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Demócrito Rocha enfrenta autoritarismo no início do século XX no Ceará
Reportagem Seriada

Demócrito Rocha enfrenta autoritarismo no início do século XX no Ceará

O POVO publica em setembro de 1928 foto dos agressores do jornalista Demócrito Rocha. Policiais espancaram, em 1927, o fundador do jornal devido a críticas feitas por este ao governo de Moreira da Rocha
Episódio 2

Demócrito Rocha enfrenta autoritarismo no início do século XX no Ceará

O POVO publica em setembro de 1928 foto dos agressores do jornalista Demócrito Rocha. Policiais espancaram, em 1927, o fundador do jornal devido a críticas feitas por este ao governo de Moreira da Rocha
Episódio 2
Tipo Notícia Por

O fato ocorreu em 1927. Era o auge da desavença entre o jornalista Demócrito Rocha (1888-1943) com o governador do Ceará, Moreira da Rocha, eleito em 1924. Então redator do jornal O Ceará, Demócrito Rocha não poupava críticas ao político cearense, considerado um governante “autoritário, déspota e corrupto”.

Relato da agressão policial sofrida por Demócrito Rocha (Foto: O POVO.Doc)
Foto: O POVO.Doc Relato da agressão policial sofrida por Demócrito Rocha

No dia 18 de setembro de 1928, O POVO estampa a manchete “Heroes do Moreirinha”, com a foto dos oito policiais que o agrediram no dia 1º de junho do ano anterior. “Um dos fatos mais vergonhosos registrados no governo Moreirinha foi, sem dúvida, a agressão levada a efeito por oito oficiais da polícia à pessoa do jornalista Demócrito Rocha”, lê-se logo no início do relato.

De acordo com a narrativa contada na primeira página do jornal, Demócrito Rocha foi agredido em pleno centro de Fortaleza, à rua Major Facundo. Havia bastante movimento naquele fim de tarde de uma quarta-feira, quando o jornalista fora agarrado por quatro policiais enquanto os outros lhe desferiam bengaladas e coronhadas de revólveres.

Demócrito Rocha e as filhas Albanisa e Lúcia Rocha(Foto: O POVO.Doc)
Foto: O POVO.Doc Demócrito Rocha e as filhas Albanisa e Lúcia Rocha

Demócrito Rocha, conta a notícia, foi socorrido por passantes, mas isso não o impediu de ser preso e levado à delegacia de Fortaleza. “A multidão indignada, vaiou as autoridades e esperou a saída do jornalista da delegacia e o acompanhou, ovacionando-o, até sua residência”, prossegue o texto. Mesmo solto e em casa, a violência seguiu em frente.

“Na ocasião em que, na porta do seu lar, falava ao povo, agradecendo aquela manifestação que o confortava, partiu da delegacia um pelotão armado de sabres, revólveres e punhais, a fim de espancar o povo”. O texto dá conta de que houve cenas “horríveis” de violência contra as pessoas que ouviam o discurso de Demócrito Rocha.

Entrevistas Históricas - Demócrito Rocha(Foto: Carlus Campos)
Foto: Carlus Campos Entrevistas Históricas - Demócrito Rocha

Lúcia Rocha Dummar (1907-2013), filha de Demócrito, rememora o episódio quase oito décadas depois, em 2006, numa entrevista ao POVO. Menina, com 10 anos, lembra-se do pai fazendo o discurso na varanda do sobrado onde a família morava à rua Major Facundo. “Papai com a camisa ensanguentada profere, na sacada superior do sobradinho um discurso à multidão revoltada. Enquanto Demócrito falava, percebeu de relance a cavalaria invadindo o quarteirão pelos dois lados opostos, fechando a rua e comprimindo a multidão. Não tendo para onde ir o povo terminou espancado a mando do governo. Seria inconcebível nos dias hoje tamanha violência por conta do livre exercício da crítica através da imprensa”, afirmou Lúcia Rocha.

O ideário do jornalismo republicano

Capa da Ceará Illustrado, revista criada pelo jornalista Demócrito Rocha, em 1924. A revista circulou até 1925(Foto: Acervo pessoal )
Foto: Acervo pessoal Capa da Ceará Illustrado, revista criada pelo jornalista Demócrito Rocha, em 1924. A revista circulou até 1925

Antes de fundar O POVO em 7 de janeiro de 1928, o poeta e jornalista baiano, radicado em Fortaleza, trabalhou como redator no jornal O Ceará e fundou a revista O Ceará Illustrado, que se tornou uma referência de inovação jornalística. Entre 27 de abril de 1924 e dezembro de 1925, Demócrito Rocha abordou temas culturais, sociais e políticos na revista e claro, Moreira da Rocha foi até capa.

