A capa de um jornal pode durar mais que uma promessa. Em Missão Velha, a 527 quilômetros de Fortaleza, uma velha missão está emoldurada na parede da sala de Taynara da Silva Alves, 18 anos — e a lembra todos os dias que o tempo não para, mas que a vida pode se repetir na mesma estação.
Quase 20 anos após a primeira visita à cidade, quando, em 2006, deu a ordem de serviço para início das obras da ferrovia Transnordestina, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) retornou ao pequeno município do Cariri cearense para anunciar a liberação de mais R$ 1,4 bilhão para o projeto, que já acumula atrasos significativos enquanto mantém a expectativa de atrair mais desenvolvimento para o Nordeste.
Entre tantos rostos no evento, um chamou a atenção: no meio da multidão, Taynara segurava uma edição de O POVO de 14 de dezembro de 2010. Na imagem, uma menina pequena — ela mesma — aparece nos braços do presidente.
Nas mãos dela, emoldurado, o jornal registrava os últimos dias do segundo mandato de Lula, que visitava as obras em Missão Velha quando recebeu a pequena Taynara nos braços e lhe deu um beijo na bochecha.
A cena da capa foi capturada com agilidade e maestria pelo fotojornalista Ricardo Stuckert, fotógrafo oficial de Lula desde 2003. Quinze anos depois, a imagem atravessou o tempo e foi carregada de volta ao mesmo lugar onde foi feita.
O POVO+ conseguiu identificar e localizar a jovem — que contou que guarda aquele jornal como uma relíquia e fez questão de levá-lo com ela para esse reencontro simbólico com o presidente.
“Fiquei o tempo inteiro com o quadro na mão, esperando que ele visse. E ele viu”, conta Taynara, hoje com 18 anos. Moradora do Sítio Areias, na zona rural de Missão Velha, a estudante de pedagogia só tinha cinco anos na época da foto, mas recorda da emoção que sentiu: “Mesmo criança, a minha cara de felicidade não nega”.
A jovem, que trabalha numa creche da região, lembra que não viu o jornal na época em que a foto foi feita. O momento que virou capa só chegou ao conhecimento de Taynara e sua família meses depois.
Foi uma parente da família do pai que encontrou o exemplar do O POVO em Sorocaba (SP), reconheceu a menina na imagem e trouxe o recorte até ela. “Eu já tinha feito seis anos quando recebi”, conta.
O impacto foi imediato: a mãe, emocionada, tratou de emoldurar a capa. Desde então, o jornal virou parte da decoração e da história de Taynara. “Até hoje as pessoas ficam impressionadas quando veem que eu tenho essa foto. Todas as pessoas que vêm aqui em casa olham e ficam impressionadas.”
Taynara cuida de crianças durante a semana e estuda pedagogia aos fins de semana. Terminar o ensino médio e começar a faculdade foi um marco importante, mas ela quer ir além.
“Não quero deixar de estudar. Quero sempre estudar e me informar também. Quero me formar professora. Mais pra frente, se eu puder, pretendo fazer outra faculdade também. Conhecimento nos liberta.”
Com os pés fincados no interior do Cariri e a cabeça cheia de planos, ela guarda na memória — e no papel — um dos momentos mais marcantes da sua infância.
No reencontro de agora, não foi possível recriar a imagem — Taynara bem tentou refazer a foto, sem sucesso. Mas isso não parece importar tanto para ela. O gesto foi também uma forma de reviver a emoção daquele encontro.
“Foi um dia muito importante para mim, que eu não vou esquecer. Um prazer ter visto ele novamente. Na época eu tinha 5 anos, agora tenho 18. Transbordei de sorrisos quando ele me recebeu de braços abertos e com amor. Porque é isso que ele é: amor, alegria. Eu queria ter tido a oportunidade de sentir essa mesma emoção agora. Mas só em ter essa lembrança, eu já estou muito feliz.”
