Mesmo com parte da população em casa devido à pandemia, o consumo de álcool e de cigarro tem sido mais frequente para os brasileiros. O uso abusivo dessas e outras drogas, lícitas ou não, preocupa. Isso porque o consumo de psicoativos está estreitamente ligado a sintomas de doenças mentais, como ansiedade e depressão.
Para quem faz uso das drogas, estas parecem ajudar a lidar com o estresse e preocupações acentuados com a pandemia da Covid-19. Contudo, o abuso no consumo de psicoativos, a médio e longo prazo, traz riscos de dependência.
Conforme a pesquisa de comportamento Convid, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), 18% das pessoas relataram aumento no consumo de álcool e 34% de tabaco na pandemia. Quanto à ingestão de bebidas alcoólicas, os maiores aumentos foram registrados na faixa etária de 30 a 39 anos (24,6%) e de 18 a 29 anos (18,6%). Esse acréscimo foi associado à frequência de se sentir triste ou deprimido. Dos que relataram maior uso, 24,2% se sentiram dessa forma sempre que beberam.
Paulo Borges, pesquisador do Laboratório de Informação em Saúde do Instituto de Comunicação e Informação Científica e Tecnológica em Saúde (Icict/Fiocruz), responsável pela pesquisa, alerta para “relação forte com problemas de saúde mental tanto no aumento no consumo de álcool como no de cigarro”.
Renata Brasil Araújo, presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), explica que as pessoas fazem uso das substâncias como estratégia de enfrentamento para lidar com os sentimentos e incertezas da pandemia. “Em um primeiro momento, há sensação de alívio, mas depois causa desequilíbrio neuroquímico que induz os sintomas de ansiedade, por exemplo, que a pessoa quer evitar”, relaciona a psicóloga, que é chefe da Unidade de Desintoxicação e coordenadora dos Programa de Transtornos Aditivos e Terapia Cognitivo-Comportamental do Hospital Psiquiátrico São Pedro.
Para o psiquiatra Rafael Baquit, que atua no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto e no Centro de Atenção Psicossocial - Álcool e Drogas (Caps AD) de Caucaia, o consumo de psicoativos faz parte de uma cultura. “Acontece para aliviar. Algumas vezes, é abusivo e está associado a riscos e danos. A gente já vivia um contexto de saúde mental preocupante e crescente”, alerta o médico, que integra o Movimento Brasileiro de Redução de Danos e o Coletivo Rebento - Médicos em defesa da Ética, da Ciência e do SUS.
Ele aponta que, além da questão socioeconômica, com as perdas e lutos por causa do novo coronavírus, principalmente em um período em que os rituais foram proibidos para evitar o contágio, “as pessoas tiveram uma total mudança nos jeitos de viver”. "A droga nunca é um problema que se explica por si só. Tem algo por trás. Quase sempre tem comorbidade psiquiátrica, como psicose, esquizofrenia. É importante entender o que leva a esse uso problemático", detalha.
Isolamento muda hábitos de consumo de psicoativos
Dados preliminares do levantamento “Uso de álcool e outras drogas na quarentena”, do Centro de Convivência É de Lei, mostra que 38,4% pessoas relataram aumento do consumo de psicoativos, legalizados ou não. Para 71,46% dos que usaram psicoativos na quarentena, o consumo se deu para evitar problemas, responsabilidades ou discussões. A pesquisa foi realizada com apoio do Grupo de Pesquisas em Toxicologia e do Laboratório de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (Leipsi), ambos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
O comportamento de consumo foi heterogêneo e variou entre as substâncias, conforme a avaliação da pesquisadora que conduziu o levantamento, Ana Cristhina Sampaio Maluf, do Grupo de Pesquisas em Toxicologia Analítica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp. Também houve quem diminuiu, quem manteve frequência e quem começou o uso durante a quarentena.
