O território Tapeba localiza-se no município de Caucaia, na Região Metropolitana de Fortaleza, a uma distância de 20 km da capital, traçando-se uma linha reta imaginária. O território está delimitado em 5.838 hectares, onde vivem mais de 6.600 indígenas. A terra está dividida em zona urbana e periurbana de Caucaia, totalizando 18 comunidades: Água Suja, Bom Jesus, Capoeira, Capuan, Coité, Itambé, Jandaiguaba, Jardim do Amor, Lagoa I, Lagoa das Bestas, Lagoa dos Tapeba, Lameirão, Mestre Antônio, Ponte, Sobradinho, Trilho, Vila dos Cacos e Vila Nova.
A Vila dos Cacos é chamada assim por causa da liderança mais antiga da aldeia: Sebastião Jerônimo do Nascimento, mais conhecido pelo apelido de “Caco”. E é na Vila dos Cacos que está a casa de Marciane, uma construção simples às margens da BR- 222 com uma estante de aço cheia de livros e uma rede armada no alpendre.
Marciane é uma das lideranças indígenas mais jovens do Ceará e está na linha de frente do maior povo do estado, em número de indivíduos. Recém-saída dos 29 anos, ela gosta de lembrar de quando ainda era pré-adolescente e ia com o bisavô, a bordo de uma bicicleta, assistir aos espaços de discussão política da comunidade.
A menina ouvia líderes, caciques, pajés e anciãos e, mesmo sem entender muita coisa do que os adultos diziam, queria ter a mesma capacidade de pedir a palavra no meio de uma multidão e se fazer ouvir. Foi assim, ainda muito nova, que ela começou no movimento pela juventude indígena para depois pousar os olhos sobre outras causas mais urgentes, como a atuação pela saúde indígena e a violência contra as mulheres.
Como vice-coordenadora da Articulação das Mulheres Indígenas do Ceará (Amice), ajudou a elaborar o projeto “Mulheres indígenas do Ceará: guardiãs do território, defensoras da vida”, aprovado recentemente pelo Fundo Social de Investimento Social ELAS, organização não governamental feminista brasileira. O projeto tem como um dos objetivos denunciar a violência contra a mulher indígena por meio do levantamento de informações, elaboração de um mapa da violência contra a mulher indígena e o encaminhamento das denúncias, bem como promover o atendimento psicológico, assistencial e jurídico às vítimas.
Pelo histórico de atuação em áreas tão importantes não só para os Tapebas mas também para o povo indígena em geral, Marciane foi escolhida para ser uma das lideranças de sua aldeia. Os desafios que a jovem precisa enfrentar junto com o seu povo são o crescimento dos bairros, o surgimento de novos loteamentos, as ocupações irregulares e a devastação ambiental, já que a Terra Indígena Tapeba está presente em áreas muito próxima das cidades de Caucaia e Fortaleza.
A terra é bastante impactada pelo desenvolvimento urbano industrial, sendo cortada por quatro rodovias (BR-020, BR-222, CE-090 e CE-085), uma ferrovia, gasodutos e um aqueduto, redes elétricas de alta tensão, e redes de transmissão de telefonia. Além, é claro, das ameaças constantes de posseiros.
Em mais de trinta e cinco anos de luta pelo território, os Tapeba ainda não conseguiram a demarcação. Marciane diz que quando sentem as forças se esvaindo, ela e os demais Tapebas bebem da fonte da espiritualidade, um manancial sempre fresco e borbulhante que revigora as esperanças de que a situação vai melhorar. “O território não significa só um simples pedaço de chão”, ela ressalta. “A terra guarda dentro dela uma relação de continuidade, como se todos aqui fôssemos filhos dela”, ela diz, com os olhos brilhantes de quem quer se fazer ouvir.
A entrevista com Marciane foi na aldeia Vila dos Cacos. A comunidade está situada às margens da estrada BR 222, próximo a fábrica da empresa Aço Cearense, em Caucaia. A formação, ocupação e história da comunidade estão ligadas à liderança mais antiga: Sebastião Jerônimo do Nascimento, mais conhecido como Caco. Sebastião Jerônimo chegou ao local com quinze anos de idade, oriundo da Lagoa dos Porcos, área também Tapeba. Recebeu o apelido de “Caco” ainda jovem, de um senhor com quem trabalhava, depois de acidentalmente ter derrubado vários utensílios de barro, que ficaram em “cacos”.
A maioria da comunidade possui grau de parentesco com seu Sebastião, sendo filhos, netos, bisnetos, primos, sobrinhos. As únicas pessoas que não possuem esse laço sanguíneo são os não-índios que se casaram com integrantes da comunidade
Fonte: Plano de gestão territorial e ambiental indígena tapeba (Adelco, 2018)
Flávia Oliveira
Das muitas lutas que o povo Pitaguary já teve que enfrentar, seja pela defesa do território ou pela preservação do meio ambiente, Rosa elege a reivindicação para a construção de uma escola indígena na aldeia como a mais importante de todas.