Em agosto de 1925, o governador do Ceará aparece numa charge de capa da Ceará Illustrado, numa charge que aborda a polêmica do voto secreto no estado. Quando Demócrito Rocha sofreu a agressão da política de Moreirinha, já planejava fundar um jornal. Havia criado até o concurso para a escolha do nome do novo veículo, numa campanha feita no próprio O Ceará, de propriedade do jornalista Júlio Ibiapina. Em 7 de janeiro de 1928, O POVO nasce com um chicote na logo e tem como propósito “o empenho constante de apontar aos homens de Estado o caminho republicano”.

Convulsão social e violência da polícia

Capa da revista Ceará Illustrado com charge do Moreirinha, adversário político de Demócrito Rocha (Foto: Acervo pessoal )
Foto: Acervo pessoal Capa da revista Ceará Illustrado com charge do Moreirinha, adversário político de Demócrito Rocha

A vida pública do juiz José Moreira da Rocha havia começado alguns anos antes quando o oligarca Antônio Pinto Nogueira Acioli o havia escolhido para preencher uma vaga de desembargador no Estado. Em 1923, por meio de um acordo que reuniu os conservadores ainda ligados ao grupo de Acioli e os democratas, Moreira da Rocha foi eleito. No entanto, o caldo da coalizão engrossou rapidamente, elevando a tensão do cenário político

Em 1925 havia sido promulgada a Carta Magna que ficou conhecida como a “Constituição do Voto Secreto”, mas as práticas políticas anteriores que incluíam troca de favores pelo voto seguiam em alta em todo o Ceará.

Além das ações consideradas “antirrepublicanas”, Moreira da Rocha enfrentava um cenário econômico e social desastroso. A pobreza ocupava os quatro cantos da pequena cidade, impulsionada pelas estiagens que tornava Fortaleza a esperança para centenas de sertanejos. O banditismo, por outro lado, corria solto no sertão, sem falar da violência policial que atingia uma situação alarmante.

A má atuação do governo nessa conjuntura atraía a atenção dos opositores. Demócrito Rocha a chamava de “desmandos do Moreirinha” e contra eles dirigia sua pena.

A execução de presos no interior cearense era uma das acusações mais graves que recaíam contra Moreira da Rocha. As denúncias davam conta que criminosos estavam sendo “exterminados” sem garantias de julgamento perante a lei. Em Juazeiro, Floro Bartolomeu era acusado de cumprir ordens de Moreirinha quanto à matança de bandidos.

Na foto: Estátua de Floro Bartolomeu, na Câmara de Vereadores de Juazeiro do Norte Foto: Iana Soares, em 03/06/2011 *** Local Caption *** Publicada em 09/05/2012 - PO 21(Foto: IANA SOARES)
Foto: IANA SOARES Na foto: Estátua de Floro Bartolomeu, na Câmara de Vereadores de Juazeiro do Norte Foto: Iana Soares, em 03/06/2011 *** Local Caption *** Publicada em 09/05/2012 - PO 21

Para tentar apaziguar os ânimos, em 1925, o governador enviou mensagem negando qualquer conivência com a morte de presos. O próprio Floro Bartolomeu chegou a criar o jornal Gazeta de Juazeiro para se defender das acusações. A fim de se distanciar do governador, publicava cartas de pessoas que “sustentavam que a força pública tinha fuzilado presos” por ordem do governo.  

Partidos, ideologia e religião impulsionam
surgimento de jornais no início do século XX

FORTALEZA,CE,BRASIL,05.09.2019: Carla Sabino, pesquisadora e professora do Departamento de História da UFC. (foto: Tatiana Fortes/ O POVO)(Foto: Tatiana Fortes)
Foto: Tatiana Fortes FORTALEZA,CE,BRASIL,05.09.2019: Carla Sabino, pesquisadora e professora do Departamento de História da UFC. (foto: Tatiana Fortes/ O POVO)

A expansão do jornalismo impresso marcou os primeiros anos do século XX em todo o Brasil. No Ceará, surgiram quase duzentos periódicos nos anos de 1920. De acordo com o trabalho do historiador Geraldo Nobre circulavam, ao todo, 194 veículos.

Segundo a professora do Departamento de História da UFC, Ana Carla Sabino, os impressos tinham características semelhantes que giravam em torno das questões partidárias, ideológicas, religiosas entre outras. Ela destaca também que a primeira metade do século XX foi “tomada pelo autoritarismo dos poderes e agentes público”.

