Os jornalistas Paulo Sarasate e Alfeu Aboim, que estiveram no interior do Estado a serviço desta folha, visitando há poucos dias Juazeiro, apanharam a seguinte entrevista com o Padre Cícero, escrita pelo primeiro especialmente para O POVO:
Juazeiro, 12 (Via - Postal) - Seriam precisamente 13 horas de ontem quando nos dirigimos à residência do Padre Cícero, com o intuito de entrevistá-lo para O POVO.
Transposta a grande praça em que se ergue dominadora a estátua do padre, daí a alguns passos penetramos na travessa onde o mesmo reside, numa casta casa em companhia da beata Mocinha.
Era outro o ambiente. Inteiramente outro. Ao aproximar-se da residência do Padre Cícero, Juazeiro como que se transforma subitamente. Toma outro aspecto. De cidade movimentada e alegre, empório comercial dos mais florescentes do sul do Estado, como se apresenta nas demais artérias públicas, transfigura-se ali, nas cercanias da mansão patriarcal, num verdadeiro foco de fanatismo. Não é mais a cidade clara e sorridente do Cariri, agitada pelo lufa-lufa cotidiano dos que trabalham: é o vil larejo inculto e retardado, a nova e pacífica Canudos dos sertões nordestinos, com a figura tradicionalmente discutida do padre e a ignorância contristadora dos romeiros…
Defronte da casa e um pouco ao lado, quatro ou cinco tendas, armadas ao sol, recheadas de medalhas e rosários para vender, desafiavam o ambiente escuso com o berrante desencontrado nas cores. Eram medalhas e santos de todas as qualidades, inclusive o "Santo" do Juazeiro…
Na calçada, ao longo das sete janelas e principalmente na porta, que estava apinhada, cerca de quarenta romeiros aguardavam resignados a ocasião para eles benfazeja de avistarem-se com o Padre Cícero. Alguns esperavam de joelhos, rezando e um ou outro protestava contra a demora, especialmente uma mulherzinha nervosa, franzina, maltrapilha, que não se cansava de chamar pela beata, aos gritos, no anseio místico de beijar as mãos milagrosas do "meu padrinho".
A beata Mocinha - lembre-se aqui, num rápido parênteses - é a principal intermediária entre o padre e os romeiros. Sem a interferência dela, que tudo manda e tudo pode naquele teto, coisa alguma se consegue…
Mal conformados com a atmosfera irrespirável e repugnante que foramos encontrar ali, deplorando profundamente aquele estado criminoso de retardamento mental, homens, mulheres e crianças mergulhados no mais revoltante fanatismo, sentindo pela primeira vez a energia sem par daquele ambiente - conseguimos entrar na residência do Padre Cícero.
Fizemo-nos anunciar por um porteiro e ficamos na saleta de entrada, à espera do nosso homem. A beata Mocinha, que ali estivera a conversar com umas romeiras, assustou-se com a nossa presença e esgueirou-se manhosamente pelo corredor, desaparecendo de uma vez. Trancou-se em seu quarto, ao que nos informaram, e não força a nossa argúcia, não teria sido vista mais tarde, com o cabelo cotado à la home e as vestes negras, tumularmente negras, a escutar por trás de uma porta a palestra que mantivemos com o patriarca do Juazeiro.
Enquanto este chegava, posemo-nos a examinar a sala de visitas. Admiramos os retratos da mãe do padre e de seu pai, já falecidos, olhamos uma fotografia do mesmo ao lado do ex-senador João Thomé, passamos a vista por outros quadros e daí a segundo estavamos conversando.
Era uma mulherzinha já idosa, cabelos brancos, fala arrastada. Disse-nos que assistira os "milagres" da tão controvertida Maria de Araujo e nos jurou, a pés juntos, que tinha visto certa vez uma hóstia jorrar sangue, quando um sacerdote acabava de tomá-la nas mãos para depô-la nos lábios da beata.
