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Cacique Pequena e Adriana Tremembé: Tradição como força de liderança
Reportagem Seriada

Cacique Pequena e Adriana Tremembé: Tradição como força de liderança

Pequena rompeu costumes e abriu os caminhos para as lideranças femininas não só no Ceará, mas Brasil afora. Aos 77 anos, ela compartilha todo o conhecimento da cultura indígenas que carrega, sempre rodeada de misticismo e encantamento. Liderança na terra indígena da Barra do Mundaú, em Itapipoca, Adriana Tremembé usa a espiritualidade para enfrentar as ameaças ao território.
Episódio 3

Cacique Pequena e Adriana Tremembé: Tradição como força de liderança

Pequena rompeu costumes e abriu os caminhos para as lideranças femininas não só no Ceará, mas Brasil afora. Aos 77 anos, ela compartilha todo o conhecimento da cultura indígenas que carrega, sempre rodeada de misticismo e encantamento. Liderança na terra indígena da Barra do Mundaú, em Itapipoca, Adriana Tremembé usa a espiritualidade para enfrentar as ameaças ao território.
Episódio 3
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Em março deste ano, o Google lançou a campanha "First of Many: Women’s History Month 2021", e selecionou mulheres inovadoras que lutaram para conquistar seu espaço no cenário mundial. Ao lado de nomes como Marie Curie, a primeira a ganhar um Nobel, estava o da única brasileira, uma cearense de Aquiraz, município distante 37 km da capital: cacique Pequena, a primeira mulher a quebrar a tradição da sucessão masculina nas aldeias indígenas na América Latina.

Escolhida dentre os seus em 1995, quando era dona de casa e mãe de 16 filhos, ela assumiu a responsabilidade de ser cacique e, como se fosse um teste de fogo, logo foi chamada a Brasília para representar sua etnia no pedido de demarcação de terras que seria feito à Fundação Nacional do índio (Funai). Ao vê-la, 39 caciques, todos homens, levantaram suas vozes em protesto, porque para eles, nas palavras de Pequena, “mulher era só para a cama e o pé do fogão”.

Cacique Pequena foi eleita líder do povo Jenipapo-Kanindé em 1998(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Cacique Pequena foi eleita líder do povo Jenipapo-Kanindé em 1998

A resposta da cacique na ocasião foi firme. Disse representar os Jenipapo-Kanindé de Aquiraz, Ceará. Que eles vieram todos da barriga de uma mulher e que ela, assim como todas as mulheres, indígenas ou não, queriam mais da vida do que viver à sombra dos outros. O que se sucedeu a esse discurso foi uma salva de palmas que se fez mais alto do que as lamúrias. 

Muito antes dessa icônica cena, a luta dos indígenas Jenipapo-Kanindé pelo território tradicional teve seus momentos de tensão, como a exploração da Lagoa da Encantada pelo Grupo Ypióca no início da década de 1980, assim como o loteamento de terrenos que aconteciam desde sempre mas tomaram um ritmo acelerado no final do século passado. Sobre a disputa entre os indígenas e a empresa de bebidas, o embate levaria décadas, tendo em jogo o acesso livre à lagoa que é considerada muito mais do que um simples espelho dágua e sim, um local sagrado para o povo, símbolo de tradições, lendas e espiritualidade.

Depois do conflito pela água, ocorreu o pela terra, a qual tem considerável apelo turístico, dada a localização no litoral Leste do Ceará, a proximidade com Fortaleza e a existência de outros empreendimentos do ramo na área. No final dos anos 90 e início dos 2000, a terra dos Jenipapo-Kanindé foi alvo dos interesses do Aquiraz Resort, um empreendimento que queria construir cinco hotéis de quatro estrelas no local. A atual situação do território é semelhante a das demais terras indígenas no estado: a Funai até começou o processo de demarcação da terra indígena Lagoa da Encantada, mas o processo não se encaminhou para as etapas subsequentes, que são a homologação e o registro. 

Pequena guarda todos esses causos na memória com uma riqueza de detalhes impressionante. Aos 76 anos, ela segue à frente dos Jenipapo-Kanindé, onde detém o maior grau de decisão e está à frente da organização política e administrativa do povo e território. Seu cacicado é dividido com duas de suas filhas, cacique Irê e cacique Jurema, que darão continuidade à liderança feminina na aldeia. O vigor pode não ser o mesmo de outrora, como nas viagens a Brasília, onde se firmava junto aos homens nas danças que duravam horas, de pés descalços na terra. Todavia, a mulher que foi cega durante uma boa parte da infância e, por um milagre, foi curada, continua forte feito a árvore que está no quintal de casa e oferece cajus maduros aos montes após as tardes de ventania.

 



Jenipapo-kanindés e o março temporal

 

A entrevista havia sido cancelada anteriormente porque nove indígenas (do grupo dos 12 que foram a Brasília) pegaram Covid-19, todos com sintomas leves, pois foram vacinados nos grupos prioritários. Os Jenipapo-Kanindé participaram da série de protestos contra o marco temporal em agosto e setembro.

Por uma falha técnica, foi perdida uma gravação do canto aos ancestrais, vocalização solene e carregada de emoção entoada pela Cacique Pequena. Questionada se ela poderia repetir a execução, a resposta foi negativa, pois o canto poderia ser feito apenas uma vez naquele dia.

O cajueiro sagrado é a árvore onde festas e rituais como o toré são realizados. A árvore foi batizada com água benta por um sacerdote da igreja católica.