Ela destaca que, além da frequência ou consumo, a forma de uso é muito importante. “Sozinho é mais arriscado, porque se acontecer algo não tem a quem recorrer. Está associado também com frequência de se sentir triste ou deprimido”, diz. O uso foi feito sozinho em 42% dos casos, 35% acompanhado e 23% sozinho ou acompanhado.
O caso de pessoas que não usavam e começaram a usar na quarentena foi menos expressivo para medicamentos, como ansiolíticos, e drogas ilícitas como maconha e as “drogas de festa” (cocaína, LSD, MDMA). “Teve diminuição. Gente que usava e parou de usar cocaína e substâncias de festas, por exemplo”, cita. No caso da maconha, 15,9% das pessoas suspenderam o hábito durante a quarentena, 34,7% continuaram e 2% passaram a fazer uso no período.
Males do consumo abusivo e problemas futuros
As consequências do aumento de psicoativos preocupam por diversos motivos, que vão desde dependência futura à violência doméstica. Ana Cristhina analisa que muitas pessoas já faziam uso abusivo com alguns prejuízos mas sem diagnóstico de dependência. “Na pandemia, pode agravar e se tornar uma dependência. Quem já tinha quadro de dependência, pode agravar o quadro”, diz.
“As pessoas que seguirem pós pandemia utilizando de forma descontrolada o uso de substâncias podem se tornar dependentes. Mesmo que, para fechar critérios de dependência, demore mais tempo”, aponta Renata Brasil Araújo. Conforme a Organização Mundial de Saúde, por reduzirem a imunidade, o uso de bebidas alcoólicas podem elevar os riscos de doenças em geral. Além disso, consumo excessivo também pode gerar estímulo a comportamentos de risco ou a reduzir as precauções necessárias contra a transmissão do coronavírus.
“A pessoa se torna mais impulsiva e menos adepta a pensamentos de proteção como uso de máscara, evitar colocar a mão nos olhos, passar álcool em gel. Algumas prejudicam a imunidade, principalmente no que tange ao sistema respiratório, a área mais afetada pela Covid-19”, detalha Renata, que também destaca o aumento das taxas de violência doméstica. “Segundo o Ligue 180, em abril houve um aumento de 36% nos casos de violência contra a mulher com relação ao ano anterior.”
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Medidas de restrição e a importância da redução de danos
Para desincentivar o consumo, a OMS recomendou que governos deveriam limitar a venda de bebidas alcoólicas durante as quarentenas. A entidade considera que as regulações já existentes, como idade mínima e proibição de publicidade, deveriam ser elevadas e reforçadas durante a pandemia. Medidas do tipo são consideradas importantes para a psicóloga Renata Brasil Araújo.
“Brasil foi um dos países com menos medidas de restrição. Tiveram descontos e isenção. Com as lives, ficou bastante complicado. Lives patrocinadas pela indústria do álcool. Sem controle em cima disso. Tem que ter medidas de controle e nosso país está muito aquém do que deveria estar nesse sentido”, afirma.
Por outro lado, a farmacêutica Ana Cristhina Sampaio Maluf, que atua em projetos de Redução de Riscos e Danos e Prevenção Combinada, considera o controle e restrição da venda como não efetivo. “Na Colômbia, se tentou fazer isso e houve intoxicação por metanol. Dá margem para o mercado ilegal crescer, com controle de qualidade muito pior. Atuar na propaganda é um caminho mais interessante de seguir. Dos anos 2000 para cá, o uso do tabaco teve uma redução associada à publicidade”, pondera.
Por estar associado a quadros de depressão e ansiedade, “em termos de planejamento de saúde pública, será preciso ampliação do serviços de tratamento de saúde mental”. “Preparar serviços como Caps e Caps AD para receber esse contingente de pessoas que vão sair com essa piora no estado de saúde mental”, analisa Ana Cristina.