- Vi esse fato com estes olhos que a terra há de comer - disse-nos, por fim, a nossa interlocutora, com uma segurança quase convincente…
Mais alguns minutos decorridos e lá se veio o padre à nossa presença. Pensávamos encontrá-lo abatido, dominado pelos 87 anos de idade que tem vivido, mas deparamo-lo relativamente forte, andando ligeiro e falando apressado.
Abraçou-nos cordialmente, os lábios rasgados num riso franco e jovial, olhar prescrutador e conduziu-nos imediatamente a seu gabinete, à direita do prédio.
- "Padre Cícero", começamos jeitosamente, "somos do O POVO e queremos uma entrevista sua. Algumas palavras sobre o movimento brasileiro".
- "Não", respondeu de pronto, com uma resolução que podia parecer definitiva. "Por hora não posso falar. Estou de resguardo…"
Rimos conjuntamente da pilheria e deixamos que ele proseguisse:
- "Eu agora sou apenas um espectador dos acontecimentos. Aprecio os fatos e olho as coisas com uma grande vontade de que tudo se faça como eu desejo".
E, iniciando sem pressentir, a entrevista que solicitaramos:
"A futura Constituição, por exemplo, não deve ser atéia. O Brasil é uma nação católica e precisa viver com Deus. Sou partidário da Igreja unida ao Estado, porque sou católico apostólico romano, e me oriento pelo credo, que é o símbolo da Religião e da Fé. Deus é quem governa o mundo e os homens. Só o Criador é universal e absoluto".
Resolvemos cortar a digressão filosófica do padre, que promettia prolongar-se, e o interpelamos sobre o movimento revolucionário.
"E agora", respondeu-nos com um desembaraço de frases que bastante nos admirou e que se fez sentir em toda a palestra, "é agora o momento oportuno para se fazer um Brasil novo, com um futuro brilhante e cimentado em princípios divinos".
Como se vê, o Padre Cícero raramente se afasta da ideia de Deus. Toda a sua conversa desenvolta e não raro atraente, é pontilhada desse espírito religioso, dessa quase obsessão teológica.
E assim continuou ele a falar sobre:
"A revolução foi uma intenção que Deus entregou os brasileiros para se libertarem. Os homens põem e Deus dispõe. Os homens deram impulso à Revolução e Deus ordena que se faça um Brasil novo e grande, debaixo de princípios que sejam a manifestação da vontade do nosso povo. Eu desejo que os novos governantes sejam sobretudo administradores e não donos de uma grande fazenda como vinha acontecendo até agora. Que nação os faça, os eleja zeladores e defensores da Pátria e do povo e não senhores de uma senzala, para venderem-na aos pedaços a quem mais der".
Tudo isso o Padre Cicero ia dizendo pausadamente, medindo as palavras, mas com gestos largos e repetidos, extendendo e abrindo os braços, principalmente o esquerdo, que ele movimenta com mais frequência, ora puxando o lenço, ora ajeitando os óculos. Os óculos de tartaruga esverdeada com que procura aliviar-se da catarata impertinente que lhe anuvia a vista, embranquecendo-lhe o azul brilhante dos olhos…
"Que pensa de Juarez Tavora?"
"É um homem distemido e bravo", explicou vivamente, quase a nos cortar a pergunta.
E insistiu, sempre dominado pela mania religiosa.
"É um dos elementos que Deus destacou para fazer-se uma Pátria nova e feliz".
"Confia por inteiro na ação de Juarez?"
"Tanto assim não posso adiantar. Mas conheço sua família e a sei católica. Sou até padrinho do Ademar, irmão de Juarez, e da Benigna, irmã dele. Tive cuidados e vexames enormes quando ele vinha como um dos chefes da Revolução, em vinte e seis. Já desejava que ele se salvasse, se desligasse dela, para não morrer. Também me preocupei muito, naquele tempo, com a sorte do dr. Távora, que esteve perseguido".
E passou o padre a contar a história de um positivo que mandara a Fortaleza, naqueles tempos sombrios da segunda Revolução, destinado exclusivamente a avisar ao atual interventor do Ceará que se retirasse do Brasil, porque do contrário seria preso.