O POVO - O século XX chegou com uma explosão de veículos impressos no Brasil e, claro, no Ceará. O que caracterizava essas publicações?

Ana Carla Sabino - Os jornais e as revistas cearenses publicados no século XX acompanham o contexto nacional do Brasil de publicações de periódicos com características partidárias, políticas, ideológicas, religiosas, sociais, culturais e econômicas distintas e, ao mesmo tempo, semelhantes àqueles periódicos que surgiram no século XIX, especialmente, na segunda metade do século.

Ou seja, a grande maioria dos impressos que foram produzidos neste século, em Fortaleza, como em diversos municípios cearenses (em menor quantidade), continuaram pertencendo a grupos, a associações e a indivíduos, principalmente homens, representantes da elite econômica, intelectual e partidária.

Mas, também foram editados por estudantes, grêmios literários, mulheres escritoras e por trabalhadores como o Voz do Graphico (1920) da Associação Gráfica do Ceará.

A grande maioria dos impressos que foram produzidos neste século, em Fortaleza, como em diversos municípios cearenses, continuou pertencendo a grupos, a associações e a indivíduos, principalmente homens, representantes da elite econômica, intelectual e partidária.

Barão de Studart, integrante e um dos fundadores do Instituto do Ceará, estudioso da imprensa cearense, entre o final do século XIX e meados do século XX, inventariou e classificou boa parte dos jornais cearenses e publicou inúmeros catálogos nas Revistas do Instituto do Ceará. 

https://www.institutodoceara.org.br/instituto.php

Em perspectiva geral os jornais que foram criados e se sustentaram no século XX, em Fortaleza, agregaram, por exemplo, em seus editoriais, prerrogativas fortemente comerciais (perceptível com o crescimento dos anúncios publicitários e da criação de enormes redes de comunicação), ou de uma moral, conservadora, como o jornal O Nordeste, fundado em 1922, pela arquidiocese de Fortaleza.


O POVO - O que podemos afirmar sobre as relações de força que se davam por meio da imprensa do início do século XX com os poderes de então?

Ana Carla - As relações de força encaradas pela imprensa, incluindo o caso do Ceará, início do século XX, no que se refere aos processos políticos e partidários que envolveram a instauração do governo Republicano e ao tradicionalismo do poder católico, podem ser representadas a seguinte forma: nem todos os jornais e nem todos os jornaizinhos (jornais de grande e pequeno formato, segundo classificações generalistas e eufemistas de Barão de Studart), agiram para se enquadrar ou para romper/negar o contexto do avanço do capitalismo na sociedade brasileira e no jornalismo, claro.

A pobreza que assolava a grande maioria da população de Fortaleza, nesse período, devido às práticas coronelistas e do tradicionalismo católico, pouco serviu de pauta para as “empresas” jornalísticas.

A conclamação da verdadeira revolução, que tencionava o governo republicano e os discursos excludentes da igreja católica pela imprensa aconteceu nos/com os impressos dos operários.

A primeira metade do século XX, no Brasil, foi tomada pelo autoritarismo dos poderes e agentes públicos, censura aos meios de comunicação e por práticas ditatoriais, das quais sofreram jornalistas, artistas, jovens estudantes e professores.

O POVO - No Ceará, - assim como no Brasil, a violência contra jornalistas e veículos não era raro no meio jornalístico. Em Fortaleza, o jornalista Antônio Drumond fora assassinado na redação do Gazeta de Notícias (1930), Demócrito Rocha foi espancado por policiais possivelmente a mando do governador Moreira da Rocha (1927). Nesse ambiente, como se dava o discurso da liberdade de expressão, um dos pilares do movimento liberal republicano?

Ana Carla - A primeira metade do século XX, no Brasil, foi tomada pelo autoritarismo dos poderes e agentes públicos, censura aos meios de comunicação e por práticas ditatoriais, das quais sofreram jornalistas, artistas, jovens estudantes e professores que se opunham, por exemplo, ao aprendizado de livros como o Catecismo constitucional do Estado do Ceará, proposta de ensino cívico escolar (com perguntas e respostas prontas), suscitado pelo jornalista (redator de vários jornais) e historiador Eusebio de Souza em 1913 (Souza também foi membro do Instituto do Ceará).

 

Episódio 3

O terceiro episódio da série O POVO é história estreia no dia 22/9, e vai mostrar como o beato José Lourenço assustou e despertou o ódio das elites políticas ao fundar o Caldeirão no Sertão do Ceará.

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