Foi com o jornal emoldurado nos braços que ela decidiu ir até o Marco Zero da Transnordestina, na sexta-feira, 18 de julho de 2025, onde Lula retornou para uma nova cerimônia.
Entre o vai e vem de comitivas, autoridades, fotografias e gestos acenados à distância, ela ergueu o quadro com o passado. Uma lembrança que não é apenas pessoal: é também coletiva.
Isso porque de frente ao presidente estava também a sua promessa. Na capa do jornal de 2010, abaixo da foto principal, a manchete registrou: “Em ritmo de despedida, Lula veio ao Ceará e garantiu que a Transnordestina e a transposição serão concluídas até 2012”.
Quase 20 anos desde o começo da obra e 15 anos desde a declaração, vieram Dilma Rousseff, impeachment, Michel Temer e Jair Bolsonaro no poder.
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Durante o discurso na visita recente, Lula reconheceu o atraso e afirmou que as obras já deveriam estar concluídas.
“Eu imaginei que ela (a obra) fosse acabar em 2012. Eu saí em 2010, voltei à Presidência 13 anos depois e essa ferrovia tinha andado muito pouco. Aliás, já não tinha mais interesse em fazer essa ferrovia. E eu assumi a responsabilidade de que nós vamos concluir essa ferrovia, custe o que custar. E vamos fazer ela entre o Porto de Pecém e o Porto de Suape e Eliseu Martins, no Piauí, igual estava no projeto. O Nordeste precisa dessa obra e precisa ser respeitado”, disse o presidente.
Por quase duas décadas, a ferrovia Transnordestina tem sido, ao mesmo tempo, símbolo de esperança, frustração e insistência. Agora, sob o terceiro mandato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, a ferrovia volta a trilhar seu caminho com novos aportes públicos, promessas de conclusão e previsão de início de operação já em 2025.
O projeto é ambicioso: uma linha férrea de mais de 1.200 km ligando Eliseu Martins, no Piauí, ao Porto do Pecém, no Ceará, com passagem estratégica por Salgueiro, em Pernambuco. Seu objetivo é facilitar o escoamento da produção agrícola, mineral e industrial do Nordeste para o mercado interno e externo.
Idealizada inicialmente com três ramais — conectando também o Porto de Suape (PE) —, a ferrovia hoje está mais enxuta, mas permanece estratégica para o desenvolvimento regional.
Linha do tempo: Transnordestina
A Transnordestina foi lançada oficialmente por Lula em 6 de junho de 2006, em Missão Velha (CE), com orçamento inicial de R$ 4,5 bilhões e previsão de entrega para 2010.
À época, era considerada uma das obras mais importantes de infraestrutura do País, ao lado da transposição do rio São Francisco. Ambas foram incorporadas ao Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), lançado pelo governo federal em 2007.
O projeto previa 1.753 quilômetros de extensão, cortando 81 municípios de três estados. A configuração do traçado, em formato de “T” invertido, previa que os três ramais se encontrariam em Salgueiro (PE), onde foi montada a principal base de apoio industrial: com pedreiras, central de britagem, estaleiro de solda, fábrica de dormentes e oficinas.
Parte da malha (pouco mais de 1.100 km) reaproveitaria trechos ferroviários antigos, exigindo alargamento de bitolas e modernizações; cerca de 600 km seriam construídos do zero.
A execução ficou a cargo da Transnordestina Logística S/A (TLSA), uma empresa criada para gerir e operar a ferrovia, controlada pela Companhia Siderúrgica Nacional (CSN).
A parceria público-privada envolveria também repasses de recursos por meio de bancos públicos e fundos de desenvolvimento regional.
Apesar do entusiasmo inicial, a obra acumulou atrasos e aumentos sucessivos no orçamento. O primeiro trecho, entre Missão Velha e Salgueiro, foi concluído em 2008. Porém, àquela altura, menos de 6% da ferrovia estava pronta.