A partir da identificação de pelo menos dois sinais é recomendado procurar ajuda médica
Síndrome de abstinência, a qual varia de acordo com a substância que o indivíduo usa. No cado da bebida alcoolica, por exemplo, se interrompe ou diminui o uso, pode apresentar sintomas como tremor, ansiedade, taquicardia, sudorese.
Pode também ocorrer delirium tremens que se soma a delírios, alucinações, convulsões. Esse quadro pode, se não tratado, até evoluir para óbito, sendo necessária internação para seu manejo. Casos mais graves de síndrome de abstinência são mais comuns pelo uso de drogas do tipo depressoras do sistema nervoso central, como é o caso do álcool e opióides."
Fonte:Entrevistas com Renata Brasil Araújo, psicóloga e presidente da Associação Brasileira de Estudos do Álcool e outras Drogas (Abead), e Ana Cristhina Sampaio Maluf, pesquisadora do Grupo de Pesquisas em Toxicologia Analítica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.
O psiquiatra Rafael Baquit salienta o moralismo acerca do tema e a criminalização do uso de drogas, principalmente as ilícitas. Ele defende que, em muitos casos, o fato de serem proibidas gera muito mais adoecimento e morte do que as drogas em si. “Quantas pessoas morrem por uso de maconha?”, questiona.
“O tratamento posto de forma hegemônica é o que coloca a abstinência total como muita solução. Há 17 anos existe a redução de danos, que prevê que elas vão se tratar de várias formas diferentes. Inclusive sem parar, com tratamentos de outras formas. Usando menos, sendo acompanhadas. Algumas pessoas conseguem reduzir a quantidade e frequência da substância, substituir por outras substâncias. Outras, só por se alimentarem melhor e terem acompanhamento, voltam a trabalhar e ter uma vida saudável”, explica.
Por isso, é importante buscar atendimento para que o acompanhamento seja individualizado e leve em consideração o histórico e as particularidades do paciente. Segundo Ana Cristhina, a redução de danos pode ser aplicada sempre, para qualquer padrão de consumo, não apenas em casos de uso problemático. “As possibilidades de cuidado vão além de intervenções com profissionais, que são importantes principalmente em casos com agravos à saúde. Refletir sobre o consumo e praticar redução de danos é uma importante forma de prevenção e autocuidado”, analisa.
Este ano, foram feitas 42 internações em unidades de desintoxicação no Hospital de Saúde Mental Professor Frota Pinto. Foram 962 pacientes atendidos na emergência com hipótese diagnóstica transtornos mentais e comportamentais devidos ao uso de substância psicoativa. Uma média de 192,4 pacientes por mês. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde (SMS), foram realizados 8 mil atendimentos nos sete Caps Ad em Fortaleza, este ano.
De acordo com o Ministério da Saúde, a Rede de Atenção Psicossocial atende à demanda relacionada a transtornos mentais por uso de álcool e outras drogas. São 1.641 leitos de saúde mental em hospitais gerais, 13.877 leitos em hospitais psiquiátricos e 50 equipes multiprofissionais de atenção especializada em saúde mental que prestam atendimento ambulatorial. Dentre os 2.657 Caps, 453 funcionam exclusivamente para atendimento de demandas relacionadas a álcool e outras drogas.
“A pasta investiu, em 2020, R$ 1,1 milhão para ampliação dos serviços de atendimento à saúde mental. Foram incentivados a abertura de 24 novos CAPS, 11 Serviços de Residência Terapêutica (SRT), 1 Unidade de Acolhimento Infanto-Juventil e 40 novos leitos de saúde mental em hospital geral. Foram também habilitados 21 Equipes Multiprofissionais de Atenção Especializada de Saúde Mental para atendimento ambulatorial”, informa o MS.
> Na reportagem seguinte, conheça histórias de pessoas que enfrentaram crises de ansiedade durante o isolamento social e saiba como elas lidaram com o problema.
Conteúdo produzido em parceria com:
Série de reportagens investiga o impacto da pandemia de Covi-19 na saúde mental de jovens, adultos e idosos..