por segurança acaba alimentando ainda mais a violência.
Historicamente, o medo tem sido um motor para a guerra e a dominação:
Esse cenário leva à normalização da violência em suas formas mais cruéis e distantes da regulação jurídica internacional.
As "guerras por escolha" — aquelas que se justificam a partir de uma ameaça forjada, como a Guerra do Iraque — são um reflexo direto dessa manipulação do medo, não havendo um
Quando o medo se torna parte das instituições e a guerra vira algo constante, isso muda a política no mundo. Piora ainda mais quando essa lógica impede a criação de soluções pacíficas para os conflitos.
O Diretor Acadêmico de Direito Internacional e Economia do Grupo de Estudos em Direito e Assuntos Internacionais da Universidade Federal do Ceará (UFC), Pedro Martins Menezes, explica que o uso do medo como ferramenta política é um aspecto que incita o ódio.
“Medo de uma escalada global gera insegurança e, principalmente, incita reações xenofóbicas e antissemitas. Isso ocorre porque, em contextos de conflito, não é incomum que se confundam povos com seus líderes, especialmente quando narrativas de guerra são utilizadas em contextos eleitorais ou ideológicos”, diz.
Para o especialista, em anos de eleições gerais, a relação dos presidenciáveis com líderes globais vira objeto de avaliação por parte do eleitorado. Guerras, mesmo distantes do território, influenciam o debate público e geram polarização.
Basta uma rápida olhada em comentários nas redes sociais para ver pessoas associando lados da política nacional a atores envolvidos nas guerras no Oriente Médio.
Mesmo sem posicionamentos oficiais, há quem relacione personalidades políticas a certos grupos ou países.
Conforme o doutor em Direito Internacional, Vladimir Feijó, o medo em relação a conflitos internacionais é multifacetado e amplamente influenciado por fatores que vão além da participação direta do País em guerras.
Ele exemplifica como esse receio se manifesta e é alimentado atualmente por meio da amplificação midiática e das redes sociais.
“No Brasil, a guerra é mais temida nas telas do que nos campos. Esse medo reflete a fragilidade e nossa dependência global. Não é a distância que nos protege, mas o controle sobre o impacto emocional global e, nisso, acho que estamos extremamente vulneráveis porque, tanto pela mídia tradicional como pelas mídias sociais, consumimos muito as narrativas que vêm de fora, em especial do Norte Global”, comenta.
Para o especialista, o temor do brasileiro frente a guerras tem raízes históricas e é amplamente alimentado por mídia, redes sociais e incertezas globais recentes. O poder viral de narrativas na internet intensifica a percepção de ameaça, mesmo sem risco direto ao território.
O aumento do consumo de informações fragmentadas e sensacionalistas, especialmente em períodos de instabilidade — como a Guerra na Ucrânia ou a crise em Gaza —, gera uma ansiedade coletiva.
Ansiedade potencializada pelo consumo descontrolado de informações ou desinformações, que expõem o público a imagens alarmantes quase em tempo real. A espetacularização da guerra contribui para a percepção de que estamos todos vulneráveis.
Feijó explica, também, que o medo se relaciona com incertezas globais, desconfianças institucionais e vulnerabilidades socioeconômicas.
“Há uma crescente desconfiança nas lideranças internacionais e em mecanismos multilaterais de paz, como a Organização das Nações Unidas (ONU), então cresce no coletivo, sobretudo pós-pandemia, o medo de que os conflitos saiam do controle e avancem para proporções globais, sem que haja instituições capazes de contê-los ou proteger populações civis”, diz.
Para ele, o medo de guerra também está diretamente relacionado à instabilidade econômica, manifestando-se como inflação, desemprego ou escassez de produtos. Memórias de um Brasil economicamente instável pós-Segunda Guerra Mundial ainda ecoam na mente da população mais velha.
Em crises globais, a instabilidade econômica é uma constante que afeta a todos. O temor do desabastecimento é um temor significativo dos brasileiros.
O professor da Pós-graduação em Economia da UFC e pesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas (FGV Ibre), João Mário de França, avalia que, apesar da tradição diplomática brasileira de não intervir diretamente em conflitos internacionais, o cenário global de tensões projeta uma sombra de incertezas sobre a economia doméstica.
“Um exemplo é a guerra entre Rússia e Ucrânia, que dificultou a importação de fertilizantes e poderia ter comprometido a safra — o que não ocorreu —, mas gerou temores de alta nos preços”, comenta.
A observação do professor evidencia como eventos distantes podem ter efeitos concretos no cotidiano dos brasileiros, afetando diretamente o custo de vida e a disponibilidade de produtos.
Mário de França explica que o Brasil possui mecanismos econômicos de proteção para lidar com crises externas, como estoques reguladores e reservas internacionais.
“A Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), por exemplo, recebeu um aporte significativo para a formação de estoques reguladores, visando garantir o abastecimento e a estabilidade de preços de produtos básicos. As reservas cambiais do Brasil, atualmente em torno de US$ 346 bilhões, são um importante colchão de segurança contra choques externos e instabilidades cambiais”, diz.
No entanto, a eficácia desses mecanismos depende da magnitude e duração do conflito. Assim, a capacidade de um país mitigar os impactos da instabilidade econômica é limitada pela intensidade e longevidade da crise global.
No entanto, os especialistas analisam como pouco provável o surgimento de um conflito global generalizado, devido a fatores como dependências econômicas múltiplas entre vários países e custos.