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Kalabaças e Tabajaras: parceria feminina de duas etnias em Poranga
Reportagem Seriada

Kalabaças e Tabajaras: parceria feminina de duas etnias em Poranga

No sertão do Ceará, kalabaças e tabajaras são ligados por laços de sangue e cooperação, de acordo com as três principais lideranças femininas nas aldeias de Umburana e Cajueiro
Episódio 2

Kalabaças e Tabajaras: parceria feminina de duas etnias em Poranga

No sertão do Ceará, kalabaças e tabajaras são ligados por laços de sangue e cooperação, de acordo com as três principais lideranças femininas nas aldeias de Umburana e Cajueiro
Episódio 2
Por

Oi, tem, tem, tem,
Lá na nossa aldeia, tem.
Tem índio na aldeia,
Que não teme a ninguém.
Na mata do sabiá,
Canta rola e juriti.
Quem fala mal dos índios,
O caminho é por ali.

Toré dos índios tabajaras e kalabaças de Poranga

 

 

Depois de 28 anos trabalhando como professora, Tia Ray sempre volta à Escola Indígena Jardim das Oliveiras, na Terra Indígena de Umburana, próximo ao Centro de Poranga, município distante 350 km da capital Fortaleza. Não há expediente nem aulas mais a dar, mas ela vai lá porque sente que a missão ainda não está completa, apesar de já estar aposentada. É vice-coordenadora do Ocas da Memória, um dos poucos museus indígenas do Ceará (o único em atividade no momento, em virtude da pandemia de Covid-19). A instituição foi criada em 2008 e conta com acervo dos kalabaças e tabajaras.

Dona de riso fácil e de olhos que também sorriem, Tia Ray gosta de fazer brincadeiras e piadas sobre tudo (inclusive sobre a equipe de reportagem), mas todo frescor e humor ficam de lado ao tratar de assuntos caros ao seu povo e aos “irmãos indígenas”, os quais, mesmo separados por idiomas, geografias e etnias, são um só, segundo ela.

Raimunda Gomes Marinho, a tia Ray é uma liderança do povo kalabaça, no município cearense de Poranga(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Raimunda Gomes Marinho, a tia Ray é uma liderança do povo kalabaça, no município cearense de Poranga

Leuda nasceu Maria, mas usa o pseudônimo como “um nome de guerra”, como gosta de dizer, ainda que nada nela lembre um campo de batalha, dada a paz com que fala. Talvez a luta mais aguerrida tenha sido contra a própria timidez, que já a fez, no passado, se esconder para não dar uma entrevista. Aos 52 anos, a professora da escola indígena na Umburana desfiou retalhos da memória para lembrar dos tempos que não se considerava indígena, seguindo o exemplo dos que ainda eram perseguidos só por causa do sangue que corria nas veias. Leuda destaca que tem como missão de vida a educação, essencial para que ela transformasse a própria história.

Leuda Tabajara é professora e também líder seu povo na Aldeia Imburana(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Leuda Tabajara é professora e também líder seu povo na Aldeia Imburana

Eliane Tabajara cresceu em uma família numerosa, experimentou o sabor amargo da carestia mas sempre encontrou apoio nos avós e nos pais para seguir em frente. Nascida e criada na aldeia Umburana, hoje ela é uma das lideranças na aldeia Cajueiro, distante 42 km do centro de Poranga. Lá, com o apoio de seus irmãos e primos, ela, que é irmã do cacique, luta pela paz do povo Tabajara, ainda que isso signifique sofrer agressões e ameaças de morte feitas por posseiros. Professora de História e Geografia, ela e as irmãs ensinam aos curumins que não é a cor que vai definir quem é ou não indígena e sim, a história de cada um.