Em 2010, Lula, no fim do segundo mandato, já falava em conclusão para 2012. A presidenta Dilma Rousseff prometeu a entrega para 2013, mas ao final daquele ano apenas 383 km estavam finalizados.
A partir de 2012, o PAC 2 já estimava o custo da obra em R$ 7,5 bilhões e um novo prazo: janeiro de 2017.
Em 2016, o TCU determinou a suspensão de novos repasses federais por conta de irregularidades na execução da obra e inconsistências no orçamento. À época, cerca de 600 km estavam prontos. Sem recursos públicos, a obra foi paralisada oficialmente em 2017.
Em 2018, a TLSA admitiu que o orçamento já superava R$ 13 bilhões e que o projeto não ficaria pronto antes de 2027. Também anunciou a desistência da Fase 3, o trecho entre Salgueiro e o Porto de Suape (PE).
Dos 547 km previstos nesse ramal, 193 km haviam sido construídos — os 354 km restantes foram abandonados. Em 2022, a concessão dessa etapa foi devolvida ao governo federal.
A virada começou a ser desenhada no final de 2022, com a liberação do TCU para novos aportes públicos — desde que a TLSA apresentasse novo cronograma e estudos de viabilidade. Em 2023, a obra foi incluída no Novo PAC, e em 2025 ganhou mais R$ 1,4 bilhão em recursos anunciados por Lula em visita a Missão Velha.
Hoje, a ferrovia tem 1.206 km de extensão planejada (já sem o ramal de Suape) e corta 53 municípios.
O trecho entre Eliseu Martins (PI) e o Porto do Pecém (CE) tem cerca de 75% de execução física, sendo 676 km entregues e outros 280 em obras.
Segundo o governo federal, mais de R$ 8,2 bilhões já foram investidos, e o custo total previsto é de R$ 15 bilhões.
O governo prevê que a operação comece até o fim de 2025, com o transporte de cargas como soja, milho, farelo e calcário saindo do Terminal Intermodal de Bela Vista do Piauí. A fase 1 (Pecém–Salgueiro) deve ser concluída até 2027; a fase 2 (Salgueiro–Eliseu Martins), até 2029.
A retomada da Transnordestina vem acompanhada de uma grande mobilização política e econômica. O governo projeta até 8 mil empregos diretos com a execução dos próximos lotes.
O impacto anual no PIB do semiárido nordestino pode chegar a R$ 7 bilhões. A ferrovia é vista como essencial para fortalecer cadeias logísticas e atrair novas indústrias para o interior da região.
O ministro dos Transportes, Renan Filho, destacou que este é o segundo investimento anunciado pelo governo federal na Transnordestina em pouco mais de 50 dias.
No início de junho, o ministro esteve em Baturité e oficializou o aporte de R$1 bilhão para o Lote 8 da ferrovia. O trecho, de 46 quilômetros de malha, corta os municípios cearenses de Quixadá, Itapiúna, Capistrano e Baturité.
“Essa obra vai chegar em breve a 8 mil pessoas trabalhando para construí-la. A infraestrutura integra, une, e até o fim deste ano nós vamos iniciar o transporte de cargas nessa ferrovia”, afirmou Renan Filho.
Já o presidente da TLSA, Tufi Daher, declarou que a ferrovia representa “a maior obra linear em execução no País”: “Nós temos mais de 4 mil empregos diretos, mais de 1.100 máquinas pesadas, mais de R$ 4 bilhões em contratos já assinados em execução, então é uma obra de uma pujança espetacular.”
No Cariri cearense, onde a ferrovia nasceu simbolicamente, a expectativa é alta. “O que era um sonho, agora é ferro, trilho e é progresso. A Transnordestina não é só uma obra, é uma cicatriz que virou estrada, é a história do Sertão que mudou de rumo, é o Brasil lembrando que aqui tem gente que trabalha, produz e que merece respeito”, afirmou o prefeito de Missão Velha, Dr. Lorim.
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