"Mandei até dizer-lhe", concluiu, "que não se fiasse absolutamente na proteção de Moreirinha, que esta não valia nada".
Qual seria a opinião do Padre Cicero Romão Batista sobre os governos depostos? A sua opinião de agora?
Atacamos o assunto:
"Que pensa de Washington Luiz e seu governo, padre?"
"Não penso nada. Não quero emitir juízo sobre quem já morreu".
E prosseguindo, contou-nos sorridente que já estava até de amizade encetada com o Catete, sucedendo o mesmo com relação aos senhores Júlio Prestes e Matos Peixoto. Nunca lhes desejei mal, nem o deseja agora, porque costuma mesmo pedir bençãos para todo o mundo. "O que eu quero", disse-nos textualmente com aquela filosofia toda sua, "é que os maus se convertam e vivam. Cada individuo seja bom e perfeito - e progrida".
Nada conseguiramos a respeito do sr. Washington. Seria conveniente tentar ainda a sua opinião sobre o sr. Peixoto? Arriscamos: "Que diz do governo Peixoto?"
"Também não digo nada", replicou o nosso entrevistado. E explicou com um traço mal disfarçado de ironia: "Não digo nada porque vocês sabem melhor do que eu…"
A seguir, como alguém avançasse na roda que o casal Matos Peixoto era ateu, o Padre Cicero, satisfeito, vaidoso, procurou convencer-nos de que modificara o pensamento anti-religioso do ex-presidente e sua senhora quando ambos visitaram o Juazeiro.
Faltava ouvir o pensamento do padre sobre o chefe do governo provisório. Foi o que fizemos a seguir para obter a seguinte resposta:
"Desejava calar sobre o dr. Getúlio Vargas porque estamos muito longe. Mas só tenho razões para julgá-lo um homem de bem. Já tive até relações com ele por telegramas da Fazenda e mesmo quando foi presidente do Rio Grande. Desejo-lhes, pois, muitas felicidades e digo isso sinceramente, muito sinceramente".
Conhecíamos a admiração do padre pelo sr. Epitácio Pessoa e, por isso, não foi com surpresa que o ouvimos logo depois desfazer-se em elogios ao ex-presidente da República, um dos maiores homens do país, segundo o seu modo de pensar.
Muito loquaz, espantosamente loquaz, o patriarca do Juazeiro tomara gosto pela palestra e não se calava mais um segundo. Era uma verdadeira máquina falante, a emitir opiniões sobre os mais variados motivos. E destarte, por sua conta, atacou a questão dos ministérios:
"Em vez de se salvar o País com impostos e empréstimos (o Padre Cícero é um ardoroso inimigo dos empréstimos e das concessões estrangeiras), em vez disso, os dirigentes da pátria devem criar um novo ministério destinado especialmente a desenvolver as nossas riquezas naturais, as grandes riquezas que Deus nos deu. Faça-se, pois, um Ministério das Minas e Florestas. É assim que se age, e não vendendo o País aos estrangeiros. Eles comem bananas e nos atiram as cascas…"
Outra impressionante faceta do espírito do Padre Cícero é o seu apegado amor pelos acontecimentos históricos e pelo que se passa nos países de além-mar. Em seu gabinete, pouco abaixo de uma fotografia sua, ainda seminarista, vê-se, colorida, uma estampa intitulada "Pantheon universéle des personages más celebres". No decorrer das palestras, de vez em quando ele cita um fato histórico, relembra outro, evoca um heroísmo, de modo a mostrar erudição no assunto.
E nestas condições para defender a tese do Ministério das Minas, foi parar conosco na longínqua Pérsia.
"Calculem", acentuou-nos, "que um homem semi-bárbaro, como o imperador da Pérsia, tratou do assunto em seu País e organizou várias comissões para explorar as minas daquela região. Imitemos, pois, o imperador dos persas".