É que ela é mãe e, zelosa pelo bem-estar dos filhos, sofreu junto com outras que relatavam as situações de desrespeito a que as crias eram submetidas nas escolas convencionais: após as festas na aldeia, as crianças eram impedidas de assistir aula simplesmente por estarem com a tez pintada de urucum e jenipapo. A discriminação não partia apenas dos colegas de sala mas tinha o aval de professores e até da direção das escolas. “Que só voltassem para sala de aula após a tintura sair”, vociferavam entredentes docentes e gestores. As mulheres então encabeçaram a luta mais aguerrida, que era a construção de uma escola diferenciada dentro do território, empreitada que um dia, finalmente, se conquistou, após muitas aulas dadas debaixo da sombra das árvores.
Outra peleja foi a preservação do meio ambiente, ameaçado pelas pedreiras que, vorazes, roíam as beiradas da serra a pedido da construção civil. Na época, as matas se cobriam com pó de pedra, as nascentes não mais borbulhavam por causa das explosões e as casas sofriam com a falta d'água, além de terem as paredes rachadas à força da dinamite.
O povo Pitaguary não conseguia entender por que queriam mais da mãe serra, além da banana, do abacate e da jaca que ela já dava em abundância a todos. Apesar de estar desativada há anos, a Britaboa, empresa de extração de pedras que causou diversos conflitos, tenta retomar as atividades no território, que possui outras companhias do setor interessadas nos recursos minerais.
Localizada na Terra Indígena (TI) Pitaguary, no sopé da serra entre os municípios de Maracanaú e de Pacatuba, numa área de 1.735 hectares na Região Metropolitana de Fortaleza, a população Pitaguary teve os limites de suas terras reconhecidos pelo Ministério da Justiça. Possui uma população de cerca de 4.400 indígenas, que compõem 540 famílias residentes em quatro aldeias.
No município de Maracanaú, são 106,648 km² e uma população estimada em 2015 de 221.504 pessoas. É lá onde estão as aldeias Horto, Olho d’Água e Santo Antônio dos Pitaguary. Em Pacatuba, com 131,994 km2, a população estimada em 2015 era de 80.378 pessoas (IBGE, 2016b), e lá está a aldeia de Munguba. Lembrando que no território se encontram famílias indígenas e não-indígenas.
Diante de tantos desafios em um território tão disputado, dada a proximidade com a Capital, a responsabilidade de ser uma liderança foi construída aos poucos pela mãe de Rosa, ela mesmo uma guia já respeitada em seu povo. A matriarca criou Rosa e as irmãs para seguirem seus passos. Com a partida da mãe em 2004, Rosa se deu conta de que precisava seguir em frente, ainda que tivesse medo de fracassar, de não conseguir, de decepcionar. Enfrentou os que perguntavam o que tanto ela queria fazer fora de casa, já que tinha marido e filha. Chorou de saudades da neném, ao saber que ela, aos três anos, dormia agarrada a álbuns de fotografia, quando Rosa precisava viajar e representar seu povo.
Hoje Rosa, aos 50 anos, vê o tempo de outra forma. A filha cresceu, deixou de ser bebê. Ela também deixou de ter medo. Fala com gana sobre a AMICE, a associação de Mulheres Indígenas que nasceu entre os pitaguarys após ser idealizada pelos jenipapo-Kanindé. O objetivo? Empoderar as mulheres e instigá-las a assumir os espaços de poder em suas aldeias, as encorajando e fortalecendo sobre o papel que elas podem desempenhar.
Foi bastante difícil marcar a entrevista, mas quando ela finalmente aconteceu, descobrimos os motivos: o receio de falar à imprensa vinha do medo das facções que vêm, ao longo dos anos, se impondo no local.
Ao perguntar onde poderíamos encontrar uma das caciques da aldeia, um morador disse que lá “todo mundo era cacique”, em tom de galhofa, uma alusão à cisão política local e ao não-reconhecimento de algumas lideranças.
Uma das entrevistadas, que se identificou como católica, afirmou que os indígenas que praticavam a fé dos seus ancestrais eram “macumbeiros”, por haver culto aos antepassados mortos e invocação de espíritos. O território tem, a exemplo de outras aldeias visitadas pela reportagem, pessoas com religiões diferentes.
A barragem Santo Antônio, localizada dentro das terras dos Pitaguary, no lado de Maracanaú, recebe visitantes de fora (o local inclusive é servido por uma linha de transporte coletivo que vai até Fortaleza). O movimento não é visto com bons olhos pelas lideranças, já que há consumo de bebida alcoólica no local, apesar da placa avisando que não é permitido.
Flávia Oliveira
Reportagem especial seriada aborda os principais temas indígenas a partir da perspectiva das mulheres líderes de povos indígenas no Ceará