Antes da pandemia, problemas familiares levavam a estudante universitária Maria (nome fictício) a “fugir” e evitar ficar em casa. Ela buscava refúgio no estágio, na faculdade e em saídas com os amigos no dia a dia. Era como viver em “uma bolha”, enquanto sentia que se afastava dos pais. Com a Covid-19, viu-se obrigada a enfrentar a rotina.
Medo, tristeza, frustração, angústia, raiva, preocupação, impotência e solidão foram alguns dos sentimentos que, ela conta, estiveram presentes nesse momento. “Eu ficava tão ansiosa de um jeito que eu acordava cedo e, para não ter que lidar com as coisas dentro da minha casa, ficava escondida e me trancava dentro do carro. Eu torcia muito para que aparecesse alguma coisa para fazer fora de casa”, conta.
Sem condições financeiras de buscar serviço psicológico particular, Maria chegou a buscar um programa gratuito oferecido pela Prefeitura de Fortaleza, mas acabou perdendo o horário marcado. Para lidar com a situação, ela tem tentado focar no trabalho e conversar mais com pessoas de confiança quando julga necessário.
Fontes:Organização Mundial da Saúde (OMS)
“Cada pessoa tem seu contexto de vida, sua história. Quando passamos por um momento como a pandemia, que pode ser considerado um período traumático porque mudou completamente a nossa rotina, cada um vai reagindo de forma diferente”, afirma a psicóloga Andrise Freire, especialista em adolescentes. Entre os pacientes que já atendia antes da Covid-19, a profissional percebeu problemas já existentes foram potencializados e que os tratamentos que vinham sendo realizados foram impactados negativamente.
Jovens entre 18 e 29 anos compõem a faixa etária que mais apresentou problemas relacionados à saúde mental durante a pandemia de Covid-19, segundo a ConVid – Pesquisa de Comportamentos, realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).
Dessa parcela dos entrevistados (24,7% dos 45.161 respondentes), 53% afirmou ter se sentido triste ou deprimido “muitas vezes” ou “sempre” e 69,5% apontou ter se sentido ansioso ou nervoso “muitas vezes” ou “sempre”. Além disso, 58,8% relataram aumento de problema de sono prévio e 53,2%, início desse sintoma. O público adolescente, de 12 a 17 anos, também foi consultado no estudo, mas os resultados ainda não foram divulgados até o fechamento desta reportagem.
Até os 24 anos, as pessoas passam pelo processo de amadurecimento cerebral, aponta o psiquiatra Rodrigo Freitas da Costa, especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência e preceptor da residência médica do Hospital Universitário Walter Cantídio, da Universidade Federal do Ceará (HUWC/UFC).
Voltando-se para a adolescência, o médico também destaca as mudanças hormonais e corporais, além da necessidade de modelos para seguir, nessa etapa de formação da personalidade. A agressividade ou o isolamento podem ser algumas maneiras encontradas por adolescentes para lidar com as emoções dessa fase marcada por descobertas e tomada de decisões, conforme explica a psicóloga Andrise Freire.
Nesse contexto, eles podem sofrer bullying, entrar em contato com drogas de forma precoce ou vivenciar situações de abuso e violência. Esses tipos de estressores ambientais podem somar-se a predisposições genéticas, colaborando para o desenvolvimento de algum problema relacionado à saúde mental. “Quando o cérebro é exposto a estresse crônico ou traumas, isso acaba deflagrando alguns tipos de transtorno, como depressão, transtorno do estresse pós-traumático e transtorno de pânico”, afirma o médico.
Com o passar do tempo, cobranças por alcançar diferentes metas em determinadas idades e incerteza sobre faculdade e/ou trabalho também podem afetar a saúde mental de jovens adultos. “Ele entra em uma faculdade, coloca um Fies (Programa de Financiamento Estudantil) para pagar depois que se forma e encontra a sociedade nessa situação em que estamos, em que o mercado está instável. Ele pode ter ansiedade, pode evoluir para uma crise de pânico”, exemplifica a psicóloga.