Eliane Tabajara, liderança de seu povo na Aldeia Cajueiro no distrito de Macambira, em Poranga(Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Eliane Tabajara, liderança de seu povo na Aldeia Cajueiro no distrito de Macambira, em Poranga

As três mulheres são lideranças de seus povos: duas etnias que dividem o mesmo território e se entrelaçaram ao longo do tempo por laços de sangue, uma situação que não é muito comum de ser vista em outras regiões do Brasil, mas que no Ceará foi normalizada. Sem cacique em Poranga, a etnia kalabaça, a menor em quantidade de integrantes, na comparação com os Tabajara, conta com a liderança de Tia Ray. Os Tabajara da aldeia Umburana são representados por Leuda, ao passo que os da aldeia Cajueiro, por Eliane. No entanto, na prática, todas elas estão em comunicação e se articulam em conjunto sobre as demandas mais importantes que chegam a elas. Veja a seguir os principais trechos da entrevista com as lideranças femininas: 

 

 

Histórias femininas de liderança indígena 

 

O POVO - Como foi a sua trajetória até ser uma das lideranças dos Kalabaça e Tabajara de Poranga?

Tia Ray - Meu nome é Raimunda Gomes Marinho Sampaio, conhecida como Tia Ray Kalabaça. Meu povo veio para cá fugindo das perseguições dos não-índios na região do Crateús, no século XIX. Mas eu só comecei a participar ativamente da liderança há alguns anos. Vou explicar: quando eu era criança, as pessoas sempre diziam que eu “parecia uma indiazinha”, mas foi apenas quando eu estava morando em São Paulo, nos anos 80, que me assumi e passei a me identificar como indígena. E isso aconteceu porque comecei a participar de projetos sobre cultura indígena e afro. Voltando ao Ceará, no início dos anos 2000, passei a assistir às reuniões da nossa associação.

 

" Foi só depois do estudo da árvore genealógica que eu assumi minha identidade étnica. Depois me tornei uma professora diferenciada, ou seja, que ensinava também sobre os costumes indígenas." Leuda Tabajara, ao narrar sua trajetória de auto-identificação

 

Leuda Tabajara - Aqui em Poranga havia uma presença indígena muito forte, mas estávamos todos calados. Foi a irmã Margarete Malfliet [missionária belga católica, principal articuladora da Pastoral Raízes Indígenas nos anos 90], que começou a observar os nossos costumes, como a gente falava, vivia, como eram as festas e os costumes. Aí ela disse assim: “E vocês sabiam que vocês são índios?”. Tivemos uma resistência no começo porque não conhecíamos a nossa história. Na época, sofremos preconceito por falar errado. Éramos tratados de forma diferente pela população. Foi só depois do estudo da árvore genealógica que eu assumi minha identidade étnica. Depois me tornei uma professora diferenciada, ou seja, que ensinava também sobre os costumes indígenas.

 

"... eu passei três meses pesquisando todas as pessoas da minha família e fazendo registros. Isso me deu uma força interna muito grande, me transformou." Eliane Tabajara

 

Eliane Tabajara - Na época era muito difícil ser indígena, o pessoal do Centro tinha muito preconceito com a gente. Nós tínhamos as plantas medicinais, os rezadores, os meseiros (auxiliares de pajé). Todo mundo nos discriminava na cidade, mas quando precisava, era a gente que eles procuravam para ter a cura. Terminei meu ensino médio, fui ser professora, e a irmã Margarete (Malfliet) já vinha fazendo um trabalho de fortalecimento, fazendo com que as famílias se assumissem como indígenas. Eu falei para ela que eu não me assumia como indígena por conta da minha cor.

Eu aprendi na escola que indígena era aquela pessoa morena de olho preto puxadinho, que vivia no meio da mata. Aí ela me ensinou a fazer a minha primeira pesquisa genealógica, e eu passei três meses pesquisando todas as pessoas da minha família e fazendo registros. Isso me deu uma força interna muito grande, me transformou. Passei a viajar e a participar de eventos e a compor várias organizações daqui do sertão. Todos os povos indígenas sofrem, mas sempre senti que os da nossa região sofrem mais, por causa do clima e da falta d'água.

