As frutas não são os únicos alvos dos projetos que buscam dar uma nova cara ao agronegócio cearense. Esforços conjuntos de empresários e Governo do Estado têm obtido resultado no desenvolvimento de sementes de grãos com alta produtividade.
De olho nos polos produtores de soja, milho e trigo do Exterior, do Centro-Oeste brasileiro e da região de serrado entre Maranhão, Tocantins, Bahia e Piauí (Matopiba), empresas produzem essas sementes cujo valor pode superar o do grão em até 15 vezes.
Neste nicho do agro, o investidor não precisa de grandes terrenos para plantar. Ao contrário, são necessárias áreas menores onde o acompanhamento da planta seja feito com total atenção e ambiente controlado. Com isso, a capacidade produtiva do grão pode ser atestada com mais exatidão. Assim, o Ceará se torna um ambiente propício ao negócio.
“O grande produtor do Centro-Oeste, do serrado do Matopiba, não vai produzir semente lá porque não vale a pena. O plantio nessas áreas é extensivo. Aqui, no Ceará, com 100 hectares conseguimos produzir sementes com os cuidados especiais necessários, com controle do clima, irrigação...”, explica Erildo Pontes, coordenador de Recursos Hídricos para o Agronegócio da Secretaria do Desenvolvimento Econômico e Trabalho do Ceará (Sedet-CE).
Esse ambiente controlado, segundo Pontes, é que despertou o interesse de investidores que atuam com soja na fronteira entre Brasil e Bolívia pelo Ceará. O intermediador foi, mais uma vez, o professor Osvaldo Yamanishi, da Universidade Nacional de Brasília (UNB). O pesquisador serviu de guia, apresentando a Serra da Ibiapaba e a Chapada do Araripe.
“Eles plantam cerca de 12 mil hectares de soja por lá. Falaram ainda em desenvolver sementes de chia e quinoa aqui. Mas ainda estão estudando”, contou o coordenador da Sedet. Mas, mesmo sem a participação de investidores com atuação no estrangeiro, o Ceará se mostra promissor no ramo das sementes.
De contrato assinado para fornecimento de sementes com a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), produtores do Mato Grosso, o governo cearense e quase todos os governos dos estados do Nordeste – exceto Bahia, Rio Grande do Norte e Sergipe –, a Beckman Sementes demonstra o potencial do negócio no Estado.
"Ano passado, produzimos algo em torno de 2,3 mil toneladas entre milho híbrido, milho variedade, feijão, arroz, algodão e sorgo. O Ceará adquiriu 1,4 mil toneladas, tudo produzido aqui. As outras 900 toneladas foram para os demais clientes. E, hoje, eu não consigo mais atender os pedidos por falta de capacidade. Eu atendo em Mato Grosso com 15 mil sacos de semente, e tem mercado para no mínimo 70 mil sacos lá."
A procura tem motivo: as plantas acompanhadas pela empresa rendem até 200 sacas por hectare, enquanto as outras variedades entregam 80 sacas por hectare. A qualidade do produto ainda conta com certificações regionais e nacionais, como faz o próprio Ceará e a Embrapa, mas também com internacionais.
O CEO afirma que a Beckman é a única empresa do Brasil cujas sementes são certificadas em parceria com a KWS – empresa de melhoramento genético que atua na Europa, América e China.
O foco na tecnologia de produção tem início ainda na origem na empresa, por volta de 2007, quando investiu na mamona e se tornou “a maior produtora de mamona na América Latina e a única com capacidade técnica em comercializar mamona para Petrobras”, segundo destaca o CEO.
Os contratos que somaram US$ 1 milhão anuais deram o capital necessário para aplicar em pesquisa e desenvolvimento e, com o fim da produção de biodiesel pela estatal, a empresa investiu no desenvolvimento de outras sementes.
Atualmente, a Beckman tem unidades em Crateús (CE), Caxias (MA), e Maracá do Sena (MA) – nesta última cidade trabalha apenas com o cultivo de grão, e não semente. E uma ampliação já está em execução em Crateús para atender a demanda crescente pelos produtos.
“O investimento calculado está entre R$ 5 milhões a R$ 6 milhões, com tudo: terreno, edificação, dois galpões de 1,2 mil m², câmara fria para 400 toneladas de semente, sala de treinamento, administração e vamos transferir o laboratório”, detalhou.
Com a ampliação, ele espera encurtar a colheita de 2,3 mil toneladas em 5 meses, com uma janela de produção menos apertada.
Além das sementes, a Beckman atende os governos estaduais com arroz, feijão e canjiquinha biofortificados – os alimentos, neste caso, têm aumento na composição dos minerais ferro e zinco, assim como da vitamina A, e são alvos de compras de projetos como o Hora de Plantar, do governo cearense.
Ao todo são quatro empresas do mesmo grupo, que atuam desde a produção de sementes, plantio dos grãos até a comercialização e transporte.
O mercado externo também está no radar da empresa, revela o CEO, que deve enviar 2 toneladas de sementes de amendoim para a Itália.
O contato com o comprador foi feito pela Embrapa. Uma amostra de sementes foi enviada, bem avaliada e o negócio foi fechado. Em junho, pela estimativa dele, a carga deve ser embarcada.
Como todo agricultor em atividade no Ceará, João Beckman aponta o abastecimento de água como um dos principais desafios para ampliar a produção.
O trabalho com ambiente controlado para o desenvolvimento das sementes torna a irrigação uma técnica imprescindível para o negócio e a insegurança hídrica surge como limitador, na avaliação dele.