Concordamos habilmente com a maneira de pensar do velho sacerdote e ele proseguiu: "E, se for possível, criemos também um Ministério de Culto, Ensino, Ciência, Higiene e Bons Costume, para melhor realizar a reconstrução moral do País. Feito isso, eu ficaria satisfeito, certo de que tudo estava nos eixos".
- "Qual a sua opinião sobre o Tribunal revolucionário?"
- "Eu me calo a respeito, porque não conheço substancialmente os seus principios de existência".
- "Mas acha que os culpados devam ser punidos?"
- "Nessa matéria", replicou o padre, sustentando os óculos, "nessa matéria, eu não sou professor certo. Teoricamente, em princípio, sou pela punição. Mas, na prática, a meu ver, as coisas não saem certas. E a condenar inocentes, é preferível perdoar, que é sempre melhor e mais agradável".
Tratando-se, no momento de assuntos políticos exclusivamente, há de parecer estranho aos leitores o sub-título acima: o imposto territorial. A verdade, no entanto, é que, sem querermos, fomos forçados a ouvir uma longa exposição do Padre Cícero a respeito dessa tributação, que ele considera iníqua, odiosa, injustificável. Tem uma verdadeira ojeriza ao referido imposto e está obcecado, profundamente obcecado pela ideia de combatê-lo.
E é somente por isso, unicamente pela vontade do entrevistado, que se toca aqui na matéria tributária em apreço.
Para encerrar a palestra, que já se prolongava, interrogamos o taumaturgo de Juazeiro sobre o comunismo. E foi com extraordinária vontade de rir que lhe escutamos a opinião:
"O comunismo", afirmou enfaticamente o Padre Cícero, foi fundado pelo demônio. Lúcifer é o seu chefe e a disseminação de sua doutrina é a guerra do diabo contra Deus. Conheço o comunismo e sei que é diabolico. É a continuação da guerra dos anjos maus contra o Criador e seus filhos".
Tomou alento e prosseguiu mais patético:
"Conheço a Rússia desde a minha meninice e sei que ela é um campo imenso de assassinatos, cometidos por governos que querem destruir moral e materialmente a Nação. Lênin foi um sargento do exército e nada mais. Era, além disso, um judeu pelo espírito e pelo sangue. Só os seus discípulos consideram-no um grande homem. Os espíritos sensatos não pensam desse modo. O partido de Lênin é o partido do Anti-Cristo, dito e anunciado por S. João, no Apocalipse. E chegará a governar o mundo, quando faltarem três anos para o incêndio final, porque tudo isso está escrito nos livros santos…"
Estava terminada a entrevista. Convidamos, então, o padre Cícero para se deixar fotografar ao nosso lado. Ele acedeu de bom grado, alegremente, mas insistiu numa coisa: fazer a barba e mudar a batina para não parecer velho na fotografia...
Daí a pouco, ao sairmos da casa do bondoso padre, ouvimo-lo acentuar na despedida, como se alguém lá dentro o tivesse aconselhado lá dentro, quando ele foi mudar a batina: "Olhem bem, eu não sou inimigo do Peixoto"...
Um dos presentes, porém, chegou-se-nos ao ouvido e, apontando para a sala de visitas, adiantou-nos maldosamente que não estava mais ali, como de costume, o retrato do presidente deposto...
Saímos. À porta, era maior o número de romeiros. A onda avolumara-se pouco a pouco para aumentar, talvez, a nossa desolação ante aquele ambiente asfixiante de miséria e fanatismo.
E um homem pálido, barba crescida, imundo e asqueroso, revoltado por não ter merecido ainda o favor de ser recebido pelo "padrinho", atirou à nossa passagem estas palavras irônicas e mordazes, humanamente filosóficas:
"Deixem-me entrar que eu também sou rico! Eu também sou rico!"
(Matéria publicada em fevereiro de 1931)
Série com seis episódios oferece um passeio histórico pelas páginas do O POVO com personagens que marcaram a cultura, a política e a sociedade cearense