Para lidar com todas essas questões, os profissionais apontam que o ideal é buscar ajuda multidisciplinar, com psicólogo e psiquiatra. “Chegamos a um nível que a saúde mental está tão ruim que se começa a sentir taquicardia, falta de ar, começa a ficar a mão gelada, suando frio. E isso são sintomas físicos que a terapia não consegue lidar”, afirma Andrise. Por outro lado, a terapia pode continuar ajudando a lidar com as questões pessoais após o fim do tratamento medicamentoso.
No caso de crianças, o psiquiatra aponta que o tratamento se dá, principalmente, com psicólogos e com terapeutas ocupacionais, e o uso de medicação é necessário apenas em quadros moderados a graves, “conforme o peso e avaliando riscos e benefícios”. “Trabalhar de forma inter e multidisciplinar é imprescindível”, complementa Costa.
Quando se trabalha com crianças e adolescentes, o médico destaca a importância de se atentar para os familiares, além de olhar para os próprios pacientes. Essa necessidade se dá pelo fato de que problemas emocionais ou econômicos da família, por exemplo, têm impacto direto sobre esses indivíduos em desenvolvimento.
O excesso de exposição a telas de smartphones e computadores tem relação com o aumento de de ansiedade. Inclusive porque está acompanhado da diminuição de exercícios físicos e de interação, fatores que podem colaborar para o agravamento do transtorno.
O recomendado pela Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP) sobre o tempo de exposição de crianças e adolescentes às telas de aparelhos eletrônicos por dia é:
Fonte: Rodrigo Freitas da Costa, médico psiquiatra (CRM:14752 / RQE:9688) com residência em Psiquiatria da Infância e Adolescência, e preceptor da Residência Médica em Psiquiatria do Hospital Universitário Walter Cantídio, da Universidade Federal do Ceará (HUWC/UFC).
Conflitos com a própria família por conta de transfobia e homofobia, solidão, incerteza, interrupção de atendimentos médicos, dificuldade financeira e piora de quadros de ansiedade e depressão preexistentes. Esses, entre outros, foram alguns pontos citados em relatos coletados pela pesquisa “Diagnóstico LGBT+ na pandemia — Desafios da comunidade LGBT+ no contexto de isolamento social em enfrentamento à pandemia de coronavírus”, realizada pelo coletivo #VoteLGBT em colaboração com o escritório de pesquisa BOX1824.
Realizada virtualmente entre 28 de abril e 15 de maio últimos, a pesquisa contou com participantes de todas as regiões brasileiras. Piora na saúde mental foi o aspecto mais apontado pelas mais de 9,5 mil respostas à pergunta “qual a maior dificuldade você está enfrentando durante o isolamento social/quarentena?”. Ao todo, esse aspecto foi relatado por 42,72% das pessoas. Em seguida, como maiores impactos foram relatados o afastamento da rede de apoio e a falta de fonte de renda.
Avaliação de saúde mental como mais impactada pela pandemia
Um em cada dois LGBTs de 15 a 24 anos indicaram a saúde mental como o maior problema do isolamento;
Fonte: Pesquisa “Diagnóstico LGBT+ na pandemia”, realizada entre 28 de abril e 15 de maio de 2020, com 9.521 respostas. Disponível em: votelgbt.org/pesquisas
* Na seção “contexto metodológico” da pesquisa, realizada virtualmente, é relatada a dificuldade de acessar toda a diversidade da população LGBT+. “A própria dificuldade de conseguirmos acessar justamente alguns dos recortes mais vulneráveis da sigla e de suas interseccionalidades comprova a sua exclusão de uma das mais importantes ferramentas de trabalho, convívio e visibilidade da nossa sociedade: a internet.”
Especificamente sobre os impactos na saúde mental, os resultados da pesquisa indicam que esse problema é maior entre os jovens, atingindo um em cada dois LGBTs de 15 a 24 anos. Entre as faixas etárias mais velhas, o problema foi relatado por 21% das pessoas com 45 a 54 anos e por 12% daquelas com 55 anos de idade ou mais.