“Para você ter ideia, eu investi no Maranhão porque o solo e a água são mais fáceis. Mas o Ceará é um ambiente melhor para o empreendedor. O desafio é a água”, desabafa, afirmando que deve manter a produção em 2,3 mil toneladas neste ano por conta da incerteza hídrica e outro gargalo.
Soma-se ao abastecimento ainda o preço dos insumos. O CEO da empresa diz ter sofrido com a crise dos contêineres deflagrada ainda em 2020, quando a maioria dos equipamentos de transporte estavam na China e o frete marítimo para trazê-los de lá tornou-se extremamente caro para alguns setores produtivos.
Isso afetou a compra de adubos, vindos da China e da Rússia, comprometendo a produção, uma vez que dependendo da época de uso, é possível conseguir atender mais clientes. A alta dos preços chegou também nas máquinas utilizadas no cultivo. Beckman contabiliza sete meses de espera para receber um equipamento novo, “com tudo liberado pelo banco.”
“Meu problema não foi a safra 2020/2021. Meu problema vai ser a safra 2021/2022, pois já tenho impacto sobre o custo da produção. Já compramos insumos de 42% a 50% de aumento”, lamenta.
O Ceará também chegou a contar com a produção de grãos de trigo pela Santa Lúcia Alimentos, que teve a atividade interrompida por dificuldades semelhantes às de Beckman. As safras ocorreram em dois anos seguidos, 2019 e 2020 – inicialmente em Tianguá, na Serra da Ibiapaba, e na Chapada do Apodi, e, depois, em Icapuí, na parceria com a Agrícola Famosa.
“Quando fizemos isso foi o grande boom e grande sucesso. Tivemos um ciclo de 73 dias e produtividade de 6 toneladas por hectare. Todo através de projeto de irrigação”, conta o CEO da Santa Lúcia, Alexandre Sales.
Mas a fusão da parceira com a espanhola Citri&Co paralisou a investida, que ele espera retomar em 2022. Enquanto isso, investe no Maranhão no mesmo modelo, pelo qual fornece as sementes e compra toda a produção. No estado vizinho, Sales diz atingir 4 toneladas por hectare e tem projeção de chegar a 6 toneladas na mesma área, como alcançou em terras cearenses.
“No Ceará, estou buscando parceiros para desenvolver essa cultura em maio na região do Apodi. Acredito que vamos ficar na base de 6 a 6,5 toneladas por hectares lá”, projeta.
Com fábrica em Aquiraz, na qual produz macarrão, biscoito, casquinha de sorvete e farinha de trigo, é estratégico ter a produção de trigo mais próxima. Afinal tudo é consumido pela indústria, com necessidade de mais. O Brasil todo é deficitário de trigo e importa boa parte da produção argentina.
Sobre a superação desses gargalos, Sales diz confiar que a chegada das águas do Rio São Francisco ao Ceará dê um novo fôlego aos produtores.
"Eu preciso que os outros acreditem com a gente, pois vejo um projeto de futuro com viabilidade. Trigo traz rentabilidade interessante, subiu muito o preço de venda. O custo também, mas as diferenças são consideráveis e traz uma belíssima rentabilidade para o produtor. "
A produção de dois anos da Santa Lúcia Alimentos, no entanto, não apareceu no Levantamento Sistemático da Produção Agrícola (LSPA) feito pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e que mensura a safra de diversas culturas em todos os estados brasileiros. Os dados dos últimos cinco anos de produção constam zero toneladas de trigo no Ceará.
Dentre as colheitas de grãos de maior volume e cuja produção de semente é alvo das iniciativas feitas por Sedet e Beckman estão feijão e milho. As três safras de feijão somadas representam um total de 111.262 toneladas produzidas no ano passado, de acordo com a LSPA. Já as duas de milho alcançam 415.139 toneladas.
Mas, apesar de representar o maior volume dentre os grãos produzidos no Ceará, a safra de milho é apenas a 17ª do País e a 4ª do Nordeste - distante das 32.455.544 toneladas de Mato Grosso – unidade da federação onde há maior quantidade de tonelada colhida de trigo.
O mesmo acontece quando o grão comparado é a soja. Além disso, a região entre Maranhão, Bahia, Piauí e Tocantins tem se mostrado um ambiente promissor para a produção de grãos nos últimos anos, o que vem sendo demonstrado no LSPA.
Ao O POVO, o IBGE no Ceará comenta que os dados que constam no Sistema IBGE de Recuperação Automática (Sidra) não armazenam todas as informações por estado e enviou relatório detalhado de dezembro de 2020.
No entanto, como o último ano não contou com produção comercial de trigo no Ceará, só há registros de 43 toneladas previstas em janeiro, no modelo de agricultura de sequeiro (técnica agrícola para cultivar terrenos onde a pluviosidade é diminuta) e não irrigada. Mas esta área não vingou e, em dezembro, o resultado foi zero.
Para 2022, Alexandre Sales busca uma nova parceria com os europeus que adquiriram uma fatia da Agrícola Famosa e estuda ainda outras áreas do Estado nas quais também deve tentar projetos com produtores locais para uma nova safra local.
No entanto, o desenvolvimento de sementes de alta capacidade produtiva certificadas pela Embrapa ou por órgãos e empresas de reconhecimento internacional parece mais promissor dada a experiência da Beckman e o interesse de investidores de fora do Estado. Com isso, sementes desenvolvidas no Ceará poderão ter em estados como Mato Grosso, Goiás e Paraná clientes em potencial.
É o tipo de negócio, segundo observa Erildo, que não emprega em massa, mas emprega em qualidade. São técnicos, engenheiros e cientistas impulsionando um setor que tem reflexo direto - especialmente sobre a geração de emprego e renda - sobre a logística e o comércio.
Reportagem seriada sobre culturas nobres em cultivo no Ceará