 


 

 

Como se forma uma líder

 

O POVO - Você sentia que tinha algum tipo de vocação para ajudar as pessoas dentro da sua comunidade?

Tia Ray - De alguma forma, a gente sabe que tem um dom, um magnetismo, e é isso que explica o fato de que todo mundo buscar a gente. Eu me sinto uma liderança no sentido de gostar de participar ativamente de tudo que envolva a nossa comunidade e o movimento indígena. Eu faço parte do Comitê Gestor das Políticas Indigenistas da Secretaria de Cultura do Ceará (Secult) e do Comitê das Bacias Hidrográficas do Sertão de Crateús, representando todas as etnias da região. Não foi ninguém que chegou e disse: “você vai ser uma liderança”. É uma coisa natural, a gente já nasce com essa disposição e força de vontade de agir dessa forma. E a gente se torna uma liderança. Não importa o gênero, se é masculino ou se é feminino, e sim, se essa pessoa tem o braço forte para representar a comunidade.

 

"Uma vez me escondi em um evento para não ter que dar entrevista, porque era tímida para falar. Hoje eu não tenho mais vergonha, eu me fortaleci com o meu povo." Leuda Tabajara sobre o processo de fortalecimento no exercício da liderança

Leuda Tabajara - Eu participo de tudo da minha comunidade e estou disponível para o que precisarem. Mas o processo não foi fácil porque eu tinha vergonha. Uma vez me escondi em um evento para não ter que dar entrevista, porque era tímida para falar. Hoje eu não tenho mais vergonha, eu me fortaleci com o meu povo.

 

"Quando não tinha organização de mulheres, éramos muito discriminadas. Quando íamos falar, ninguém dizia nada contra, mas percebíamos que a nossa voz parecia que nem saía." Eliane Tabajara, ao comentar a percepção da liderança feminina na aldeia

 

Eliane Tabajara - Não é todo mundo que consegue ser liderança, é algo nato. É um dom espiritual. Ser liderança não é pra qualquer um. A liderança é aquela que está sempre à frente na defesa do seu povo. No Ceará, a situação é diferente do restante do Brasil, pois em quase toda aldeia tem uma liderança feminina. Mas em outros estados, continua sendo masculina. Quando não tinha organização de mulheres, éramos muito discriminadas. Quando íamos falar, ninguém dizia nada contra, mas percebíamos que a nossa voz parecia que nem saía.

 

 

A questão da terra e as lições dos sabiás

 

O POVO - Vocês estão acompanhando cada passo dado em relação ao Marco Temporal. Gostaria de saber a opinião sobre a atuação do governo federal em relação às terras indígenas.

Tia Ray - Nós temos um presidente que não é a favor dos índios. Nós, índios, que vivemos para preservar o meio ambiente, a floresta, a fauna e a flora. A gente não existe? Não serve para nada mais? Atualmente, as terras demarcadas são pouquíssimas no Brasil. No Ceará só existe uma terra, que é a do Córrego João Pereira (TI Tremembé, em Itarema). E o Governo Federal está fazendo de tudo para que a gente não tenha mais terra demarcada. Mas a gente tem que engolir o presidente, porque cada povo tem o governante que merece. Se ele está lá, é porque a população o pôs, inclusive com a ajuda do voto indígena. Ele quer impor para os povos indígenas uma ditadura de não-reconhecimento e de não-demarcação das terras, sendo que os verdadeiros donos das terras somos nós. Afinal, quando o tal do Cabral chegou aqui, em 1500, nós já estávamos.

Leuda Tabajara - Fomos ao protesto contra o Marco Temporal, depois para a Marcha das mulheres. Antigamente o nosso povo tinha que se calar para viver. Hoje, para viver, temos que falar.