Para além do contexto da pandemia de Covid-19, pessoas LGBTQIA+ são mais vulnerável aos problemas de saúde mental. Elas têm duas vezes mais chance de ter algum transtorno mental ao longo da vida, em comparação com homens e mulheres heterossexuais, segundo a Associação Americana de Psiquiatria.
Durante a pandemia de Covid-19, mais pessoas passaram a buscar a Casa Transformar, organização não-governamental que acolhe pessoas LGBTQIA+ em situação de vulnerabilidade ou exclusão familiar e social. Fundadora da Casa Transformar, a funkeira trans e cearense Nik Hot explica que a maioria das pessoas que buscam a ONG estão com a saúde mental abalada por conta de relacionamento abusivo, exclusão da família ou preconceito sofrido na rua.
"Independentemente da situação, sempre existe alguma fragilidade por conta de traumas ou de situações que essas pessoas passaram antes de chegar aqui", afirma. Ela mesma conta ter passado por uma crise de ansiedade "um pouco mais grave" que as anteriores. Além disso, aponta o uso de hormônios como um fator que, aliado ao contexto da pandemia, impactou a própria saúde mental.
Além de passar por um processo de autoaceitação para lidar com uma sociedade que não lida bem com a diversidade sexual e de gênero, jovens LGBTQIA+ também passam por um processo de lidar com a aceitação por parte do outro. “Quando não é uma pessoa que tem diretamente uma ligação comigo, é mais fácil”, afirma a psicóloga Andrise Freire, especialista em adolescentes.
Há os casos em que a família acolhe jovens LGBTQIA+, mas, quando existe a frustração dos pais em relação à sexualidade, ela aponta que “não tem como (o jovem) não ter a saúde mental abalada”. “O pai e a mãe sempre têm um ideal de filho, que passa a frustrá-los quando faz as suas (próprias) escolhas. Quando não envolvem as questões sexual e de gênero, parece que é mais aceitável para esses pais: ‘não virou o médico que eu queria, mas virou advogado’. Parece que essa questão sexual potencializa, e aí tem todo um contexto histórico nessas relações”, afirma.
“É uma população que merece atenção. Dados mostram que esse público acaba realmente sendo mais propenso a situações relacionadas ao próprio suicídio”, alerta o médico psiquiatra Rodrigo Freitas da Costa. Sobre os impactos atuais e futuros da pandemia na saúde mental, ele aponta que os grupos mais vulneráveis — e a população LGBTQIA+ é um deles — precisam ser acolhidos e apoiados, assim como os familiares dessas pessoas.
“Precisamos buscar outras formas de nos comunicar, de a nossa rotina ser readaptada, e mudar nossa forma de se perceber e de perceber o outro”, afirma o especialista em Psiquiatria da Infância e da Adolescência e preceptor da residência médica do Hospital Universitário Walter Cantídio, da Universidade Federal do Ceará (HUWC/UFC).
O estudante universitário João Gabriel Soares, 25, foi demitido do estágio no último mês de abril. Ficar ansioso foi inevitável, em meio a uma situação que descreve como “muito solitária” e repleta de incerteza, solidão, medo, frustração e impotência. À situação econômica do atual contexto, soma-se o receio de não encontrar empresas que o aceitem como é.
“É uma incerteza muito grande que acho que vai permear a minha vida toda e permear a vida de muitos como eu”, afirma. Isso porque, ele conta, pessoas LGBTQIA+ muitas vezes precisam adequar-se a padrões. “Principalmente para quem é da periferia, para quem é LGBT negro e para quem é trans, que é muito marginalizado, isso é muito pior.”
Por morar com a avó, ele restringiu muito as saídas de casa durante o lockdown — um período que caracteriza como “sufocante”. Não poder ver os amigos, que considera família, também o afetou. Estar perto de outras pessoas com vivências parecidas é importante para João Gabriel, e a pandemia o deixou com medo de não mais poder vê-las.
"Gosto muito de estar próximo dos meus amigos que também são LGBTs, nós somos muito unidos. Já sofremos tanto com isolamento, falta de afeto, com essas inseguranças, e ainda mais isso, sabe? Fiquei muito pensativo”, conta.