Flávia Oliveira 

 

 

 

 

Adriana Tremembé: “O Brasil tem cura, mas o brasileiro precisa se conectar de novo com a natureza” 

 

Adriana Carneiro de Castro, a Adriana Tremembé, líder do povo indígena que ocupa o território da Barra do Mundaú, em Itapipoca(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Adriana Carneiro de Castro, a Adriana Tremembé, líder do povo indígena que ocupa o território da Barra do Mundaú, em Itapipoca

Itapipoca, município distante 130 km de Fortaleza, abriga em seus limites a Terra Indígena Tremembé da Barra do Mundaú. Os Tremembés também estão em Itarema, na área indígena Tremembé de Almofala, Córrego do João Pereira (Itarema e Acaraú) e Tremembé de Queimadas (Acaraú), todos no litoral Oeste.

Em Itapipoca, a terra está dividida em quatro aldeias: São José, Munguba, Buriti do Meio e Buriti de Baixo, sendo que duas delas são lideradas por mulheres. Os troncos velhos, que são os anciãos das aldeias, nomearam as duas mulheres como líderes de suas comunidades, mas não deram a elas o título de caciques. Mesmo assim, Adriana, uma das lideranças, não se ressente. Ela acredita que o dom da liderança é um conhecimento dado pelos ancestrais e respeita as decisões dos que viveram mais do que ela.

Adriana Tremembé leva consigo os rituais do povo a que pertence (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Adriana Tremembé leva consigo os rituais do povo a que pertence

Desde menina, Adriana dava sinais de que tinha uma conexão muito forte com a mata, os rios e os córregos. A avó, que era parteira, benzedeira e ela mesma uma figura de destaque, dizia que a neta tinha ligação com os seres da natureza, os encantados. Também foi a avó que vaticinou que quem quisesse explorar a terra que era do povo Tremembé, sairia de lá sem nada. E foi exatamente isso o que aconteceu quando uma rede hoteleira espanhola chegou, lá pelos idos da década de 80, querendo construir um hotel do tamanho exato do território indígena.

Adriana é grata pelo trabalho de Maria Amélia Leite, indigenista, missionária, ambientalista e defensora dos direitos humanos, assim como o de Florêncio Braga, ambos da Associação Missão Tremembé, mas se ressente até hoje das ameaças de prisão e de morte que se repetiram por anos, até que a Justiça finalmente decidisse pela permanência dos povos originários no quinhão de terra que era deles por direito.

Os Tremembé têm fortalecido sua organização política para fazer frente às diversas pressões sobre seu território, além da disputa com o grupo espanhol Afirma para a construção do resort Cidade Nova Atlântida. Nas últimas décadas, se destacaram os conflitos contra a monocultura de coco da empresa agroindustrial Ducoco e o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (DNOCS) em relação à proposta de instalação do perímetro irrigado do Baixo Acaraú.

“Homem branco cortou as árvores mas não teve a sabedoria de arrancar as raízes. Nós somos as raízes“, lembra Adriana, com o rosto afogueado de urucum e memória.

Os dias de Adriana não são só de luta pelo seu povo. Ela celebra o Torém, ritual próprio dos Tremembé, e oferece a cura pela natureza a indígenas e não-indígenas que os procuram, tomados de dores físicas e emocionais. Os rituais celebram os elementos da natureza e unem o tambor e a maraca ao mocororó, bebida tradicional sagrada.

Também é motivo de celebração o fato de serem filhos da terra e saberem trabalhar nela para tirar o usufruto. Eles cuidam da terra e a terra cuida deles, é o que eles dizem. É famosa a festa do murici e do óleo do batiputá, este último usado tanto como alimento quanto por suas propriedades terapêuticas. Um agradecimento aos frutos que não precisam ser semeados mas que os sustentam desde sempre.

“O Brasil tem cura, mas o brasileiro precisa se conectar de novo com a natureza”, ela diz, com a voz já pacificada. É que falar do atual Governo federal a deixa com a alma em brasa. Mas logo ela se abranda ao lembrar que governos vão e vêm, mas a luta dos Tremembé, assim como de todas as outras etnias, vão continuar na missão de seus descendentes, amparados espiritualmente pela sabedoria ancestral.


 


Auto-identificação causa discórdias

 

Ao término das entrevistas e já de saída do território, a reportagem foi abordada por moradores que queriam saber se a liderança havia falado mal deles. É que há uma série de discordâncias dentro da comunidade, que vai desde a religião até a auto-identificação ou não sobre ser indígena. Em 2002, a Funai informou que só iniciaria o processo de demarcação se houvesse adesão ao processo de auto-identificação, e foi a partir deste momento que muitos se autodeclararam.

Na hora do almoço, a equipe saiu da aldeia e foi em direção à Praia da Baleia, que era o ponto mais próximo para a refeição. Chegando lá, enquanto aguardavam o preparo da comida, repórter e motorista não resistiram ao mar tranquilo e à paisagem bucólica da praia: caíram os dois na água, sendo que a repórter foi de roupa e tudo, precavida que estava com uma segunda muda de vestes limpas na mochila.

Flávia Oliveira 

 

  • Créditos
  • TEXTOS Flávia Oliveira
  • EDIÇÃO Regina Ribeiro
  • FOTOGRAFIA FCO Fontenele
  • IDENTIDADE VISUAL Cristiane Frota
  • RECURSOS DIGITAIS Wanderson Trindade
  • AUDIOVISUAL Arthur Gadelha e Cinthia Medeiros
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