Eliane Tabajara - Jamais um índio vai pra uma terra para dizer “esta terra é minha”, sem ser. Nós estamos aqui na aldeia Cajueiro, uma área de quase cinco mil hectares, porque provamos que aqui tem a nossa história. E o que o governo federal diz? Que não vai demarcar um milímetro de terra. Somos os primeiros povos do Brasil, e até a nossa língua nós perdemos. Será que foi culpa nossa? Não. Então esse marco temporal é como se fosse os portugueses chegando aqui, no nosso país, de novo. 

 

"Para os sabiás, cantar é uma questão de sobrevivência." Tia Ray Kalabaça

O POVO - Tem um trecho do toré dos Tabajara e Kalabaça que fala sobre o sabiá (assim como outras espécies, os sabiás cantam para demarcar seu território. Se suas canções não são ouvidas, podem se deparar com rivais). Gostaria que a senhora, Tia Ray, falasse desse canto.

Tia Ray - Você falou isso e eu lembrei de uma retomada (de território) da qual participamos há um tempo. Ficamos em vigília até tarde da noite, debaixo dos cajueiros e das estrelas, cantando e dançando o toré. Fomos apoiar a luta de outra etnia porque a união faz a força. Em Poranga, os kalabaças e os tabajara são irmãos, algo que não é muito comum em outras etnias país afora, mas aqui, é. Para os sabiás, cantar é uma questão de sobrevivência.


 


Viagem à Cidade dos ventos 

 

A entrevista teve que ser adiada por uma semana por causa da seleção de professores para a escola indígena Jardim das Oliveiras, localizada na Terra Indígena de Imburana, próximo ao Centro de Poranga. A escola tem anexo na Aldeia Cajueiro, dos Tabajara, no distrito de Macambira. Na seleção, os professores que já lecionam passam por avaliação bianual para continuar com o vínculo temporário. Uma das demandas de professores e funcionários é a realização de um concurso público.

Vista aérea da Aldeia Cajueiro dos povos indígenas Tabajaras e Calabaças (Foto: FCO FONTENELE)
Foto: FCO FONTENELE Vista aérea da Aldeia Cajueiro dos povos indígenas Tabajaras e Calabaças

A viagem até Poranga foi a mais longa deste Especial, pois o município está localizado na fronteira com o estado do Piauí. No caminho, pudemos ver muitas queimadas causadas pela atividade humana e propagadas em virtude da vegetação seca e dos ventos, mas também observamos alguns curiosos redemoinhos à beira da estrada. Alguns alcançaram alturas de até três metros e arrastaram folhas secas e poeira para dentro de suas ávidas barrigas de até 50 cm de diâmetro.

Poranga é uma cidade pequena, com pouco mais de 12 mil habitantes, localizada na microrregião do Ipu. Possui vegetação de caatinga e um agradável clima serrano nas primeiras horas da manhã, em virtude dos 790 m acima do nível do mar. É chamada de “cidade dos ventos”. Poranga é a palavra em tupi para “Formosa”, o nome anterior da cidade.

A reportagem esteve na Igreja de Pedra, no Alto da Mãe de Deus, pertencente à paróquia de Jesus, Maria e José. Situada em um elevado dentro da zona urbana, o local recebia pessoas interessadas em fazer retiro espiritual. Também é um ponto turístico, pois a formação da Pedra Grande oferece uma vista privilegiada da cidade. A construção da Igreja teve início em 1958, com mulheres, homens e crianças indígenas e não-indígenas carregando pedras por um caminho íngreme, numa mata praticamente fechada. Foi inaugurada em 1989.

Flávia Oliveira 

 

 

  • Créditos
  • TEXTOS Flávia Oliveira
  • EDIÇÃO Regina Ribeiro
  • FOTOGRAFIA FCO Fontenele
  • IDENTIDADE VISUAL Cristiane Frota
  • RECURSOS DIGITAIS Wanderson Trindade
  • AUDIOVISUAL Arthur Gadelha e Cinthia Medeiros
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