Hoje mais seguro sobre si e sobre a própria sexualidade, o estudante de Publicidade e Propaganda já viveu momentos complicados em que a autoestima, a autoconfiança, a segurança em si mesmo e a capacidade de confiar nas pessoas foram afetadas por episódios de bullying.
Dos oito aos 15 anos, ele viveu uma fase crítica em que era desrespeitado pelos colegas do bairro onde mora. “Já cuspiram em mim, já me empurraram na parede, todos os dias quando me viam me xingavam”, lembra. Só pararam quando a mãe de João descobriu e brigou com eles. “Mas até lá o estrago já estava feito. Isso causou muitos danos à minha saúde mental.”
Listen to "Saúde mental dos jovens" on Spreaker.
Com todo esse cenário, João considera-se privilegiado por ter sido aceito pelos familiares — algo que não é comum a todas as pessoas LGBTQIA+. A mãe, que “de cara” o apoiou, também ajudou no processo de cuidado com a saúde mental.
Por anos, o estudante teve acompanhamento psicológico e psiquiátrico por casos de automutilação e tentativa de suicídio. “Às vezes eu não conseguia respirar por conta de picos de ansiedade, que era algo constante todos os dias. Já passei anos me tratando com medicamentos. Hoje em dia não preciso mais.”
Segundo a OMS o suicídio de jovens entre 15 e 29 anos tem aumentado, sendo a 2° causa de morte nesta faixa etária em 2012. O comportamento suicida é entendido como a tentativa de causar a própria morte, como solução para uma situação de sofrimento intenso e alívio imediato. Podendo ser devido a problemas psiquiátricos ou como forma de chamar atenção à sua dor.
Para entendermos as possíveis causas, precisamos levar em consideração a cultura e sociedade a qual o jovem está inserido, como foi seu desenvolvimento, a realidade que vivencia com a família e escola, e herança genética.
Vamos avaliar um jovem hipotético. Roy, 18 anos, filho único, mora com seus pais, advogados, pouco diálogo familiar, sem histórico de transtornos mentais graves na família. Classe média, estudou em um bom colégio. Roy pensou em atentar contra a própria vida. Por quê? Uma das possíveis causas de suicídio entre os jovens é o sentimento de incapacidade frente a expectativas e cobranças, sejam de familiares, dos amigos ou da comunidade em que vive.
Roy sempre foi cobrado por resultados, seus pais sempre deixaram claro o "investimento" na vida dele e a expectativa que continuasse na mesma profissão da família. Agora ele se encontrava diante de um vestibular e do sonho de ser biólogo. Em sua vida escolar sofreu bullying várias vezes e não possui amigos. Roy se sentia sozinho, triste, com sensação de inadequação e incapacidade. Para ele, sua vida não tinha mais solução...
Outras causas possíveis de suicídio entre jovens são adversidades familiares como separação dos pais ou perda de pessoas importantes, situações de violência física, sexual, negligência ou rejeição. Também transtornos psiquiátricos, problemas de interação social, mudanças constantes de domicílio, falta de suporte social, dentre outros.
Como evitar? Um dos pontos fundamentais é o desenvolvimento de vínculos familiares e sociais, que atuariam como agentes de cuidado e escuta. Os pais devem incentivar ao diálogo, de forma empática, onde se percebe e valida os sentimentos do filho, para que ele possa se sentir acolhido e valorizado.
Estar atentos a sinais de alerta como mudanças no comportamento: eles podem ficar isolados, irritados, hostis, reativos e com menor interesse por atividades que gostavam. Procurem conversar e entender o que está acontecendo.
Sobre o Roy? Ele foi diagnosticado com depressão e iniciou tratamento psiquiátrico e psicológico. Através da psicoterapia, aprendeu a expressar suas opiniões e desejos, melhorou sua autoestima e tem aprendido novas habilidades sociais.
* Valéria Truchlaeff é psicóloga clínica
Conteúdo produzido em parceria com:
Série de reportagens investiga o impacto da pandemia de Covi-19 na saúde mental de jovens, adultos e idosos..